Ensaio Filosófico
Deve um Estado laico conceder privilégios em função
das crenças religiosas da população?
Apresentação
Na recente visita do Papa Francisco a
Portugal, ocorrida aquando das comemorações do centenário das aparições aos
pastorinhos de Fátima, o governo Português concedeu tolerância de ponto aos
funcionários públicos. Esta decisão despoletou uma ampla discussão na opinião
pública e na comunicação social sobre a legitimidade dessa decisão, bem como um
sentimento de discriminação positiva para uma parte da população portuguesa, em
detrimento de outra.
Numa abordagem rápida sobre esta
decisão, levantaram-se facilmente várias questões, tais como:
Será que todos os funcionários
públicos professam a religião católica?
E os católicos que não trabalham para o Estado, não deverão ter os mesmos direitos? Deverá um Estado laico tomar posições favoráveis a uma determinada religião em detrimento de outras?
Deve acontecer apenas com a religião predominante ou generalizar a decisão mediante acontecimentos semelhantes associados a outras religiões minoritárias?
E os católicos que não trabalham para o Estado, não deverão ter os mesmos direitos? Deverá um Estado laico tomar posições favoráveis a uma determinada religião em detrimento de outras?
Deve acontecer apenas com a religião predominante ou generalizar a decisão mediante acontecimentos semelhantes associados a outras religiões minoritárias?
Tendo em consideração a decisão do
governo português, neste ensaio pretendemos demonstrar que um Estado laico não
deve conceder regalias para uma determinada religião, mesmo que esta seja
largamente dominante. Esta posição torna-se tanto mais importante, sabendo que
pode contribuir para que se evitem decisões futuras semelhantes, que são
associadas a uma evidente discriminação de uma parte da população. Para isso,
depois de clarificar o conceito de Estado laico, abordaremos a questão na perspetiva
utilitarista de Stuart Mill, na deontologia de Emmanuel Kant e no princípio da
justiça de John Rawls. Por fim, pretendemos demonstrar que a medida adotada
pelo governo português contrariou os princípios de um Estado laico e favoreceu
uma minoria dos portugueses.
Desenvolvimento - O Estado laico
Um Estado laico é um país ou nação com
uma posição neutra no campo religioso, tendo como princípio a imparcialidade em
assuntos religiosos, não apoiando ou discriminando nenhuma religião. Defende a
liberdade religiosa a todos os seus cidadãos e não permite a interferência de
correntes religiosas em matérias sociopolíticas e culturais.
Um país laico é aquele que segue o
caminho do laicismo, uma doutrina que defende que a religião não deve ter
influência nos assuntos do Estado. Por isso, o laicismo é responsável pela
separação entre a Igreja e o Estado. Apesar destes pressupostos, muitos países,
independentemente de possuírem um Estado laico, em algumas ocasiões não têm uma
posição neutra no campo religioso.
Nos países não laicos, muitas vezes, a
religião exerce o seu controle político na definição das ações governativas,
havendo mesmo países teocráticos, como o Vaticano, o Irão e Israel, onde o
sistema governamental está subjugado a uma religião oficial.
Declarações do primeiro-ministro
português
Declarações do primeiro-ministro
português, António Costa, à comunicação social no dia 13 de maio de 2017, ao
sair das instalações onde pernoitou o Papa Francisco, em Fátima.
“A visão que tenho de um estado laico
é um estado que, obviamente, é independente na sua autodeterminação, mas que
não pode nem deve ignorar os sentimentos religiosos e que a religião é um
fenómeno social e propriamente em Portugal há claramente uma predominância de
uma mudança. Temos que viver com respeito. É respeitando-nos uns aos outros que
fortalecemos a nossa democracia e a nossa liberdade e acho que em toda a nossa
História, sempre que alguém não respeitou as crenças e a liberdade de crenças
dos outros, as coisas não correram bem”.
(…)
“Uma das grandes lições do nosso
regime democrático foi de ter sido capaz de reconciliar todos os portugueses,
independentemente das suas crenças, no respeito mútuo. Não é o facto de muitos
portugueses, creio que a maioria, professarem a fé católica, que o Estado tem
estado limitado na forma como legisla, como tem modernizado os valores da vida
em sociedade, tal como do mesmo modo que não seria aceitável que o Estado não
só limitasse como não respeitasse profundamente a forma como a maioria dos
portugueses vivem a sua religiosidade e acho que é um sinal de respeito e foi
nessa forma que participei ontem e participarei hoje nas cerimónias.”
In, Jornal da Tarde, TVI (13 maio 2017)
Fundamentação
Se tomarmos como ponto de partida as
declarações do primeiro-ministro português, facilmente se constata a
contradição em que cai, ao tentar conciliar duas teorias filosóficas
concorrentes, o consequencialismo e o deontologismo. Se por um lado, numa
perspetiva utilitarista, defende que o estado não deve ignorar os sentimentos
religiosos da maioria da população, argumenta no sentido da independência do
Estado na sua capacidade legislativa.
Na perspetiva deontológica de Immanuel
Kant esta decisão não está de acordo com as regras morais absolutas, uma vez
que viola as normas legais de um estado laico, não podendo, por isso, ser
considerada uma boa ação. Nesta vertente, um Estado laico não deve tomar
nenhuma decisão que privilegie alguma religião, devendo sempre ter uma posição
neutra, sob pena desencadear uma ação que viola as regras morais.
Pelas palavras de António Costa percebemos
que a sua opinião está associada a uma perspetiva utilitarista defendida por
Stuart Mill, que sustenta a felicidade para o maior número de pessoas. É
evidente que na perspetiva utilitarista, como esta decisão maximiza a
felicidade de um grande número de pessoas, não importando se é distribuída de
maneira igual ou desigual, terá sido a melhor opção. Deste modo, o Estado laico
pode tomar decisões que privilegie a religião predominante num país, no caso de
Portugal, a religião católica, uma vez que defende a felicidade para o maior
número de pessoas. Mas esta decisão terá sido suficiente para tornar a sociedade
justa?
Na realidade, como o utilitarismo não
considera a igualdade como um fim, mas apenas como meio, se tivermos em
consideração que a maioria dos católicos não trabalham para o Estado, esta
decisão, na sua essência, acabou por favorecer uma minoria, despoletando um
sentimento de injustiça e de mal-estar na grande maioria da população
portuguesa, católica e não católica. Ora, se a decisão tomada pelo governo
português não produziu felicidade na maioria da população, teria sido mais
correto abdicar da decisão tomada. Por esta razão, consideramos que a decisão também
acaba por contrariar a perspetiva utilitarista.
Constituindo, em grande parte, uma
reação ao utilitarismo clássico, a teoria de Rawls visa criar um modelo teórico
de sociedade equitativamente justa, regulada por princípios de justiça. Este modelo
supõe a existência de uma sociedade fundada numa ideia de justiça distributiva
e de oportunidades iguais para os cidadãos. O Estado deve distribuir de uma
forma equitativa um conjunto de bens primários pelos cidadãos: direitos e
deveres, liberdades, encargos e benefícios, oportunidades e poderes,
rendimentos e riqueza. Os bens primários devem ser distribuídos de maneira
igual, a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens
beneficie os menos favorecidos. Na teoria de justiça de Rawls, a dificuldade
consiste justamente na conceção de uma distribuição justa destes bens, sem
gerar conflitos. Como devemos distribuir os bens primários? De acordo com o
estatuto social; as leis do mercado; os talentos de cada indivíduo ou a
felicidade do maior número de pessoas?
Para Rawls, tratar as pessoas como
iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que
trazem desvantagens para alguém. Por isso, para além de defender o “princípio
da liberdade igual”, em que deve ser assegurada a máxima liberdade para cada
pessoa, compatível com uma liberdade igual para todos os outros, Rawls defende
também o “princípio da diferença”, em que a distribuição igual da riqueza deve
ser promovida, exceto se a existência de desigualdades económicas e sociais
gerar o maior benefício para os menos favorecidos. Por exemplo, se dar mais
dinheiro a uma pessoa carenciada do que a outra não necessitada, promove mais
os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de
dinheiro. Deste modo, uma consideração igualitária dos interesses não proíbe
essa desigualdade. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidades ou
rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Abordando a posição
do governo português na perspetiva da teoria da justiça de Rawls, a decisão de
atribuir tolerância de ponto aos trabalhadores do Estado, não promove a
igualdade entre os portugueses. Mesmo que façamos um exercício simples na
tentativa de considerar os funcionários do Estado como desfavorecidos
relativamente aos restantes portugueses, não nos parece de todo legítimo que
isso seja verdade, pois na opinião pública, existe uma ideia generalizada de
que os trabalhadores do Estado são uma classe favorecida. Não defendendo esta
ideia, também não podemos considerar que os trabalhadores do Estado sejam uma
classe desfavorecida. Assim, consideramos que a decisão tomada pelo estado
português também não deve ser sustentada na teoria da justiça de Rawls, pois
não nos parece que esta decisão tenha por objetivo maximizar os mínimos.
Conclusão
Após a análise contextualizada da
decisão de atribuir tolerância de ponto aos trabalhadores do Estado, com base
em pressupostos religiosos, consideramos que esta não se enquadra na conceção
utilitarista de Mill, na perspetiva contratualista de Rawls nem na deontologia
de Kant. Como tal, consideramos que um Estado laico, não deve tomar decisões
que favoreçam uma parte da população, com base em fundamentos religiosos.
Referências Bibliográficas
Alves,
Fátima; Arêdes, José; Bastos, Patrícia. 2013. Pensar. Filosofia 10ºano. Texto
Editores
Paiva,
Maria; Borges, José. 2015. Guia de Estudo. Filosofia 10º ano. Porto Editora
http://lolaeafilosofia.blogspot.pt/
Disciplina de Filosofia
Junho de 2017
Professora: Rosa Sousa
Turma: 10ºA
Autores:
Beatriz Teixeira
Bruno Soares
Carlos Sousa
Gonçalo Moreira
Gustavo Alves
Isa Alves
Lola
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