Friedrich
Nietzsche é um dos pensadores mais citados do século XX e XXI. Provavelmente o
motivo de tamanha celebridade resida em sua forma ácida e incisiva de tratar
temas que há tempos estão arraigados culturalmente. Não é exagero afirmar que
sua filosofia é uma máquina de guerra pronta a combater conceitos basilares da
tradição ocidental como os de “razão”, “bem” e “verdade”. Seus aforismos foram
escritos para “derrubar ídolos”. Em sua autobiografia, “Ecce Homo”, ele
afirma:
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Peter Paul Rubens, “Sátiro e Bacante”, 1640 |
Contudo, é
possível abordar Nietzsche para além da “filosofia do martelo”. É lícito,
inclusive, lançar mão de uma de suas noções, o perspectivismo, para enxergarmos
Nietzsche sob outros ângulos. Uma destas perspectivas nos mostra seu pendor
literário, que se ramifica em dois aspectos: Nietzsche como estudioso da arte e
da literatura, ou seja, como esteta, e Nietzsche como produtor de arte, como
poeta.
Para os dois
aspectos, vale ressaltar que sua formação é em Filologia, a saber, estudo de
uma língua através de seus documentos escritos para a compreensão de fenômenos
culturais. Em “Para além do bem e do mal”, o pensador faz questão de se
apresentar como filólogo:
Nietzsche, portanto, é um homem das letras.
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Giorgio de Chirico, “O Misterioso Banho II”, 1935-36 |
Vejamos o
primeiro ponto: Nietzsche como esteta. Não se trata de extravagância asseverar
que a valorização da arte perpassa toda a obra nietzschiana. Para Nietzsche, a
arte é superior à filosofia (metafísica e moral) justamente porque não se
pretende verdadeira. Aliás, a verdade, aos moldes que a tradição a concebeu,
não existe. É uma ficção que o homem lançou mão para conseguir sobreviver, já
que é um animal fraco, já que necessita do que é estável, do que os conceitos
são capazes de oferecer. Acerca da verdade, ele escreve em seu ensaio de
juventude
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Nietzsche, por Edvard Munch, 1906 |
Para
Nietzsche, o impulso à formação de metáforas é mais genuíno que o impulso à
verdade. Todavia, a metafísica e a moral fizeram o ser humano esquecer-se desta
potência. O homem é um animal estético; sua disposição mais originária é de
criador. Ele cria sentidos e os perspectiva. No ensaio supracitado, o pensador
nos diz:
A arte é,
então, a válvula de escape para o homem. Ou, melhor dizendo, é o estimulante da
vida. Apenas a arte possibilita uma experiência vital em sua plenitude. A arte
seria o outro lado, um solo extra, para além da tradição filosófica e suas
facetas lógicas e morais.“Temos a arte para não morrer ante a
verdade”, afirma o pensador em “O nascimento da tragédia”. Na mesma
obra ele também escreve:
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Francois Girardon, “Apolo servido pelas ninfas”, 1673 |
Por falar em
“O nascimento da tragédia”, trata-se de uma das obras mais importantes da
juventude de Nietzsche, na qual ele apresenta dois conceitos, dois impulsos
naturais: apolíneo e dionisíaco. Afirma que, com o surgimento de pensamento
socrático, ou seja, com instauração do homem teórico e moral, houve uma cisão
entre os irmãos que mantinham fraternidade. Em termos mais sucintos: com
Sócrates, o apolíneo sobrepôs-se ao dionisíaco. E assim tem sido há quase dois
mil e quinhentos anos (com a contribuição do cristianismo e sua metafísica do
pecado).
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Caravaggio, “Baco”, 1595 |
Vejamos,
agora, o Nietzsche poeta. Primeiro em termos mais abrangentes; depois em termos
específicos.
Segundo
Nietzsche, a tragédia (anterior a Sócrates) era a manifestação simbiótica entre
Apolo e Dionísio. Assim sendo, em sua época (segunda metade do século XIX),
fazia-se urgente resgatar as duas forças vitais, colocá-las novamente em
paridade. E, por muitos anos (até 1877), Nietzsche acreditou que a arte de
Richard Wagner fosse tal ressurreição. Contudo, a partir da ruptura com o
compositor, Nietzsche viu-se sem uma referência artística sólida e,
provavelmente, pensara em si como o artista dos novos tempos. Vale destacar que
seu gosto pela poesia vinha desde a infância. E, aos 14 anos, quando começou os
estudos no renomado colégio de Pforta, sua admiração pela poesia e pela música
aumentou consideravelmente.
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Curt Stoeving, “Nietzsche na Varanda”, 1894. |
Citação de “Assim falou Zarathustra”: “Que importam a minha paixão e a minha
compaixão? Acaso aspiro à felicidade? Eu aspiro à minha obra!”
Não é por
acaso que Nietzsche prioriza a linguagem poética e o aforismo em seus textos.
Sua principal obra, “Assim falou Zaratustra”, é, na verdade, um romance
filosófico, com enredo e personagens.
Embora
escrevesse poesia desde muito jovem, é na obra “A gaia ciência” (publicada em
1882 e republicada em 1887 acrescida de prefácio, um quinto capítulo e mais
poemas) que Nietzsche expõe pela primeira vez, de forma mais acabada, seus
poemas. Abaixo um deles:
Consolo para
iniciantes
Vejam a
criança em meio aos porcos que grunhem,
Desamparada,
com os dedos dos pés dobrados!
Não pode
senão chorar, somente chorar –
Aprenderá
algum dia e se erguer e andar?
Não receiem!
Logo, creio,
Poderão
vê-la dançar!
Quando se
puser sobre as duas pernas
No entanto,
é em “Ditirambos de Dionísio” que sua veia poética salta mais forte. Na
definição mais restrita, ditirambo é um canto grego feito em louvor a Dionísio,
que depois é acompanhado de dança e música de flauta. De modo mais abrangente,
designa um poema que exalta os prazeres da vida. A última obra deixada por
Nietzsche – cujo título inicial era “Canções de Zaratustra” – é composta por
nove poemas que foram escritos em diferentes momentos de sua vida, a partir de
1883, e reunidos sob este nome em 1888 (alguns deles aparecem sem título na
parte IV de “Assim falou Zaratustra”). Abaixo um dos poemas, traduzido por
Paulo César de Souza:
O sinal de
fogo
aqui, onde
entre mares cresceu a ilha,
pedra de
sacrifício repentinamente erguida,
aqui acende
Zaratustra, sob um céu negro
seus fogos
das alturas –
sinal de
fogo para navegantes desnorteados,
ponto de
interrogação para os que tem resposta.
Esta chama
de ventre esbranquiçado
–
as frias distâncias vão as labaredas de sua cobiça,
dobrando o
pescoço para alturas sempre mais puras –
uma cobra
que verticalmente se ergue: impaciente:
este sinal
eu coloquei à minha frente.
Minha
própria alma é esta chama:
insaciável
de distâncias novas
seu quieto
ardor lança ela para o alto.
Por que
fugiu Zaratustra dos bichos e dos homens?
Por que
furtou-se de repente a toda terra firme?
Seis
solidões já conhece ele –,
mas o
próprio mar não lhe era solitário o bastante,
a ilha
deixou-o subir, no monte ele se tornou chama,
buscando
agora uma sétima solidão
lança ele o
anzol por sobre a cabeça.
Navegantes
desnorteados! Destroços de velhos astros!
Vós, mares
do futuro! Céus inexplorados!
a tudo que é
solitário lanço agora meu anzol:
dai resposta
à impaciência da chama,
agarrai para
mim, o pescador dos altos montes,
Matheus
Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP.
Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e em
Comunicação Social. É professor, artista plástico e escritor, autor do romance
“O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016) e do livro de contos “Violeta velha e
outras flores” (Patuá, 2014). Está lançando Amortalha, livro de contos, também
pela Patuá.
Lola
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