"Para que o xá se
vá, estamos prontos para morrer aos milhares", diziam os iranianos
no verão passado. E o aiatolá, recentemente: "Que o Irã sangre,
para que a revolução se fortaleça."
Estranho eco entre
essas frases que parecem se encadear. O horror da segunda condena a embriaguez
da primeira?
As insurreições
pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um
só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: "Não obedeço mais”, e
joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida - esse
movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo
absolutamente impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e seus
esgotos povoados de insurrectos. E porque o homem que se rebela é em definitivo
sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e
suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, "realmente",
preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer.
Todas as formas de
liberdade adquiridas ou reivindicadas, todos os direitos exercidos, mesmo
quando se trata das coisas aparentemente menos importantes, têm ali sem dúvida
um último ponto de sustentação, mais sólido e mais próximo do que os
"direitos naturais". Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se
os seus poderes não são "absolutamente absolutos", é porque, por trás
de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e
persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na
vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e
das metralhadoras, os homens se insurgem.
Porque assim ele está
"fora da história" e na história, porque cada um ali aposta na vida
ou na morte, compreende-se por que as insurreições puderam tão facilmente
encontrar nas formas religiosas sua expressão e sua dramaturgia. Promessas do
além, retorno do tempo, espera do salvador ou do império dos últimos dias,
reino exclusivo do bem, tudo isso constituiu durante séculos, ali onde a forma
da religião se prestava para isso, não uma vestimenta ideológica, mas a própria
maneira de viver as insurreições.
Chegou a época da
"revolução". Há dois séculos ela se projetou sobre a história,
organizou nossa percepção do tempo, polarizou as esperanças. Realizou um
gigantesco esforço para aclimatar a insurreição no interior de uma história
racional e controlável: ela lhe deu legitimidade, escolheu suas boas ou más
formas, definiu as leis do seu desenvolvimento. Estabeleceu suas condições
prévias, objetivos e maneiras de se acabar. Chegou-se mesmo a definir a
profissão de revolucionário. Repatriando assim a insurreição, pretendeu-se
fazê-la aparecer em sua verdade e levá-la até seu termo real. Maravilhosa e
temível promessa. Alguns dirão que a insurreição se viu colonizada na Real-Politik.
Outros, que lhe foi aberta a dimensão de uma história racional. Prefiro a
pergunta que Horckheimer fazia outrora, pergunta ingênua e um pouco acalorada:
"Mas será ela assim tão desejável, essa revolução?"
Enigma da insurreição.
Para quem buscava no Irã não as "razões profundas" do movimento, mas
a maneira com que ele era vivido, para quem tentava compreender o que se
passava na cabeça daqueles homens e daquelas mulheres quando arriscavam suas
vidas, uma coisa era surpreendente. A fome, as humilhações, o ódio pelo regime
e a vontade de mudá-lo, eles os inscreviam nos confins do céu e da terra, em
uma história sonhada que era tão religiosa quanto política. Eles afrontavam os
Pahlavi, em uma partida em que se tratava para cada um de vida ou de morte, mas
também de sacrifícios e promessas milenares. Embora as famosas manifestações,
que tiveram um papel tão importante, pudessem ao mesmo tempo responder
realmente à ameaça do exército (até paralisá-lo), se desenvolver segundo o
ritmo das cerimônias religiosas e finalmente remeter a uma dramaturgia
intemporal na qual o poder é sempre maldito. Espantosa superposição, ela fazia
aparecer em pleno século XX um movimento bastante forte para derrubar o regime
aparentemente melhor afinado, embora estivesse próxima dos velhos sonhos que o
Ocidente conheceu outrora, quando se queria inscrever as figuras da
espiritualidade no terreno da política.
Anos de censura e
perseguição, uma classe política tutelada, partidos proibidos, grupos
revolucionários dizimados: em que, a não ser na religião, podiam então se
apoiar a desordem e depois a revolta de uma população traumatizada pelo
"desenvolvimento", pela "reforma", pela
"urbanização" e por todos os outros fracassos do regime?
É verdade. Mas seria preciso esperar que o elemento religioso rapidamente
se apague em proveito de forças mais reais e de ideologias menos
"arcaicas"? Certamente não, e por várias razões.
Houve inicialmente o
rápido sucesso do movimento, revigorando-o na forma que ele adotara. Havia a
solidez institucional de um clero cujo domínio sobre a população era forte, e
as ambições políticas, vigorosas. Havia todo o contexto do movimento islâmico:
pelas posições estratégicas que ele ocupa, pelas convenções econômicas que têm
os países muçulmanos, e por sua própria força de expansão nos dois continentes,
ele constitui, em todo o Irã, uma realidade intensa e complexa. Tanto que os
conteúdos imaginários da revolta não estavam dissipados no grande dia da
revolução. Eles foram imediatamente transpostos para uma cena política que
parecia totalmente disposta a recebê-los, mas que era na realidade de outra
natureza. Sobre essa cena, se fundem o mais importante e o mais atroz: a
estupenda esperança de fazer novamente do lslã uma grande civilização viva, e
formas de xenofobia virulenta; os riscos mundiais e as rivalidades regionais. E
o problema dos imperialismos. E a submissão das mulheres etc.
O movimento iraniano
não se submeteu à "lei" das revoluções que faria, parece, ressaltar,
sob o entusiasmo cego, a tirania que já os habitava em segredo. O que constituía
a parte mais íntima e intensamente vivida da insurreição era contíguo a um
tabuleiro político sobrecarregado. Mas esse contato não é identidade. A
espiritualidade à qual se referiam aqueles que iam morrer não tem comparação
com o governo sangrento de um clero fundamentalista. Os religiosos iranianos
querem autenticar seu regime pelas significações que tinha a insurreição. Não
se faz nada diferente deles ao desqualificar o fato da insurreição pelo fato de
haver hoje um governo de mulás. Tanto em um caso como no outro, há
"medo". Medo do que acabou de acontecer no Irã no último outono, e do
qual o mundo há muito tempo não tinha dado exemplo.
Daí, justamente. a
necessidade de evidenciar o que há de irredutível em um movimento dessa ordem.
E de profundamente ameaçador também para qualquer despotismo, tanto o de hoje
quanto o de antigamente.
Não é, certamente,
nenhuma vergonha mudar de opinião; mas não há nenhuma razão para dizer que se
mudou ao ser hoje contra as mãos cortadas, depois de ter sido ontem contra as
torturas da Savak.
Ninguém tem o direito
de dizer: "Revoltem-se por mim, trata-se da libertação final de todo
homem." Mas não concordo com aquele que dissesse: "Inútil se
insurgir, sempre será a mesma coisa”. Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida
diante de um poder. Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a
questão. Insurge-se, é um fato; é por isso que a subjetividade (não a dos
grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na história e lhe dão seu
alento. Um delinquente arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco não
suporta mais estar preso e decaído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso
não torna o primeiro inocente, não cura o outro, e não garante ao terceiro os
dias prometidos. Ninguém, aliás, é obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é
obrigado a achar que aquelas vozes confusas cantam melhor do que as outras e
falam da essência do verdadeiro. Basta que elas existam e que tenham contra
elas tudo o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las
e buscar o que elas querem dizer. Questão de moral? Talvez. Questão de
realidade, certamente. Todas as desilusões da história de nada valem: é por
existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma da evolução, mas
justamente a da "história”.
Isso é inseparável de
um outro princípio: é sempre perigoso o poder que um homem exerce sobre o
outro. Não digo que o poder, por natureza, seja um mal; digo que o poder, por
seus mecanismos, é interminável (o que não significa que ele seja
todo-poderoso, muito pelo contrário). Para limitá-lo, as regras jamais são
suficientemente rigorosas; para desapropriá-lo de todas as ocasiões de que ele
se apodera, jamais os princípios universais serão suficientemente severos. Ao
poder, é preciso sempre opor leis intransponíveis e direitos sem restrições.
Os intelectuais, hoje
em dia, não têm muito boa "fama": acredito poder empregar essa
palavra em um sentido bastante preciso. Não é, portanto, o momento de dizer que
não se é intelectual. Eu faria, aliás, sorrir. Intelectual, eu sou. Se me
perguntassem como concebo o que faço, responderia, se o estrategista for o
homem que diz: "que importa tal morte, tal grito, tal insurreição em
relação à grande necessidade do conjunto, e que me importa, em contrapartida,
tal princípio geral na situação particular em que estamos”, pois bem, para mim,
é indiferente que o estrategista seja um político, um historiador, um
revolucionário, um partidário do xá ou do aiatolá; minha moral teórica é
inversa. Ela é "anti-estratégica”: ser respeitoso quando uma singularidade
se insurge, intransigente quando o poder infringe o universal. Escolha simples,
obra penosa: pois é preciso ao mesmo tempo espreitar, por baixo da história, o
que a rompe e a agita, e vigiar um pouco por trás da política o que deve
incondicionalmente limitá-la. Afinal, é meu trabalho; não sou o primeiro nem o
último a fazê-lo. Mas o escolhi.
Michel Foucault
Publicado no Le Monde, nº 10.661,
11- 12 de maio de 1979, pp. 1-2.
Trad.: Vera Lúcia Avellar Ribeiro
Texto de Michel Foucault publicado em maio de 1979 no
maior jornal da França, o Le Monde, por ocasião da revolução iraniana ocorrida
em fevereiro daquele ano. No artigo, o filósofo francês fala da insurreição do
povo iraniano contra o governo e comenta especialmente a disposição de homens e
mulheres em morrer em nome desta revolução.
O que leva alguém a colocar a própria vida em risco
diante de confrontos políticos contra o poder do Estado e de governos
autoritários e ditatoriais? Diz Foucault que a história das insurreições
demonstra que existem certos limites a partir dos quais alguém, ou um grupo,
decide não mais obedecer e, caso necessário for, pagar com a própria vida o
preço dessa desobediência. Que poder tem um tirano diante de alguém que se
dispõe a morrer a ter de obedecer? Nenhum! Não há como persuadir alguém que
pretende não mais barganhar a liberdade pela vida. Não há poder sequer
suficiente que consiga fazer com que a insurreição - ainda que solitária - não
possa brotar a cada momento diante de qualquer situação despótica.
Atualmente na Venezuela, por exemplo, já morreram mais de
80 manifestantes nos protestos diários contra o governo. Vídeos de
manifestantes sendo executados pela guarda bolivariana abundam na internet e,
no entanto, isso não desmotiva a multidão que, dia a pós dia, ocupa as ruas e
pede mudanças no governo.
Para Foucault, é o conhecimento desta disposição
limítrofe de não mais negociar a liberdade mesmo sob risco de perder a vida - e
que pode existir em cada um de nós - que na verdade garante os direitos
assegurado pelos governos aos cidadãos mundo afora.
"As insurreições pertencem à história. Mas, de certa
forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou
todo um povo diz: 'Não obedeço mais', e joga na cara de um poder que ele
considera injusto o risco de sua vida - esse movimento me parece irredutível.
Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível. [...] E
porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um
dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões,
para que um homem possa, 'realmente', preferir o risco da morte à certeza de
ter de obedecer. [...] Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus
poderes não são 'absolutamente absolutos', é porque, por trás de todas as
aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a
possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os
poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das
metralhadoras, os homens se insurgem."
Professor de Filosofia - Pense fora da caixa!
Sem comentários:
Enviar um comentário