Hannah Arendt
A passagem por Lisboa a caminho da liberdade
Sem pátria durante mais de duas décadas,
a filósofa alemã refugiou-se em Lisboa, em 1941, até conseguir partir para os
Estados Unidos. Os deputados do Livre na assembleia municipal propuseram agora
que se assinale a casa onde Hannah Arendt viveu. Para que não se esqueça o
passado e se reflicta no presente.
A casa onde Hannah arendt viveu, em
Lisboa, foi reabilitada RICARDO LOPES
Talvez muitos não saibam da curta estada de Hannah Arendt por Portugal.
Fugida da França ocupada pelo nazismo, a filósofa, judia e alemã, chegou a
Lisboa, em Janeiro de 1941, acompanhada pela mãe e pelo marido, o poeta
Heinrich Blücher. Estatuto: refugiada.
Os deputados do Livre na assembleia municipal querem que se perpetue a
passagem da filósofa por Lisboa. Por isso, na reunião de terça-feira daquele
órgão, apresentaram uma recomendação à câmara municipal, que foi aprovada por
unanimidade, para que a casa onde Hannah Arendt viveu na capital, entre Janeiro
e Maio de 1941, seja identificada com uma placa ou um pequeno monumento. Para
que se celebre a obra vasta da filósofa, para quem ser alemã e judia, com um
pensamento livre das amarras do regime, se revelou uma combinação
perigosa.
Ainda antes de chegar a Lisboa, em 1933 e com 27 anos, as perseguições aos
judeus e o seu envolvimento numa organização sionista obrigaram Arendt a fugir
da Alemanha, depois de ter sido presa. Hitler ascendeu ao poder, a filósofa
acabou por ir parar a Paris, cidade que havia de ser tomada pelos nazis em
1940. Foi colocada num campo de internamento, uma espécie de campo de
refugiados, mas conseguiu fugir.
Como destino tinha os Estados Unidos, para onde havia de conseguir fugir em
Maio de 1941 (e onde acabaria por morrer, em 1975). Mas não sem antes passar
por Lisboa, como tantos judeus, e se estabelecer numa casa, no número 6 da rua
da Sociedade Farmacêutica, hoje na freguesia de Santo António, que desemboca
junto à entrada traseira do Hospital de Santa Marta, no coração da
cidade.
Este é hoje um edifício recuperado, de linhas sóbrias, amarelado, e com
quatro andares que parece manter-se destinado à habitação. A fachada é rasgada
ao centro por varandas balaustradas em ferro. Não fossem os azulejos verdes, na
base, o painel de azulejos azuis e brancos no coroamento da casa, e a cabeça de
cavalo acima da porta da garagem, e o edifício passaria despercebido entre os
outros.
“É uma questão simbólica porque Hannah Arendt é uma das maiores filósofas
do século XX”, refere o deputado do Livre, Paulo Muacho, ao PÚBLICO. “Com o
drama dos refugiados que continua bastante presente, e sem resolução à vista, e
todos os ataques aos direitos humanos a que temos assistido, consideramos que
era importante manter a memória daquilo que se passou no passado e do que esta
figura da Hannah Arendt representa”, continuou.
Hannah Arendt DR
Também ela foi apátrida durante mais de duas décadas, quando a
Alemanha lhe retirou nacionalidade e a privou, por isso, dos seus direitos
fundamentais. O que, para ela, era o “fundamental ”, diz Hermenegildo Borges,
professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa.
“Andar de terra em terra, sem direitos, sem o direito de cidadania, que
para ela é fundamental, essa experiência limite de privação dos direitos,
levou-a a perceber que havia a necessidade de refundar o pensamento político”,
acredita o professor, perante a “fragilidade da racionalidade ocidental que se
pensava livre, democrática”.
Foi essa vulnerabilidade vivida em Lisboa, e em outras cidades da Europa e
dos Estados Unidos, que terá inspirado uma das mais relevantes obras da
filósofa, o manifesto “Nós, Refugiados”.
“Foi um pensamento reflexivo sobre uma experiência de sofrimento que ela
viveu. Não foi uma construção intelectual. Ela viveu a falência do ocidente, [a
ascensão] do totalitarismo nazi, do fascismo e do estalinismo, numa altura em
que estava em marcha a consolidação da democracia”, Hermenegildo Borges.
“Acho esta recomendação do Livre extremamente pertinente”, admite o
professor. Porque o seu pensamento talvez esteja mais actual agora do que há
60, 70 anos, admite, e porque “muitos dos seus receios se confirmam no momento
presente”.
“O direito a ter
direito é o direito de cidadania”
Para o docente, a filósofa deixou-nos o “desafio constante” de estarmos
“permanentemente em controlo”, vigilantes, para que não haja desvios de regimes
democráticos. Porque os perigos e ameaças continuam, não sob a forma de regimes
totalitários, como a história os descreveu, mas sob a forma de “ataques
terroristas ou do radicalismo islâmico”, elenca. Assim como a escalada da
violência, o renascimento de nacionalismos e do extremismo de direita, os
radicalismos a sobreporem-se aos ideais democráticos, a crise dos
refugiados.
“Imagine as pessoas que atravessam o Mediterrâneo e chegam sem documentos à
Europa. Elas têm a dignidade da pessoa humana, mas enquanto não adquirem o
direito de cidadania andam a ser enjauladas, atrás de muros”, aponta
Hermenegildo Borges. “O direito a ter direito é o direito de cidadania. Sem
cidadania não posso aspirar a ter direitos humanos”, completa.
O grande “desafio contemporâneo” que Hannah Arendt nos deixa, atira o
professor, é o de “sermos capazes de integrar os que chegam e vivermos em
comunidade com diferentes credos, culturas, num espaço que é defendido com
fronteiras rígidas”, e ter a consciência de que “a diversidade faz riqueza e
que a homogeneidade faz pobreza”.
“O património comum da
humanidade é uma riqueza”
As questões da ecologia e do desenvolvimento sustentável eram já
fundamentais no pensamento de Hannah Arendt, nota o professor, e vêm ao
encontro das “necessidades contemporâneas”.
“O homem só habita a Terra se a transformar artificialmente, para seu
conforto. O homem não consegue viver na Natureza tal como ela nos foi dada. O
homem tem que construir pontes, casas, esgotos, carros, comboios,
auto-estradas”, explica. Só que “a vontade do homem de transformar o mundo não
deve esgotar os recursos da Terra”.
É preciso caminhar, portanto, para uma “sociedade qye não provoque o
esgotamento dos recursos, que não polua nem destrua pela vontade de criar
riqueza”, refere o professor, dando imediatamente o exemplo da decisão do
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar o país do Acordo de
Paris sobre as alterações climáticas. “São [acordos] essenciais à sobrevivência
do planeta e isso só mostra que Trump ainda não aprendeu com a lição da Hannah
Arendt”.
Por isso, a perda de património comum, como “a destruição de estátuas, de
monumentos, de coisas antiquíssimas, é uma perda para a humanidade
extraordinariamente grande", considera o professor. “Só podemos fruir do
ar puro se todos os países do mundo se regerem pelo mesmo princípio da não
poluição”, exemplifica.
Segundo explica Hermenegildo Borges, Hannah Arendt elege como condição
humana fundamental a “pluralidade”. “Não é o homem sozinho, branco, que habita
o mundo. É uma diversidade de povos de culturas. É o homem no seu plural”, para
lá dos temperamentos de cada um.
Além da identificação da casa, assinalando a passagem da filósofa, o
deputado Paulo Muacho admite que o partido gostaria de propor também a criação,
naquela zona, de um largo que ficaria o nome da filósofa. Onde, quem sabe, se
pudessem discutir estas questões que são globais, começando por nos lembrarmos
sempre, remata Hermenegildo Borges, que “de cada vez que cai uma bomba sobre
uma biblioteca de Bagdad é a destruição de alguma coisa que é minha, que é de
todos nós" que está a acontecer.
In Publico
CRISTIANA FARIA MOREIRA
23 de Dezembro de 2017, 7:33
Lola
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