Jonathan Dancy e o Conhecimento
1. A Descrição
Tradicional
A descrição
corrente do conhecimento, em torno da qual todos os trabalhos recentes têm sido
elaborados, define o conhecimento como crença verdadeira justificada; defende
que a conhece que p se e só se
1 p,
2 a crê
que p,
3 a crença de a de
que p é justificada.
Como existem
três partes nesta definição, ela é chamada a definição tripartida ou descrição
tripartida; define o conhecimento proposicional, conhecimento de (que) p; não
define o conhecimento por trato como em «a conhece James» nem o conhecimento do
como, p. ex. conhecimento de como andar de bicicleta, a não ser que se
demonstre que estes se possam reduzir a conhecimento-de-que.
A definição
tripartida tem atractivos óbvios. A primeira condição, que, se a conhece
que p, então p é verdadeiro (o que pode ser lido
como Kap->p), é normalmente considerada estipulativa. A
segunda condição, que, se a conhece que p,
então a crê que p (podemos ler isto
como Kap->Bap), mínima, e a terceira, que, se a conhece
que p, então a sua crença de que p é justificada (Kap->JBap),
encontra-se aí para impedir qualquer conjectura fortuita de ser considerada
conhecimento no caso de a pessoa que conjectura ser suficientemente confiante
para crer na sua própria conjectura. Vale contudo a pena notar uma consequência
desta justificação da condição 3; é ela que uma crença não é geralmente
considerada justificada pelo mero facto de ser verdadeira, pois de outro modo a
condição 3 seria desnecessária. Se eu decidir, atirando uma moeda ao ar, qual o
investimento que dará maior lucro, e se vier afortunadamente, a verificar ter
razão, supomos que o valor da minha escolha é talvez demonstrado pelo
resultado, mas ela não é justificada por esse resultado; eu não tinha qualquer
justificação real para fazer a escolha que fiz. (Podíamos alternativamente
distinguir entre duas formas de justificação, antes e depois do acontecimento,
e passar a definição tripartida em termos da primeira; mas então a questão
passaria a ser se elas são realmente duas formas da mesma coisa.)
Quais são os problemas
da definição tripartida? Poder-se-ia pensar que a segunda condição é
insuficiente: crer que p não é tão forte como ter a certeza de que p,
e para conhecer é preciso ter a certeza, não apenas crer.
A melhor razão para
querermos alguma descrição de certeza na nossa análise do conhecimento, é o
facto de as pessoas se mostrarem, com razão, hesitantes em afirmar o
conhecimento quando não estão bem certas. Esta hesitação parece dever-se a algo
acerca do que o conhecimento é, e não existe maneira óbvia de explicá-lo se o
conhecimento for como a concepção tripartida afirma que ele é. Assim, embora
seja normalmente sugerido que a noção de certeza é relevante para a análise
de afirmações de conhecimento, mas não para a análise do
conhecimento em si (p. ex., in Woozley, 1953), isto não nos deixa qualquer
hipótese de explicar porque é que a certeza deva ser requerida antes de se
poder afirmar conhecimento quando ela não é requerida para o conhecimento em
si, i. e., para a existência daquilo que se afirma.
Como vamos descobrir
outras razões para rejeitar a definição tripartida, não temos qualquer razão
para aprofundar aqui este ponto. A moral a tirar é a de que, se pretendemos dar
uma descrição do conhecimento que não inclua uma exigência de certeza, a nossa
descrição devia algures ter lugar para a noção de certeza; se ela encara a
certeza como um requisito para uma afirmação de conhecimento tem de ser capaz
de explicar nos seus próprios termos por que motivo deveria ser assim.
Mas por que
haveríamos de ter relutância em mudar a segunda condição para «a tem
a certeza de que p»? A resposta é que estamos preparados, em
circunstâncias que não são particularmente invulgares, para aceitar que alguém
possui de facto conhecimento quando essa pessoa está tão longe de ter a certeza,
que não ousaria afirmar ela própria o conhecimento. O exemplo clássico
oferecido é o do colegial hesitante, que aprendeu por exemplo as datas dos
reinados dos soberanos ingleses na noite anterior, mas que fica tão alarmado
com o autoritarismo do seu professor, que fica completamente inseguro de que as
respostas que lhe ocorrem quando interrogado sejam de facto as correctas.
Supondo, todavia, que essas respostas estejam correctas, não aceitaríamos que
ele as conhece, ainda que ele próprio pudesse não fazer tal afirmação? E as
razões que possamos ter para aceitar isto estão decerto próximas das sugeridas
pela definição tripartida; ele tem a resposta correcta, e não é por acaso.
Há uma fraqueza neste
recurso ao colegial hesitante, que mais uma vez se prende com a segunda
condição. Na medida em que o colegial não tem bem a certeza das respostas que
lhe ocorrem, poderemos aceitar que ele ainda crê nelas? Se não tivermos
cuidado, a utilização deste exemplo para rebater as pretensões de uma condição
de certeza resultará na nossa perda da condição de crença que estamos a tentar
defender.
2.Os
Exemplos Contrários de Gettier
Henry está a
ver televisão numa tarde de Junho. Assiste à final masculina de Wimbledon e, na
televisão, McEnroe vence Connors; o resultado é de dois a zero e «match point»
para McEnroe no terceiro «set». McEnroe ganha o ponto. Henry crê
justificadamente que
1 acabei de ver
McEnroe ganhar a final de Wimbledon deste ano, e infere sensatamente que
2 McEnroe é o campeão
de Wimbledon deste ano.
No entanto, as
câmaras que estavam em Wimbledon deixaram na realidade de funcionar, e a
televisão está a passar uma gravação da competição do ano passado. Mas enquanto
isto acontece, McEnroe está prestes de repetir a retumbante vitória do ano
passado. Portanto a crença 2 de Henry é verdadeira, ele tem decerto
justificação para nela crer. Contudo, dificilmente aceitaríamos que Henry
conhece 2.
Este tipo de exemplo
contrário à descrição tripartida do conhecimento é conhecido como exemplo
contrário de Gettier, segundo E. L. Gettier (1963). (Devo este exemplo
específico a Brian Garrett.) Gettier argumentava que eles mostram que a
descrição tripartida é insuficiente; é possível que alguém não conheça, mesmo
que as três condições sejam realizadas.
Gettier não põe aqui
em causa nenhuma das três condições. Aceita que elas são individualmente
necessárias, e apenas argumenta que precisam de ser complementadas.
Vale a pena
formalizar a situação, por razões que serão evidentes mais tarde. Lendo 1 como
p e 2 como q, temos:
~p, Bap, JBap, p->q, JBa (p->q), q, Baq, JBaq.
O exemplo contrário
de Gettier é por conseguinte um exemplo em que a tem uma crença justificada mas
falsa por inferência a partir da qual ele justificavelmente crê que algo que
acontece é verdadeiro, e chega deste modo a uma crença verdadeira justificada que
não é conhecimento.
Que resposta poderá
ser dada a estes infames mas ligeiramente irritantes exemplos contrários?
Parece haver três vias possíveis:
1 encontrar algum
meio de demonstrar que os exemplos contrários não funcionam;
2 aceitar os exemplos
contrários e tentar encontrar um complemento à análise tripartida que os
exclui;
3 aceitar os exemplos
contrários e alterar a análise tripartida para os incluir em vez de lhe
acrescentar o que quer que seja.
O restante prende-se
com a primeira via.
Em que princípios de
inferência se baseiam estes exemplos contrários? O próprio Gettier apresenta
dois. Para que os exemplos funcionem, deve ser possível que uma crença falsa
continue a ser justificada; e uma crença justificada deve justificar qualquer
crença que ela implique (ou que se creia justificadamente que implique). Este
último é precisamente o princípio da oclusão POj acima
mencionado na discussão do cepticismo (1.2). Portanto, se pudéssemos mostrar
que POj é falso, isto teria o duplo efeito de destruir os exemplos
contrários de Gettier bem como (pelo menos em parte) o primeiro argumento
céptico. Poderia ser, contudo, possível construir novas variantes do tema
Gettier que não se baseiam na inferência ou numa inferência deste tipo, como
veremos a seguir, e sendo assim não há queixas acerca do PO% ou de outros
princípios que venham a ser muito eficientes.
Uma coisa que não
podemos fazer é rejeitar os exemplos contrários de Gettier como forjados e
artificiais. São perfeitamente eficientes nos seus próprios termos. Mas
poderíamos sensatamente perguntar de que serve cansar o cérebro a descobrir uma
definição aceitável de «a sabe que p». Será isto mais
do que um mero exercício técnico? O que nos desconcertaria no facto de não
conseguirmos elaborar uma definição à prova de problemas? Muitas das inúmeras
dissertações escritas em resposta a Gettier dão a impressão de que responder a
Gettier é uma espécie de jogo filosófico privado, que não tem qualquer
interesse a não ser para os jogadores. E não nos demonstrou afinal Wittgenstein
que um conceito pode ser perfeitamente legítimo sem ser definível, argumentando
que não é indispensável que exista qualquer elemento comum a todos os casos de
uma propriedade (p. ex. casos de conhecimento) para além do facto de serem
casos (p. ex. de que são conhecimento)? (Cf. Wittgenstein, 1969b, pp. 17-18, e
1953, §§ 66-7.) Então o que é que poderia afinal depender do nosso êxito ou
malogro para descobrir condições necessárias e suficientes para o conhecimento?
Simpatizo sob vários
aspectos com o tom geral desta queixa, como depressa se tornará evidente. O que
me entusiasma na procura de uma resposta a Gettier é a sensação de que talvez
seja possível encontrar uma descrição do que é o conhecimento, que venha a ter
um efeito substancial no que dissermos sobre a justificação em partes
ulteriores deste livro. Isto podia acontecer de duas maneiras ou através da
qualquer delas. Podíamos encontrar uma descrição do que é o conhecimento, que
bastasse para destruir atitudes cépticas cruciais, e consequentemente confirmar
a possibilidade de algumas das nossas crenças serem justificadas; a descrição que
tento apoiar no capítulo 3 tem pretensões . neste sentido. Ou podíamos tentar
definir a justificação em termos de conhecimento. Por exemplo, podíamos supor
que uma crença é justificada se e só se em certas circunstâncias (a
especificar) fosse conhecimento. (Jennifer Hornsby deu-me esta ideia.)
Entretanto devemos considerar algumas descrições do conhecimento que parecem
menos frutuosas.
3. Respostas a Gettier
Evitei de
maneira bastante óbvia, tanto quanto me foi possível, apresentar sequer a
diagnose mais aproximativa do defeito na análise tripartida exposta por
Gettier. Isto porque as diferentes respostas a Gettier emanam todas de
diferentes diagnoses das carências da análise tripartida; uma vez que se saiba
o que falta, devia ser uma questão bastante simples provê-la.
A presença de
falsidade pertinente
A diagnose mais
óbvia é simplesmente a de que a crença inicial de que p, de que se
infere a crença justificada verdadeira de que q, é falsa. Assim,
poderíamos acrescentar à análise tripartida a quarta condição de que nada pode
ser conhecido que seja inferido de uma crença falsa, ou de um grupo de crenças
de que uma seja falsa. Esta simples sugestão peca por dois motivos. Primeiro,
podem escrever-se variantes do tema de Gettier nas quais, embora exista falsidade,
não há inferência. Suponham que eu creio que se encontra uma ovelha num campo
próximo por causa do que vejo. Não infiro do que vejo que está uma ovelha no
campo; creio simplesmente que há lá uma. O animal que vejo é um grande cão
peludo, mas a minha crença não é falsa, porque também lá está uma ovelha, que
eu ignoro, oculta pela sebe. Aqui poderíamos admitir que a minha crença é
verdadeira e justificada, mas recusarmo-nos a aceitar que eu sei que existe uma
ovelha no campo. (Este exemplo vem de Chisholm, 1977, p. 105.)
Uma das réplicas
poderia ser que eu estou certamente a inferir que vejo uma ovelha no campo a
partir do meu conhecimento dos meus actuais estados sensoriais. Esta réplica
levanta vastos pontos controversos; mas o capítulo 5 contém um aturado
argumento que diz que se existe algum conhecimento não-inferencial, )arte dele
refere-se a outras coisas que não os nossos estados dos sentidos - porque não
então ovelhas, por exemplo?
O segundo defeito é o
de que a sugestão é demasiado forte e pode tomar-nos impossível conhecer o que
quer que seja. Como veremos, é um perigo de uma série de respostas a Gettier.
No caso presente, todos nós sofremos de numerosas crenças falsas que têm algum
papel dos nossos processos inferenciais, e portanto nesta sugestão nenhuma das
nossas presentes crenças justificadas contaria como conhecimento.
Para eliminar estes
defeitos temos de remover a referência à inferência, e reforçar a relação
especificada entre as crenças falsas e as verdadeiras justificadas, que não devem
contar como conhecimento. Deste modo poderíamos simplesmente requerer uma
ausência de falsidade pertinente. Isto fugiria ao exemplo da ovelha no campo
porque eu presumivelmente creio (falsamente) que o animal que posso ver é uma
ovelha ainda que esta crença não seja utilizada em inferência. Mas como
sugestão parece mais atribuir um nome à dificuldade do que resolvê-la: quais as
crenças falsas que devem ser consideradas pertinentes?
Uma resposta poderia
ser a de que uma crença falsa de (que) p é pertinente no
sentido pretendido se, tendo o crente acreditado em vez disso que, ~p, a
sua crença de que q deixaria de ser justificada. Nem todas as
crenças falsas são pertinentes neste sentido. Algumas serão tão remotas ou
insignificantes que o facto de uma pessoa crer nelas ou no seu contrário não
teria qualquer efeito naquilo que uma pessoa crê aqui. Por exemplo, entre as
crenças em virtude das quais eu afirmo conhecer que Napoleão foi um grande
soldado, pode haver uma que é falsa, mas que é tão insignificante que a minha
justificação em crer que Napoleão foi um grande soldado sobreviveria à minha
mudança de opinião nesse aspecto particular. Semelhante crença falsa não seria
pertinente no nosso caso presente.
Mas a nova descrição
defronta-se com dificuldades, que podem ser ilustradas por um exemplo.
Suponhamos que eu espero que uma colega me dê boleia para casa esta noite, mas
que o carro dela está sem bateria; isto não constituirá dificuldade, porque o
carro de um amigo se encontra convenientemente perto com alguns cabos que
podemos utilizar para pôr o carro dela a trabalhar. Creio agora que ela me dará
uma boleia esta noite, e esta crença é justificada. Sei que ela me dará uma
boleia? O requisito de não haver crenças falsas pertinentes sugere
plausivelmente que o facto de eu saber depende das outras crenças que possa
ter. Mas esta sugestão levanta dificuldades. Se, por exemplo, eu creio
meramente
1 que ela me dará uma
boleia esta noite.
Pode ser-me dado
conhecer isto, mas se creio simultaneamente (em) 1 e
2 que o carro dela
não está sem bateria,
não posso, uma vez
que tenho uma falsa crença pertinente. Mas se, ao mesmo tempo que creio em 1 e
2, por acaso também creio
3 que o carro de um
amigo se encontra convenientemente perto com cabos,
então esta crença
aparentemente gratuita torna de novo possível que eu saiba que terei uma
boleia. Pois se tivesse acreditado no contrário de 2, a minha primeira crença
não seria justificada, anão ser que eu também acreditasse em qualquer coisa
como 3. Parece, pois, que a nossa presente sugestão tem por efeito que, o facto
de eu ter ou não conhecimento dependerá vulgarmente das outras crenças
aparentemente gratuitas que possa ter. Há qualquer coisa de insatisfatório
nisto, e é preciso mais trabalho para defender a descrição contra queixas deste
tipo.
Anulabilidade /
Revogabilidade
Uma abordagem
ligeiramente diferente analisa os exemplos contrários de Gettier dizendo que
surgem porque há algumas verdades que teriam destruído a justificação do crente
se ele acreditasse nelas (cf. Lehrer e Paxson, 1969; Swain, 1974). Assim, por
exemplo, suponham que Henry tinha acreditado estar a assistir a uma gravação da
final de Wimbledon do ano passado, tal como na realidade estava; nesse caso, a
sua justificação para a sua crença de que p e, consequentemente, através do PCj,
para a sua crença de que q, teria sido destruída. A sugestão é
então acrescentar uma quarta condição exigindo que não haja nenhuma outra
verdade tal, que o facto de Henry crer nela destruísse a sua justificação para
crer que q. Esta é a sugestão de revogabilidade; requeremos para o
conhecimento que a justificação seja irrevogável, i. e., que a adição de outras
verdades não a revogue.
Isto não implicará
que uma crença falsa não seja nunca justificada, uma vez que a sugestão é a de
que, embora algumas crenças sejam revogavelmente justificadas, requeremos a
justificação irrevogável para o conhecimento. Contudo, corre o perigo de tornar
a primeira condição para o conhecimento (Kap -> p)
redundante. É como se uma crença falsa nunca pudesse ser irrevogavelmente
justificada dado que haveria sempre alguma verdade (ainda que fosse apenas a
negação da crença falsa) cuja adição destruiria a justificação. Mas talvez isto
seja uma força da teoria e não uma fraqueza, uma vez que a nova análise
quadripartida possuirá uma coerência que antes faltava; fornece uma explicação
na quarta condição daquilo que antes era incluído por mera estipulação, que o
conhecimento requer verdade.
Pode afirmar-se que a
sugestão de revogabilidade fornece uma extensão do requisito anterior, de que
não haja falsidades pertinentes; olhamos agora para além das proposições de que
o crente está realmente convicto, para proposições que teriam um efeito se se
acreditasse nelas. Mas esta extensão não constitui uma vantagem real. O tipo de
dificuldade com que depara a noção de revogabilidade, pode uma vez mais ser
ilustrada por um exemplo. Assim, creio talvez que os meus filhos se encontram
agora mesmo a brincar em casa no jardim, e tenho boas razões para esta crença.
Contudo, sem que eu o saiba, um vizinho foi até lá depois de eu ter saído de
casa esta manhã para convidar as crianças para irem passar a manhã a casa dele.
E se eu tivesse sabido isto, a minha justificação para crer que elas estão a
brincar em casa seria anulada, porque eu também creio que elas normalmente
aceitam esse tipo de convites. No entanto, a minha mulher tem estado preocupada
com a saúde de uma delas e recusou o convite. Saberei eu que os meus filhos
estão a brincar no jardim em casa? Se a sua intuição é que sim, sei, deve
rejeitar o critério de revogabilidade de acordo com o agora formulado. Se é a
de que não sei com base no facto de que se tivesse sabido do convite a minha
justificação teria sido anulada, tem o dever de dar uma descrição do porquê
(que eu desconheço) da verdade de que a minha mulher recusou o convite não
conseguir restabelecer de algum modo o equilíbrio. De qualquer das formas, a
proposta de revogabilidade tem de ser alterada.
O problema parece
residir, tal como residia em relação ao requisito de que não pode haver
falsidade pertinente, na forma como novas crenças podem ser acrescentadas pouco
a pouco e destruir a justificação existente, ao passo que existem ainda outras
verdades à espera em fundo para anular o elemento anulador? Primeiro queremos
perguntar se, seja como for, não é provável que exista sempre alguma verdade
que, se só ela fosse acrescentada e todas as outras excluídas, anulasse a minha
justificação. Mesmo que isto não acontecesse sempre, acontecerá por certo com
frequência suficiente para que o alcance do meu conhecimento seja
consideravelmente reduzido, e isto em si é já uma espécie de objecção. Em
segundo lugar, precisamos de encontrar uma maneira de contradizer o modo como a
adição pouco a pouco de outras verdades parece ligar-me e depois desligar-me do
conhecimento.
Poderíamos conseguir
realizar a segunda tarefa alterando a nossa descrição de revogabilidade de
forma a que, em vez de falarmos de alguma outra verdade (que pouco a pouco
causou o problema da adição), falemos acerca de todas as verdades sejam elas
quais forem. Assim poderíamos requerer como quarta condição que a nossa
justificação fosse mantida, mesmo quando todas as verdades são acrescentadas em
simultâneo ao nosso conjunto de crenças. Esta nova noção de revogabilidade
parece (provavelmente) permitir que eu sei agora que os meus filhos estão a
brincar no jardim, porque a segunda verdade acrescentada nega os poderes
anuladores da primeira. Mas restam ainda problemas para esta nova noção de
revogabilidade. Primeiro, ao falar de acrescentar todas as verdades ao mesmo
tempo, parece que passámos claramente ao domínio da ficção. Com efeito, teremos
alguma concepção adequada de «todas as verdades»? Segundo, parece, por este
critério, nunca teremos mais do que a mais leve das razões para crer que
conhecemos alguma coisa; pois ao crer isto estamos a crer que, quando todas as
verdades lá estiverem, a nossa justificação manter-se-á, e parece ser
necessário muito mais para sustentar essa crença do que o que é necessário para
sustentar uma vulgar afirmação de conhecer.
Fiabilidade
Uma abordagem
diferente desvia a nossa atenção da relação entre a proposição afirmada como
conhecimento e outras crenças falsas que deviam ter sido verdadeiras ou outras
verdades em que se devia ter acreditado. Foi por vezes sugerido que uma crença
verdadeira justificada pode ser conhecimento quando deriva de um método
fidedigno (ver Goldman, 1976; Armstrong, 1973, cap. 13; Swain, 1981). No
exemplo de Gettier, Henry sabe de facto que a final de Wimbledon está a ser
disputada nessa tarde; esta crença verdadeira justificada deriva do método
seguro de ler os jornais, que estão normalmente correctos em relação a este
tipo de coisa. No entanto, a sua crença de que q deriva nitidamente de um
método que é menos que fidedigno. Tê-lo-ia induzido em erro neste ponto, se
McEnroe tivesse sofrido um lapso momentâneo e sucumbido aos esforços de Connors
desta vez.
A abordagem da
fiabilidade pode ser mais elaborada; de certa forma está relacionada de perto
com a abordagem causal considerada a seguir, porque nos é nitidamente devida
uma descrição do que é a segurança, e uma resposta causal é tentadora (ver, p.
ex., Goldman, 1979). No entanto, podemos já ver dificuldades para qualquer
variação desta abordagem. Corre o perigo, ou de tornar o conhecimento
impossível, ou de ir direito a um dos nossos argumentos cépticos.
Por fidedigno estamos
a referir-nos a um método adequado, se devidamente seguido, é perfeitamente
fidedigno e nunca conduz a uma crença falsa. Mas, independentemente da
dificuldade geral de distinguir entre um defeito no método e um defeito na
maneira como o método foi aplicado, parece improvável que existam quaisquer
métodos perfeitamente fidedignos de adquirir crenças. O homem é falível, e a
sua falibilidade manifesta-se não apenas no modo como os métodos são
utilizados, mas nos métodos de recolha de crenças de que dispõe. Logo, se o
conhecimento requer um método infalível ou perfeitamente seguro, é impossível.
Mas se nos afastarmos
da noção de fiabilidade perfeita e requerermos apenas que o método seja
geralmente fidedigno, convidamos aos argumentos cépticos do nosso segundo tipo.
Como é que um método que falhou algures em circunstâncias pertinentemente
semelhantes é suficiente para permitir conhecimento desta vez? Se tínhamos
alguma esperança de que a nossa eventual descrição do conhecimento nos ajudasse
a rejeitar os argumentos cépticos, esta descrição particular parece tornar as
coisas piores e não melhores. E claro que isto não demonstrará que a descrição
está errada. Pode ser que a descrição correcta do conhecimento dê infelizmente
ao céptico a oportunidade de que ele está à espera. Mas não deveríamos aceitar
que é assim que as coisas são antes de nos convencermos de que não há outra
descrição do conhecimento que ofereça ao céptico menos vantagem. Podemos ainda
ter esperança numa que lhe complique a vida em vez de lha facilitar.
Um afastamento final
seria requerer apenas que o método seja seguro desta vez. Isto tem o efeito de
desviar a nossa atenção de casos anteriores em que o método falhou e, logo, de
escapar ao argumento céptico que tem nesses casos o seu ponto de partida. Mas
poderíamos sensatamente duvidar de que o requisito de que o método seja seguro
equivalha desta vez a qualquer adição genuína à descrição tripartida. Se a
fiabilidade for definida em termos da produção de verdade, nada acrescenta à
primeira condição desde que restrinjamos a nossa atenção ao caso particular. Se
for definida em termos de justificação, nada acrescenta à terceira. E não há outra
descrição que pareça convidativa. (Pode ser, no entanto, que a teoria causal
seja equivalente a uma noção de justificação no caso particular; ver 2.4).
Razões Convincentes
Uma abordagem
diferente revela a imperfeição de Henry no caso Gettier como devendo-se ao
facto de as suas razões serem menos do que conclusivas. Se requerermos, para o
conhecimento, que a crença verdadeira justificada se baseie em razões
conclusivas, todos os casos Gettier, e na realidade qualquer caso em que o
crente esteja correcto por acidente, caem por terra.
Todo o trabalho nesta
abordagem deve centrar-se numa descrição persuasiva do que torna as razões
conclusivas. Uma sugestão seria que, onde as crenças A-M constituem razões
convincentes para a crença N, A-M não poderia ser verdadeiro se N for falso.
Isto excluirá os exemplos contrários, mas tornará também o -conhecimento um
fenómeno raro na melhor das hipóteses. O conhecimento empírico, pelo menos,
parece agora impossível; no domínio empírico, as nossas razões nunca são
conclusivas leste sentido.
Uma descrição mais
fraca, que devemos a F. Dretske (1971), sugere que as razões A-M de alguém para
uma crença N são conclusivas se e só se A-M não fossem verdadeiros se N for
falso. isto é mais fraco porque dizer que A-M não seria verdadeiro se N for
falso não é o mesmo do que dizer que não poderiam ser verdadeiros se N for
falso, como diz a descrição mais forte. É tão fraca que não chega a fornecer um
genuíno sentido de «conclusivo», mas isto não importa grandemente. Esta
descrição mais fraca parece-me prometedora na sua abordagem geral, e a teoria
que defenderei no capítulo seguinte, é distintamente semelhante. Mas difere no
facto de não falar de razões; e isto é uma virtude porque parece de facto
possível que deva haver crença justificada sem razões. A minha crença de que
estou a sofrer pode talvez ser justificada, mas dificilmente se pode dizer que
eu a baseie em razões conclusivas ou outras. Não a baseio de forma alguma em
razões.
A Teoria
Causal
A. I. Goldman
propõe um complemento causal para a definição tripartida (Goldman, 1967). Uma
diagnose inicial dos exemplos contrários de Gettier pode ser a de que é apenas
uma questão de sorte que a crença justificada de Henry seja verdadeira. Esta
diagnose não pode por si fornecer uma resposta adequada. Não nos podemos
limitar a estipular que não há sorte envolvida, porque todos nós dependemos da
sorte até certo ponto. Por exemplo, o facto de o nosso método de recolha de crenças
fornecer aqui uma crença verdadeira em vez de uma falsa, como por vezes
fornece, será unicamente uma questão de sorte quanto a nós. E evidentemente que
o facto de a sorte se encontrar sempre envolvida algures dá também um ponto de
apoio ao céptico. Mas a diagnose pode sugerir uma resposta melhor. A sugestão
de Goldman é a de que, o que tornou crença verdadeira no caso Gettier, não é o
que levou Henry a acreditar nela. Por conseguinte ele propõe, como quarta
condição para o conhecimento de que p, que o facto de pdeveria
causar a crença de a de que p. Isto exclui os
casos Gettier porque neles, o facto de a crença ser verdadeira, é uma
coincidência. Queremos que um elo de ligação entre crença e verdade impeça que
isto aconteça, e um elo causal parece prometedor.
Por atraente que seja
esta abordagem, depara com dificuldades. A primeira é a de que podemos
considerar difícil supor que os factos possam causar o que quer que seja; eles
são decerto demasiado inertes para que afectem o andamento do mundo, ainda que
esse mundo seja um mero mundo mental de crenças. Afinal, o que são factos? A
primeira ideia que nos surge é a de que os factos são semelhantes, se não
idênticos, a proposições verdadeiras (o que explicaria a razão pela qual não
existem factos falsos). Mas poderão as proposições verdadeiras causar alguma
coisa? Certamente que os factos (ou as proposições verdadeiras) reflectem o
mundo mais do que o afectam. As análises prevalecentes de causalidade parecem
justificadamente admitir apenas acontecimentos e possivelmente agentes como
causas. Em segundo lugar, há um problema acerca do conhecimento do futuro; a
sugestão de Goldman parece requerer que, ou temos um caso de causalidade
retrógrada (causando o futuro o passado), ou que o conhecimento do futuro é impossível,
uma vez que as causas não podem suceder-se aos seus efeitos. Terceiro, há o
problema do conhecimento universal, ou de uma forma mais geral do conhecimento
por inferência. A minha crença de que todos os homens são mortais é causada,
mas não pelo facto de todos os homens serem mortais; se quaisquer factos o
causam, são os factos de este homem, aquele homem, etc.., terem morrido. E a
morte destes homens não é causada pelo facto de todos os homens morrerem (o que
restauraria a análise causal, com uma causa intermédia); mas todos os homens
morrem porque esses homens morrem (entre outros). Como pode, pois, a análise
causal mostrar que eu conheço que todos os homens morrem?
Há respostas para
estas críticas, claro. Estamos mais habituados a falar de factos como causas do
que a crítica primeira permite. O facto de os filósofos não se terem ainda
persuadido de compreender a ideia de que os factos podem ser causas, não devia
causar que nós excluíssemos todo o recurso à causalidade do facto como
filosoficamente infundado. (A frase anterior é um caso pontual). Também a
segunda crítica poderia ser respondida complicando a teoria ao permitir que os
factos fossem conhecidos em casos em que facto e crença são efeitos diferentes
de uma causa comum. A terceira crítica, parece, contudo, mais insubmissa. A
aceitação de que os factos podem ser causas não melhorará muito a nossa
predisposição para supor que os factos universais podem causar crenças
universais.
Há aspectos
prometedores na teoria causal, e a teoria que defenderei pode de facto ser
encarada como uma generalização a partir dela.
4.
Observações Finais
As várias
propostas anteriormente consideradas foram apresentadas como se fossem adições
à análise tripartida, admitindo que Gettier mostrara que a análise fosse
insuficiente. Mas podemos encontrar entre elas pelo menos uma que pode ser
considerada como uma defesa directa da análise tripartida. Qualquer proposta
que seja equivalente a uma nova teoria da justificação pode conseguir mostrar
que nos casos Gettier as crenças verdadeiras pertinentes não eram de todo
justificadas. E podíamos considerar a teoria causal desta maneira. A teoria
causal podia estar a dizer-nos que uma crença só é justificada quando causada
(directa ou indirectamente) pelos factos. Estaria então a adoptar a via 1,
conforme distinguida em 2.2. (Algumas versões da proposta de fiabilidade também
podiam ser encaradas a esta luz.) Movendo-nos desta forma, partiríamos então de
uma teoria causal da justificação; a teoria causal do conhecimento seria simplesmente
uma das suas consequências.
Uma forma possível de
argumentar contra uma teoria causal da justificação seria afirmar que não temos
qualquer garantia de que exista apenas uma maneira de vir a justificar as
crenças, e em particular nenhuma razão real para supor que qualquer maneira
aceitável possa ser de algum modo causal, de forma que todas as crenças
justificadas (de) que p devem ser causadas por factos
pertinentes. Não queremos por certo excluir à partida a possibilidade de que
algumas crenças morais, por exemplo, sejam justificadas, fazendo-o apenas
porque não queremos admitir a existência de factos morais (se não o quisermos).
E poderíamos continuar a duvidar da existência de factos matemáticos
causalmente eficientes, sem querer com isso dizer que nenhumas crenças
matemáticas possam por isso ser justificadas.
Mais importante,
todavia, é que a sugerida descrição causal de justificação é falsa porque nega
a possibilidade de uma crença falsa ser justificada. Uma crença falsa de
que p não tem qualquer facto de que p a causá-la. Só se pode
fugir a esta objecção encontrando uma descrição diferente da justificação de
crenças falsas da que é apresentada para verdadeiras. Mas isso não pode estar
correcto. A justificação deve ser a mesma tanto para crenças verdadeiras como
para falsas, quanto mais não seja porque podemos perguntar e decidir se uma
crença é justificada (p. ex., uma crença acerca do futuro) antes de decidirmos
se é verdadeira ou falsa.
Esta crítica deixa em
aberto a possibilidade de um tipo diferente de teoria causal, nas linhas
sugeridas no final de 2.2. Com uma teoria causal do conhecimento e a tese de
que uma crença é justificada se e só sendo verdadeira fosse conhecimento,
podemos dar uma descrição causal da justificação que não é vulnerável à
existência de crenças justificadas falsas.
Leitura
Adicional
As dissertações
centrais na área são de Gettier (1963), Dretske (1971), Goldman (1967) e Swain
(1974).
A discussão (e
rejeição) talvez mais antiga da definição tripartida encontra-se no Teeteto de
Platão (Platão, 1973, 201 c-210d).
A enorme diligência
recentemente gerada pelos defeitos encontrados na descrição tripartida é
meticulosamente analisada in Shope (1983), com inúmeras referências. Existem
evidentemente muitas abordagens e variantes de abordagens do problema Gettier
que não discuti, incluindo a do próprio Shope.
A maioria das
dissertações referidas no presente capítulo encontram-se coligidas in Pappas e
Swain (1978), que contém também uma introdução analítica da área.
Prichard (1967) faz
uma interessante e inovadora descrição das relações entre conhecimento, crença,
certeza e verdade.
Uma questão
importante que não discutimos é se o conhecimento implica crença. Para isto,
cf. Ring (1977).
As dissertações da
autoria de Gettier, Prichard e Woozley estão coligidas in Phillips Griffiths
(1967).
DANCY,
Jonathan (1990),
Epistemologia Contemporânea.
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