“Não me é fácil viver comigo. Parece que estou sempre
em guerra civil”
A infância, os irmãos, os pais, o avô, os
amigos, as mulheres. Todas as mortes. Os amores. África e os seus lutos... A
inexplicável vontade de escrever. E uma conversa sem outro rumo que não sejam
os afetos do escritor
Fechado “na sua torre de livros”, com duas
pilhas de manuscritos em cima da secretária, e novos capítulos a nascerem
laboriosamente, naquela letra embrionária e ínfima, António Lobo Antunes
iniciou esta longa conversa anunciando o fim. Não é que já não o tivesse feito
antes. Levado, como também agora, pelo medo, o terror, de repetir-se... Com
Harvard no encalce, e as traduções a sucederem-se em línguas tão distantes como
o coreano, António-escritor falou provavelmente menos de livros do que de
emoções. A morte do irmão Pedro, ocorrida há alguns anos, no preciso dia desta
conversa, e a perda do seu irmão João em outubro de 2016 fez com que
sobressaísse o António-menino, cicerone da sua infância e dos seus amores.
Porque não foi
ver o filme “Cartas da Guerra”?
Não quero ver. Vou-me emocionar. Vi um trailerzito que a Zezinha [a filha mais
velha] me mostrou no telemóvel, comecei a chorar. E de certeza que não é como
aquilo lá se passava, não foi no mesmo sítio. A coragem daqueles rapazes...
Eram uns miúdos. Eram extraordinários. O maior orgulho da minha vida é ter o
amor deles. E eu era bonito que me fartava, bolas! As mulheres da idade da
minha mãe metiam conversa comigo na rua. Era um assédio! Agora sou um monstro.
Ainda agora
[antes da entrevista começar] se queixava de não conseguir almoçar num
restaurante sem ser incomodado...
Bom, não muda muito [risos].
Mas deixou de
aparecer, de dar entrevistas, de promover os livros...
E também deixei de viajar. Não tenho saído para o estrangeiro. Vêm os convites
e não vou. Sabe, eu só vou escrever mais dois livros. Está completamente
decidido na minha cabeça. Vou acabar este e fazer outros dois. Quero acabar em
2020. Fica um número redondo.
Como fica
redondo se começou a publicar em 1979?
Tenho mais dois livros. O que está pronto chama-se “A Última Porta Antes da
Noite”. E há outro em que uso no título uma frase do Chandler: “Qualquer Coisa
Mais Que a Noite”. Gosto muito do Chandler. Ele escreve: “A rua estava escura
de qualquer coisa mais que a noite.” Esta frase faz-me sonhar. Às vezes penso
como Verdi. Aos 82 anos disseram-lhe: “Porque é que não escreve a sua
autobiografia?” E ele respondeu: “Já levei 60 anos a maçar as pessoas com a
minha música, e agora vou maçá-los com a minha escrita?” Já é muito livro, não
é? É uma obra bastante extensa, apesar de tudo.
E é uma obra
muito autobiográfica...
São todas. Não sei qual era o escritor que dizia: todos os livros são
autobiográficos, sobretudo “As Viagens de Gulliver”. Acaba-se a falar só de si
mesmo, porque não há mais nada, mais material aonde ir buscar, a não ser a si
mesmo. Todos os livros são autobiográficos. Acabamos por só falar daquilo que,
no fundo, conhecemos.
Porque é que
insiste nessa data? Até já a escreveu numa crónica...
Se eu acabar em 2020 ainda não estou xexé. Se acabar agora este “Até Que as
Pedras Sejam Mais Leves Que a Água”.
De onde vem
este título?
Esse apareceu-me na cabeça. Todo esse material dou a um americano de Harvard
[Jeff Love] que está aqui durante três anos só para olhar para mim.
Está a estudá-lo?
Sim. É professor catedrático.
O que ele faz?
Conversa consigo?
Nem isso. Vê-me trabalhar, pede-me para ler estas versões [aponta para um monte
de folhas]. Fica tudo riscadinho...
Nessas
letrinhas tão minúsculas?
Não. Depois passo a limpo para folhas A4 [numa letra maior]. Faço uma data de
versões. Os meus pais não queriam que eu escrevesse. Arranjei estes blocos [A5]
do hospital para escrever com um livro de História aberto [ainda escreve]. Se
ouvisse passos mudava as páginas. Tinha a certeza de que se trabalhasse,
trabalhasse, trabalhasse... Escrever é uma questão de trabalho. Comecei por
perceber que estas folhinhas [onde escreve] valiam muita massa quando estava na
Transilvânia. Havia uma feira do livro, e apareceu-me uma senhora com uma
destas folhas. Perguntei-lhe: “Mas onde é que a senhora arranjou isto?” “Num
leilão.” Como é que aquilo foi parar à Roménia? Eu dava capítulos inteiros a
amigos. É como dar um quadro a amigo e ele ir vendê-lo.
Descobriu qual
era o amigo?
Não. Pensei: “Bolas, que importante que eu sou.” Um leilão na Transilvânia!
E nunca pegou
no computador?
Não, não sou capaz, ainda tentei em miúdo com a máquina de escrever do meu avô.
Usa
dicionários?
Não, não tenho. Para quê? Todos esses livros que vê em cima da mesa são do
americano.
E a presença
dele não o incomoda?
Não. Ele está calado. Eu também. Estou a escrever. Ele também. Depois almoçamos
juntos. É agradável. Estava sempre aqui sozinho.
Onde é que o
conheceu?
Conheci-o em Nova Iorque. Pensava que ele pertencia à editora. Ele tinha vindo
da Carolina do Sul para me conhecer. Eu ia dar uma entrevista na Public
Library. Eu e o Mike Tyson, que é inteligente que se farta, um desportista...
Ainda lhe passa
pela cabeça fazer um livro sobre boxe...
Às vezes passa-me. Gostava muito de boxe. Jogava boxe.
A sério?
A sério não. Se levasse um murro deles... Treinava! O boxe é muito bonito. Era
uma brincadeira. O meu pai organizava combates de boxe entre nós [irmãos] na
casa de banho, com a porta fechada à chave para a minha mãe não entrar...
Éramos miúdos. O meu pai dava-nos umas luvas e tinha um despertador para marcar
os rounds. Ainda vi jogar o Belarmino. Isso do boxe era uma brincadeira. Eu não
era nada de especial, mas não era mau. Joguei hóquei mais a sério, e futebol,
quando era miúdo, porque o meu pai tinha sido internacional pelo Benfica, na
modalidade de hóquei em patins. Com três anos punha-nos a andar de patins. Por
um lado, dava-nos desporto, por outro incutia-nos respeito e admiração por um
livro, um autor, um poeta, e ao mesmo tempo o horror à homossexualidade...
Mas o António
não tem medo de expressar o amor que tem por outros homens...
Mas os homossexuais não me beijam. O Eugénio [de Andrade] nunca me deu um
beijo. Era uma altura em que aquilo era muito escondido. Não sei muito bem. Nem
nunca fui assediado. Havia homens que se encostavam a nós quando íamos de
Benfica até Sebastião da Pedreira. Nunca tive muita sorte.
E com as
mulheres?
Mulheres nunca tive muitas.... Ter nunca temos, podemos ter estado.
Depois do amor
não fica nada?
Os gregos diziam que depois do amor todo o macho é triste menos o galo. Já viu
como os machos se afastam logo. Até os homens se levantam logo com desculpas
várias... E as mulheres querem ficar abraçadas. Uma relação monogâmica é uma
coisa muito boa. Deixa de haver mentiras. Nós, homens, não sabemos mentir.
Dizemos uma coisa e passados 15 dias dizemos outra completamente diferente,
porque entretanto já nos esquecemos. Mas elas não se esqueceram. O meu avô foi
apaixonado pela mulher toda a vida. Deve ser tão bom, tão bom. Um homem sozinho
não pode ser feliz.
E uma mulher
pode?
Pode. São muito mais fortes do que os homens. Aguentam muito melhor a solidão.
São mais corajosas diante da doença. Vi isso quando estava a fazer quimioterapia.
Nunca viveu
sozinho?
Então, não vivi! Quando me separei da Zé [primeira mulher] estive seis anos
sozinho. É mau. É mau entrar numa casa e ouvir o eco da nossa tosse. Todos os
homens têm muita dificuldade em estar sozinhos... Não é? Se eu escrever muito estou
ocupado.
Se escrever já
pode estar sozinho?
Não vou a bares. Nunca apanhei uma bebedeira na vida, nunca tomei drogas. Acho
que sou como o Obélix, caí no caldeirão quando era pequeno. Agora penso: “Se
deixo de escrever o que é que faço?” Ponho-me a ler... Leio oito horas por dia.
Ao fim de uma semana estou farto de ler. O que é que eu vou fazer?
Por isso é que
não vai deixar de escrever em 2020...
Isto é muito difícil. Isto chupa tudo. Chupa tudo. E depois se me começo a
repetir? Se calhar já me repito agora e não me dou conta... Gostava de fazer
poesia mas não tenho talento.
E se tentar
todos os dias?
Não tenho talento. Quando a Zé morreu [de cancro] fiz um soneto para pôr lá no
cemitério da aldeia. Eu não sou poeta: “Não sou grande espingarda na alegria /
e quanto à vida estamos conversados: / no tempo em que de amor viver soía /
soía eu em Angola com os soldados. / Depois andei aí por outros lados / a
espiar-te de longe e não sabia / que o tempo em que de amor viver soía / eram
minutos poucos e contados. / Tinhas pescoço alto: não tens nada; / uns anéis no
caixão em Abrigada / o restolhar do vento pela serra. / Ao tempo que isto foi:
/ não faz sentido / tentar ouvir-te, querer falar contigo / como se houvesse
sílabas de terra.” Dei às miúdas para pôr numa lápide em Abrigada.
O cancro é
horrível...
E vai continuar a ser. Segundo os oncologistas, vai haver cada vez mais. Mas os
resultados são cada vez melhores e as sobrevidas são cada vez maiores. O João
tinha um cancro na pele. Era um sinalzinho, de dois milímetros, e foi muito
difícil. Desde os 18 anos que a Zé tinha uma fé em mim. Oxalá não a tenha
desiludido! Onde estiver há de poder ler-me, como diz um homem de que gosto
muito, o Frei Bento Domingues. Eu digo ao Bento: “Depois morro e o que é que eu
faço?” “Continuas a escrever.” “E quem é que lê?” “Descansa que leem.” Tenho de
acreditar nele, ele é tão íntimo de Deus que tem de saber essas coisas.
Essa conversa
de que vai deixar de escrever já tem no mínimo dez anos...
Tenho muito medo de começar a repetir-me. É inevitável. O Simenon tinha razão.
Aos 70 anos partiu o lápis. Foi um grande escritor e foi mal avaliado. Os
últimos livros de Tolstói... Tenho medo de escrever porcarias. De não ter
sentido crítico. Os escritores que vivem muito tempo começam a fazer porcarias
e não percebem... tenho medo que me aconteça isso. A crítica tem sido generosa
em todo o mundo. Quando publiquei “Os Cus de Judas”, recebi a carta de um
agente norte-americano, Thomas Colchie. Pensei que era brincadeira: “Vais
conquistar o mundo.” Eu dizia: “Não vou nada.” Porque ninguém queria os meus
livros em parte nenhuma. Um dia ele disse: “Vem cá, a Random House vai
publicar.” E eu fui todo contentinho. Fui recebido pelo editor num edifício
enorme. Perguntei-lhe o que achou do livro. “Não li.” “Se não leu porque vai
publicar o livro?”, perguntei-lhe. E ele respondeu-me: “Porque se for mau não
compro mais nenhum livro a este agente.” Tivemos a sorte de ter [recensões] no
“The New York Times”, no “Washington Post”, no “Los Angeles Times” e no
“Chicago Tribune”. Quem tem estes quatro jornais tem o mundo. Dos países onde
não me queriam publicar começaram a aparecer pedidos de traduções. Foi sorte.
Ou talento?
Ter uma crítica na primeira página do “The New York Times”, escrita pelo Ariel
Dorfman foi sorte.
Também foi
sorte o livro ter chegado a Nova Iorque através de um brasileiro...
Sim, o Márcio Souza. Era um homem de Manaus da minha idade, que estava
traduzido nos EUA, e tinha muito sucesso. Foi Maria Helena Mira Mateus,
professora de Letras, que lhe deu o livro. Ele foi por Nova Iorque e deixou o
livro ao agente. Está a ver a generosidade dele?
Voltou a vê-lo?
Sim, ficámos amigos. Foi assim que fiquei com uma série de amigos brasileiros,
o João Ubaldo Ribeiro, e sobretudo o Jorge, o Jorge Amado. Era um homem sem
inveja nenhuma. Tinha para aí uns vinte Picassos em casa. A filha, Paloma
Amado, era afilhada de Picasso, e o filho era afilhado do Pablo Neruda.
Estava-me sempre a dar beijos e quando a Zélia, a mulher, dizia alguma coisa,
ele respondia: “Gosto de lamber meus filhotes...” Não tinha inveja. Se ele
achava que um miúdo era bom apoiava-o. Tenho tantas cartas do Jorge escritas
numa máquina velha, todas emendadas à mão... E hoje, quem é que lê o Jorge?
Ninguém... Levava porrada no Brasil que se fartava. Nunca o vi amargo. Tinha
imensa graça e umas amigas giras, como a Gal Costa. Tudo isso era ótimo!
Fizemos uma viagem em França com uma mulher genial que era a Gisèle Freund, a
célebre fotógrafa que retratou a Virginia Woolf, o Joyce...
Uma das vezes em que disse que ia deixar de escrever foi antes de ter
cancro...
Sabe, eu perguntei ao médico quantas chances tinha. Tinha morrido muita gente
conhecida com o mesmo cancro. Disse-me 20 por cento. “Se eu te dissesse 80 só
pensavas nos outros 20.” Estava convencido de que ia morrer e mandei levar os
papéis... Mal me podia mexer, estava cheio de tubos, algaliado, com fraldas...
Fiquei bem. Foi há dez anos. E depois tive mais dois cancros dos pulmões, há
uns três anos. A quimioterapia desses dois foi horrível.
Porque não
deixou de fumar?
Porque me dá prazer. Estou a lembrar-me de uma frase de Oscar Wilde: “Resista a
tudo menos às tentações.” Dá-me prazer. Depois, quando estou a escrever, sem
querer fumo. Agora tenho tentado comer chocolates...
O médico não
lhe disse para deixar de fumar?
O médico disse. Como dizia o Torga, o destino destina, mas o resto é comigo. O
que é que eu posso pedir mais à vida? Podia fazer mais quatro ou cinco livros,
e depois? Depois ficam papéis.
Quando decide
ser escritor já era para sobreviver à morte?
Não foi uma decisão. Desde que me lembro, desde os 4 ou 5 anos, o que me
interessava era escrever. Às vezes tinha um jantar marcado com uma rapariga e
acabava por ficar a escrever. Sentia-me culpado quando não escrevia, muito
culpado. Depois, parece que os livros foram aparecendo em contínuo.
De onde é que
vem essa vontade?
Não sei. Éramos seis irmãos. O Pedro morreu. Hoje é o dia da morte do Pedro.
E do
aniversário do Miguel...
Tinha um grande amor pelo Pedro. Muito grande. E a morte do João... Éramos
muito unidos. Nos primeiros cinco anos a minha mãe teve quatro filhos. Com oito
meses tive uma meningite e estava em coma. Deve ter sido terrível. Era o único
filho que eles tinham. O meu pai tinha 26 anos e a minha mãe 24. Ele estava na
tropa em Lagos. O bebé entra em coma e eles vêm para Lisboa. De comboio de
Lagos para Faro, e de Faro para Lisboa. Demorava-se mais de um dia. Ainda hoje
admiro a coragem daqueles dois miúdos. Vieram com um bebé em coma, a morrer,
para Santa Marta, que era o hospital no qual o meu pai trabalhava. Ele foi
estudar no microscópio, para ver qual era a bactéria, porque ele tinha tido um
irmão que tinha tido uma meningite. E foi o meu pai que me fez uma punção
lombar. É preciso ter coragem para fazer isto. Nunca dei valor a isto. Demorei
muitos anos. Eu estava a morrer, o meu avô, que se chamava António Lobo
Antunes, fez uma promessa de me levar a Pádua para fazer a primeira comunhão. É
estranho, porque comecei a ficar bom. Ainda hoje tenho uma devoção por Santo
António [aponta para uma escultura que tem em cima de um móvel na salinha onde
escreve]. E lá fui fazer a comunhão a Pádua quando tinha 7 anos. Portugal,
Espanha, França e Itália, de carro... O meu pai e o meu avô à frente e eu ao
meio com um volante de plástico. Nunca mais esqueci essa viagem. Obrigavam-me a
escrever um diário.
Ainda tem o
diário?
Não sei o que lhe aconteceu. Quando estávamos doentes, o meu pai vinha do
hospital, sentava-se no nosso quarto, e lia-nos em voz alta os autores de que
ele gostava e que achava mais apropriados para nós. Não eram os que me
interessavam mais. Por exemplo, quando começava a ler aquele poema do [Manuel]
Bandeira, ‘Vou-me Embora Pra Pasárgada’, quando chegava aquela parte “Lá sou
amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei”, ele
não lia. A relação com o meu pai sempre foi muito distante. Mas ele tinha uma
fé qualquer em mim que nunca percebi. Não era dito por ele. Ele dizia-o a
outras pessoas.
Não era por ser
o filho mais velho?
Não. Os meus irmãos davam-lhe muitas mais alegrias. O João só deu alegrias aos
meus pais. Foram todos bons alunos. Mais nenhum escrevia. Eu fui muito precoce
e, segundo a minha mãe conta, aos dois anos falava espanhol. Aprendi a escrever
muito cedo. Foi a minha mãe que nos ensinou a ler a todos. O meu pai começou a
dar-me livros para ler, e eu ia lendo. Aos 13 ou 14 anos, ele tinha uma segunda
edição de “Mort à Crédit”, do Céline, e eu fiquei deslumbrado. Pensei: “O que
se pode fazer com as palavras!” Escrevi uma carta ao Céline a pedir-lhe um
retrato, como se ele fosse um ator de cinema. Ele respondeu-me e andei anos com
o envelope no bolso, onde ele tinha escrito o meu nome. Foi uma alegria tão
grande! Ele a dizer: “Queres ser escritor? Isso não é boa ideia, estuda,
namora. Porque se fores escritor não podes fazer mais nada.” Nunca mais me
esqueço disto: eu ter escrito uma carta ao Céline e ele ter-me respondido...
Há pouco
falámos de hoje ser o dia em que morreu o seu irmão Pedro e o dia em que nasceu
o seu irmão Miguel. Quando os nascimentos e as mortes se juntam no mesmo dia...
Sabe, tive três cancros. As coisas a que sobrevivi.... A uma meningite, a uma
tuberculose. Estava a fazer quimioterapia. Estava em casa sem forças e o Pedro
foi ver-me com a minha mãe e de repente segura-me nos ombros e diz-me com os
olhos cheios de lágrimas: “Não me morras! Não me morras!” O Pedro era o mais
moreno de todos. Éramos muito unidos. A morte do João custou-me horrores. A
coragem dele! Em Benfica, levávamos uma vida bastante isolada, numa casa
grande, com jardim... Não me lembro de ter discutido ou brigado com um irmão.
Também não houve invejas. Sou eu, depois o João, depois o Pedro, que era o
arquiteto, depois o Miguel, que está na Culturgest. É uma joia, a bondade em
pessoa. Depois o Nuno, que é médico, e o Manuel, que teve uma carreira
fulgurante na União Europeia e agora está em Londres. De todos, o Manuel é o
que conheço menos, porque ele era pequeno quando fui para a guerra. Os outros
conheço-os bem.
Crescer entre
rapazes não criou um grande afastamento das mulheres?
O meu sonho era ter uma irmã. E o deles! Nunca se casaria, que nós não
deixávamos [risos]...
Era uma irmã só
para vocês?
Claro, e o meu pai também queria ter uma filha. Quando o Nuno nasceu, que era o
quinto, o meu pai disse à minha mãe: “Diz tu que é um rapaz, que eu já tenho
vergonha.” Ele tinha o sonho de ter uma filha. E eu, pelo menos eu, o de ter
uma irmã. Naquela altura, as raparigas não se misturavam com os rapazes.
Andámos sempre em escolas do Estado, porque os meus pais não tinham dinheiro
para mais. Entrei cedo, com 16 anos, para a faculdade. Aí, de repente, descobri
as raparigas. Na cantina universitária havia montes de raparigas de Letras.
Mas, depois, eu era tímido, ia com o tabuleiro para o cantinho e virava-me para
a parede.
Tinham de ser
elas a tomar a iniciativa?
Fingia que não percebia. Era muito tímido. Não estava habituado.
Acaba por
conhecer a sua primeira mulher na Praia das Maçãs?
Sim, a Zé. Ela tinha 18 anos. Anunciei-lhe logo que era o maior escritor do
mundo! Ela começou a rir-se, claro. Ninguém acreditava nisso. Só eu! Estive 30
anos sem publicar. Pensava: “Ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é
isto.” Era de uma teimosia! Fomos viver para um quarto alugado, porque eu não
ganhava nada e ela ainda estava na faculdade. Só tínhamos um quarto e uma casa
de banho. Ela cozinhava no peitoril da janela. Só havia uma mesa pequenina e
ela dizia-me: “Escreve!” Tinha uma fé que nunca partilhei. Só fazia merda. Não
era bom, mas sabia que ia fazer coisas do caraças. Era tão mau, tão mau, tão
mau. A minha poesia era uma porcaria. A minha prosa era uma porcaria.
É por isso que
não gosta das cartas que escreveu na guerra?
Não sei. Não as li, não é por serem más ou boas. Repare, vinha um soldado e
dizia vem um avião daqui a 20 minutos. Começávamos todos a escrever.
Não tem
coragem?
Tenho medo de me comover. Era uma altura muito violenta, sabe, sofria-se muito
ali.
Calculo que não
seja só a guerra, há também o fim da vossa relação...
A relação nunca acabou. Quando mandava o cheque por causa das miúdas enviava
sempre um bilhete “um beijo do António”. Todos esses papelinhos ficaram
guardados. Ela era muito bonita. Inteligente. Tinha o feitio difícil. Mas eu
não gosto de pessoas de feitio fácil.
E porque é que
não voltou para ela?
Isso é uma coisa que lhe posso dizer a si. Mas não para um jornal.
Muitas mulheres
gostariam de ter recebido aquelas cartas...
Aquilo é escrito por um miúdo a uma rapariguinha. Eu quis casar-me porque
achava que ia morrer e queria deixar um filho ou uma filha. Estava no quinto
ano de Medicina. Tinha uns estágios de Obstetrícia. Uma parteira que lia as
mãos disse-me: “Você vai morrer em Angola.” Nunca mais pensei naquilo. Só me
lembrei quando soube que ia para Angola. Queria ter um filho porque pensava que
assim ia continuar a estar vivo, o que é uma treta. No primeiro mês veio a
menstruação. Ia-a matando [risos]... Nunca vi a barriga, e isso é uma coisa que
não perdoei.
À guerra?
Ao Governo que havia aqui. Soube que ela tinha nascido por telegrama, letra a
letra. Queria um rapaz, porque queria chamar-lhe António, como o meu avô.
Não houve uma
época em que gostava de ter tido outro nome?
Quando era pequenino queria ser Sérgio. Mas tenho orgulho de ter o nome do meu
avô, que era um homem de grande bondade. Gostou tanto de mim... Estou tão grato
por isso. Levar um miúdo a Itália, já viu? Ainda me lembro tão bem de tudo. Os
museus é que eram uma chatice, com o meu pai a dar-me explicações enormíssimas,
em frente a cada quadro. Depois havia os escarradores. Eu só gostava dos
escarradores. Queria lá saber dos quadros! Velázquez? “Meninas”? Queria lá
saber. Hoje já não é assim.
No dedicatória
de “Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000)” escreve: “Para a Zé, que
há de encontrar maneira de ler este livro.” É para a sua ex-mulher, que morreu
em 1999...
Eu devo ser parvo, mas acho que as pessoas de quem nós gostámos continuam a ler
o que nós escrevemos. O Bento diz que não vai a cemitérios porque não está lá
ninguém. Então, onde é que estão as pessoas de quem gosto? Andam por aí. E
quantas vezes a gente lhes sente o cheiro e a voz. Nunca lhe aconteceu? E da
nossa boca saem frases de pessoas que já cá não estão. Grandes físicos e
matemáticos do século XX são todos profundamente crentes e falam sobre Deus.
Tem de haver alguma coisa, alguém teve de carregar no botão, como dizia o
João...
Ele era crente?
Nunca falámos sobre isso. Nunca se falava sobre Deus. Estou a lembrar-me de um
verso do Walt Whitman: “Gosto de animais porque não discutem a existência de
Deus.” O meu pai nunca foi a uma igreja, a uma missa. Já no fim da vida,
arranjei coragem. Atrevi-me a perguntar-lhe: “O pai acredita em Deus?” E ele,
que trabalhava com cérebros, fez um silêncio muito grande. A resposta foi: “O
nada não existe na Natureza.” Voltou a calar-se. Aquilo chegou-me.
E o António tem
fé ou não tem fé?
Eu acredito em Deus, mas estou sempre zangado com ele. Disse isso ao Bento. Ele
respondeu-me: “Ainda bem.” Eu até nem me zango. Sou terno, afetuoso. Mas a fé
daquele homem, a alegria dele é extraordinária... É um homem espantoso.
Contou-me que disse a missa de corpo presente quando a mãe morreu, e quando
voltou à aldeia lá no Minho a primeira frase para o pai ao abrir-lhe a porta
foi: “E a mãe?” Ele é um homem muito feliz. “Como é eu posso não ser feliz?”,
diz o Bento.
Não é o António
que diz que nascemos para a alegria?
Não sou uma pessoa muito alegre. Sou introvertido. Fechado. Cheio de dúvidas.
Não me é fácil viver comigo. Parece que estou sempre em guerra civil.
A psiquiatria,
que era a sua especialidade, não o ajudou?
Eu queria fazer cirurgia. Tinha boas mãos. O cirurgião tem de ter boa
capacidade de decisão. Simplesmente a cirurgia ocupava tudo. Eles não fazem um
mês de férias. Fazem uma semana, cinco dias. Treinam as mãos em casa. Um amigo
que é oftalmologista treina com fios com uma espessura de um décimo de um
cabelo. Tem se operar, operar, para fazer a mão. Isso ia tirar-me tempo. Eu
queria escrever. Acabei por ir para psiquiatria, quando vim da guerra, e
gostei. Foi por influência de um homem, o João dos Santos, que foi quem
introduziu a psiquiatria pediátrica em Portugal. Dava umas sessões aos sábados,
às oito de manhã, no Hospital de Santa Maria. E eu, que detesto levantar-me
cedo e que não ia às aulas a essa hora, ia às sessões dele. Aparecia um homem
qualquer na consulta e ele falava com ele. Como o homem tinha uma loja de
brinquedos só falavam de brinquedos. O doente saía e o doutor reconstruía a
história daquele homem desde a infância. Estava tudo ali. Pensei, bolas, também
quero ser bruxo! Mas ser como o doutor João dos Santos era uma coisa muito
difícil. Agora, que lhe dava um certo conhecimento do outro...
A psiquiatria
não lhe deu um certo conhecimento de si próprio?
Fiz análise. Ainda andei nove anos naquilo. Depois o gajo não me queria deixar
sair de lá, dizendo que eu não me submetia. “Não vejo nenhuma razão para me
submeter a si.”
Não aprendeu
nada?
Não sei. Algumas coisas. Eu punha muito em questão os pressupostos freudianos.
Freud estava a falar dele mesmo.
O passar dos
anos não o ajudou a lidar consigo?
Não sei. Tive a sorte de ter amigos muito bons. O meu avô dizia, um homem pode
não ter dinheiro, mulher, trabalho. Se tiver amigos não é pobre.
Ainda há portas
dentro de si que não abre?
Toda a gente, não? Por uma questão de pudor. O meu pai era um homem de grande
pudor e puritanismo e até certo ponto transmitiu isso aos filhos. Acho que
todos nós temos isso, embora os meus irmãos, ou alguns deles, tenham fama de
ser mulherengos. Não sei. A minha mãe não era terna. Era uma mulher muito
inteligente e eu era o filho mais problemático que ela tinha. O meu pai dava a
chave de casa aos filhos aos 14 anos e dizia: “Não façam nada de que se possam
arrepender.” Nunca dizia, isso é mau. Dizia, isso é estúpido. Dava muito mais
resultado.
Ninguém queria
parecer estúpido...
E a minha mãe, que era muito inteligente, protestava com ele: “Pois, todo esse
investimento na inteligência... Há coisas mais importantes, a bondade, por
exemplo.” E é verdade. Tem toda a razão. Toda. Havia uma cadeira de psicologia
na faculdade e o professor fez-me os testes. Eu tinha 187 [QI]. Mas isto não
quer dizer nada. A minha mãe costumava dizer que não há nada mais estúpido do
que um homem inteligente. E tem toda a razão. Toda. A quantidade de coisas
estúpidas que fiz ao longo da vida...
Como, por
exemplo?
Fui ingrato algumas vezes. Não me perdoo. A ingratidão é uma coisa horrível. Eu
estava a escrever “Os Cus de Judas”, na altura em que era interno do professor
Eduardo Cortesão, de quem eu gostava muito. Ele tinha uma casa na Praia da Luz
e eu ia para lá escrever. Ele ia para a praia com a mulher e eu ficava a
escrever. À noite, quando ele voltava, lia-lhe o que tinha escrito. Ele dizia
para a mulher francesa: “Marie Claire, estamos a assistir um momento
histórico.” Ainda não tinha publicado nada! Fui ingrato com ele. Não me perdoo.
Ele fez tudo por mim, deixou-me o consultório cheio. Larguei aquilo para escrever...
Depois, o primeiro livro ninguém o queria publicar.
Foi Daniel
Sampaio que o entregou ao editor da Vega, Assírio Bacelar...
Sim, depois tivemos umas chatices, por causa de umas edições piratas. O livro
saiu numa editora muito pequenina em julho, e em setembro tinha vendido uma
loucura. Mas sem aceitação crítica.
O primeiro
jornalista a falar consigo foi o Rodrigues da Silva.
Tão bom! O Zé Manel [Rodrigues da Silva] foi toda a vida um menino. Escreveu-me
uma carta. Não o conhecia de parte nenhuma. Tinha acabado de comprar o livro
numa livraria do Apolo 70. Naquela altura, os livros ainda não eram pagos para
estarem nas montras das livrarias. Agora é tudo pago pelas editoras. As pessoas
entram numa loja e viram sempre à direita. Os livros que estão à direita pagam
mais e até os livros que estão em pé. É um negócio inacreditável. É tudo pago,
e agora estão-se a vender muitos menos livros. Há uns tempos fui à Gulbenkian
comprar uns livros, entre eles um de Diderot. Perguntei-lhes quantos vendem por
ano? Três. Mas não faz mal. Vão continuar a vender todos os anos. São os
long-sellers.
Gostava que os
seus livros fossem sempre long-sellers?
A minha aceitação foi feita de fora para dentro. Havia uma aceitação muito
grande pela crítica universitária enquanto aquelas pessoas que escrevem
resenhas nos jornais me davam porrada. Gente que não percebe nada de livros.
Depois dão estrelinhas... “Memória de Elefante”, com todas as ingenuidades que
tem, já teve trinta e tal edições. Uma vez chegou-me uma edição e eu ia almoçar...
Pus-me a folheá-la e espantei-me. O livro não tem nada que ver com o que faço
agora. O que me surpreendeu foi a força do livro. Quer dizer... se eu fosse
editor pensava: “Este miúdo vai escrever coisas do caraças.” Mas é um livro
desequilibrado, cheio de defeitos, começa como a história familiar e acaba como
uma saga.
Hoje
preocupa-se com o equilíbrio nos livros?
Hoje, preocupo-me em escrever. Trabalho sem plano. Agora sei que a este livro
que comecei em julho faltam-lhe dois capítulos e meio. Escrevo de manhã, à
tarde e à noite.
O último livro
publicado acaba assim: “E seguimos os dois juntos dando as ancas até nos
dissolvermos na luz...” É a ideia que tem de morte: dissolver-se na luz?
Não penso muito na morte. Agora foi a morte do meu irmão João, de quem eu
gostava muito. Já a morte do Pedro me tinha custado horrores. A morte de um
amigo é uma coisa pavorosa. Quando morreu o Zé [Cardoso Pires] puseram o corpo
no Palácio Galveias. O ministro Manuel Maria Carrilho estava a cinco metros do
caixão numa conversa animadíssima, a gargalhar. Não imagina o que isso me
custou. Tive vontade de chegar ao pé dele... Agora, com a morte do João, era
gente, gente, gente... Ele sabia que ia morrer. Teve uma coragem... Uma coragem
extraordinária. Veio aqui de propósito. Estivemos ali [na sala] quatro horas a
falar. A falar não. Porque ele dizia: “Sabes sempre o que eu estou a pensar e
eu sei sempre o que estás a pensar.” Éramos os dois primeiros e muito próximos.
Dormíamos no mesmo quarto. Não precisávamos de falar para saber o que outro
sentia. Isto que a gente tem com os amigos, com o Zé, com o Dinis [Machado]. O
Dinis era um homem de muito talento e era tão despretensioso. Os bons
escritores eram humildes. O Zé era humilde, embora sofresse imenso com a
geração dele, o Vergílio Ferreira, o Abelaira, Saramago, com quem tinha uma
competição enorme. A melhor definição de Saramago é de [Juan] Marsé: “Non es un
escritor es un predicador.”
Qual foi a
história que teve com Saramago?
Nunca tive nada contra ele. Ele tinha-me um pó. Uma inveja. Nunca percebi
porquê.
Nunca houve uma
guerra?
Não, eu não sou malcriado. Conheci-o numa viagem ao Brasil. Apareceu aí uma
brasileira que andou com um poeta e levou ao Brasil uma série de escritores, o
Zé, o Fernando Assis Pacheco, o Saramago, o Egito Gonçalves, o Alexandre
O’Neill, de quem fiquei amigo. Eu era o mais novo de todos. Eles estavam todos
publicados no Brasil e eu não. No dia seguinte, aqueles velhos recebiam dez ou
15 cartas e eu zero. Nada. Com o Saramago nunca tive uma conversa. Nesse ano,
era também o primeiro ano daquele grande prémio da APE (Associação Portuguesa
de Escritores), e que o Zé ganhou com “Balada da Praia dos Cães”, contra o
“Memorial do Convento”, e o Saramago ficou numa fúria. O Saramago achava-se
mesmo um grande escritor. Eu sempre achei aquilo uma merda, ainda não o
conhecia. Sempre teve mulheres de direita enquanto se afirmava comunista. Nunca
correu riscos. Nunca foi preso. Nunca tive uma conversa com ele sobre livros.
Nunca houve uma
conversa?
Como havia de ter? Não há tertúlias. Não nos encontrávamos muito. Nunca tive
uma conversa com ele mas também não me interessava muito.
O último livro
publicado é sobre algo de que tem um certo receio, perder a memória... Como é
que nasceu?
Não sei. Na altura, vivia no Conde Redondo... Tenho medo de poder ofender
alguém. Havia uma atriz que morava ali perto com quem eu nunca tive nenhuma
conversa. Era uma mulher de setenta e muitos anos ainda interessante e ela não
tem Alzheimer nenhum...
Há livros que
nascem de pessoas que se cruzam consigo num momento?
Não, nem sempre. Uma vez anunciei um livro que se ia chamar “Regresso das
Caravelas” e houve um camelo que foi logo registar o título. Depois foi um
sarilho, ele queria dinheiro. Não sei porquê mas agora os títulos são
compridos. Este agora tem um título “Até Que as Pedras Sejam Mais Leves Que a
Água”. Aqui volto a África, a propósito de uma matança de porco numa aldeia
perto de
Lisboa.
Viu alguma
matança do porco?
O animal a gritar, a gritar, a gritar. É horrível. Fazia-se lá em Nelas e em
casa dos meus avós em Benfica. Aquilo impressionava-me imenso. A crueldade
daquilo. Depois, o porco é o animal mais parecido connosco. Aquilo é tão
humano.
Como é que
regressa a África?
É para acabar. Porque só faço mais esses dois livros... Não sei explicar. Se
soubesse explicar não valia a pena escrever livros. Queria meter tudo lá
dentro. A vida toda. Toda lá dentro.
Já lá vão
tantos romances, e depois há as crónicas...
Espanta-me que as pessoas gostem das crónicas. Jogo a vida nos livros. Houve
algumas crónicas que foram importantes para mim, que me comoveram, sobre homens
de quem eu gostava, que morreram, como o Eugénio de Andrade. O Eugénio tinha
gestos de uma delicadeza que não imagina. Nunca me falou de homossexualidade. Nada,
nada. Foi uma coisa boa que os livros me trouxeram, foi conhecer pessoas. O Zé
[Cardoso Pires] é que foi uma amizade de toda a vida. O Dinis [Machado], que
trouxe para a minha casa quando a mulher dele morreu. O Egito Gonçalves, o
Pedro Tamen, o Alexandre O’Neill. Também só gosto de homens mais velhos e
depois eles morrem.
Porque é que
não fala de amigas? Não as teve?
Tive duas grandes amigas. A Maria Velho da Costa. Nunca tinha publicado nada
quando voltei da guerra para o Hospital Miguel Bombarda. Ela estava lá a fazer
uma tese. Depois publicou “Português; Trabalhador; Doente Mental”. Ficámos
muito amigos. E a Agustina [Bessa-Luís]. Era uma mulher fascinante. A primeira
vez que fui ao Porto, ela estava à entrada de uma livraria qualquer e disse-me:
“Venho dar-lhe as boas-vindas em nome do Porto.” O Porto era ela!
Tinha alguma
coisa em comum com a Agustina?
Imensas coisas... Quer dizer, ela tinha uma alegria de viver que eu não tinha:
um imenso sentido de humor. Ela dizia: “Sou tão feliz com o meu marido que nos
deviam chamar Casal Garcia.” Tinha muita graça. O Eduardo Lourenço, de quem sou
muito amigo, dizia que lhe chamava rainha Vitória. Não era uma mulher fácil.
Quando não gostava podia ser arrasadora. Para ela, havia muito pouca gente com
talento. Nem sei como é que ela escrevia. Não fazia emendas. Deitava as folhas
para o chão, que o marido, que era um santo, apanhava. Ela tinha qualquer
coisa, muito bebida no Camilo, e o Camilo andou a beber nas fraldas do Filinto
Elísio. Mas ela tem qualquer coisa que os outros não tinham.
O que pensa
sobre o Nobel da Literatura deste ano?
Nem penso nisso. Pensava que o prémio fosse muito mais dinheiro.
Ouvia Bob
Dylan?
Claro, toda a gente ouvia.
Gosta?
É bom. Foi o que ganhou o Nobel, não é? É bom. Nunca comentei os prémios que
ganhei, não posso comentar aqueles que não ganhei. É idiota. Sei lá quais são
os critérios. Não sei. Agora, a poesia dele, a poesia dele é boa. As letras do
Paul Simon também são magníficas... Este prémio tem este barulho todo porque dá
mais dinheiro que os outros.
É só o dinheiro
que conta? E a história?
Não fica nada para a história. Quem é que ganhou há cinco anos? Já não me
lembro. Acho a lista do Prémio Jerusalém muito melhor. E então estes últimos
Nobel são muito mauzinhos. São os escritores que honram o prémio, não é o
prémio que honra os escritores. Porque é que o Tolstói, que morre em 1910,
nunca ganhou? Aquilo para mim é um mistério. Ganhei os prémios que mais me
comoveram. Quando foi o Prémio Europeu [The Austrian State Prize for European
Literature] comoveu-me ver os emigrantes portugueses a chorarem porque era a
primeira vez que a bandeira estava na chancelaria. Diga lá se isto não é melhor
que o Nobel? O Prémio Jerusalém, que tem uma lista excelente, começa com o
Bertrand Russell. Tem Borges, de que não sou grande fã, mas ele é bom. É uma
chatice. Há escritores de quem eu gosto que não são bons, e há escritores bons
de quem eu não
gosto...
Dê-me
exemplos...
Não teria escrito o que escrevi se não fosse o Blondin, que li com 13 ou 14
anos e que me maravilhou e com quem aprendi muitas coisas.
E também leu
muitos policiais?
Não, porque sou muito cagão. Depois descobri o Chandler e percebi que era um
escritor. É engraçado porque Egito percebeu que Conrad era um grande escritor e
Proust não. Como vê, todos temos estes pontos cegos e eu também devo ter. É
muito difícil. Estamos muito em cima das coisas. Não temos distância. Depois,
confundimos as razões porque gostamos ou não gostamos da obra. Há muitos
elementos afetivos. É muito difícil julgar. Confunde-se a pessoa com a obra e a
obra com a pessoa. Se uma pessoa é simpática estou muito mais disponível para
gostar daquilo que ela faz.
Pode não
conhecer a não ser através da escrita...
O [Robert Louis] Stevenson insistia que a primeira qualidade que um livro deve
ter é charme. Um livro sem charme não era bom. Há escritores que nos
entusiasmam quando somos adolescentes. É uma desilusão muito grande lê-los mais
tarde. Lê o Jorge Amado aos 15 e é um entusiasmo, volta a ler aos 40...
Alguns dos seus
livros só se poderão ler aos 40, não?
Não sei.
Como este
último...
Acha que um miúdo não entra nisso?
Não sei. Acho
que será mais difícil. É uma mulher acamada, a perder a memória...
Não sei se é sobre isso... O livro trata do que vai escrito dentro. Lembro-me
que me enterneceu escrever sobre a relação que ela tem com o pai. Napoleão, se
calhar, tinha razão quando dizia que havia mortos que é preciso matar.
Como a memória
dos mortos?
Uma vez estava na casa do [George] Steiner e ele disse-me: “Nunca ninguém está
preparado para morrer.” Ninguém está. Trabalhei muito com suicidas no hospital.
O suicídio era sempre o suicídio do outro, para viver eternamente. O meu
bisavô, que se matou, estava a matar o cancro que tinha. Não se estava a matar
a ele. O Steiner dizia que não se aguenta a ideia da morte porque não se
aguenta a ideia de não ler o jornal no dia seguinte. Não saber o que aconteceu.
Política?
Falamos ou não?
Não tenho nada para dizer. Nunca tive o coração à direita, mas nunca falei de
política. Ainda fui candidato pelo Partido Comunista. Foi uma coisa ingénua da
minha parte. Os políticos são repugnantes, de uma maneira geral.
Mas teve amigos
políticos?
Sim, Mário Soares.
Continua a
precisar de estar cansado para escrever?
Quando o lado crítico deixa de funcionar, as coisas saem com menos
espontaneidade. Vou para a cama de rastos. Durmo como um porco e não penso mais
no livro.
Não precisa de
tomar nada para dormir?
Não, não tomo. Às vezes tomo um Valium.
Os psiquiatras
tem tendência a automedicar-se...
Não sei, não conheço muitos. Têm mais suicídios do que as outras
especialidades.
Nunca sentiu
falta da medicina?
Não. Mas gostava de ser médico. Uma vez, apareceu ao meu pai uma senhora com um
problema neurológico. O meu pai perguntou-lhe: “Como é que a senhora faz as
coisas da casa?” Ela, uma mulher analfabeta, deu a melhor definição da dor que
alguma vez ouvi: “É tudo a poder de lágrimas e ais.” É uma definição de
sofrimento como eu nunca vi. Perfeita. As frases que ouvi! Uma vez, no Hospital
Miguel Bombarda ia a sair do carro e aparece-me o tipo que tinha aquilo que os
médicos chamam esquizofrenia. Ele deu-me a melhor lição de literatura que
alguma vez ouvi. Eu estava a sair do carro, e ele parecia que trazia dentro
dele um mistério e que me ia fazer uma confissão importantíssima: “Sabe, senhor
doutor, o mundo começou a ser feito por trás.” Eu pensei: “Porra! Escrever é
isto. É fazer por detrás. O mundo começou a ser feito por detrás.” Ouvi tantas
frases assim. Tudo a poder de lágrimas e ais. Uma camponesa analfabeta? Ouvi
tantas frases tão bonitas das pessoas. O que há de dor e dignidade nisto?
Já usou?
Não, não tenho coragem. É preciso merecer e eu não mereço. Uma ou outra usei.
In Expresso
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