sábado, 24 de março de 2018

Jonathan Dancy e o Conhecimento


Jonathan Dancy e o Conhecimento

1. A Descrição Tradicional
 A descrição corrente do conhecimento, em torno da qual todos os trabalhos recentes têm sido elaborados, define o conhecimento como crença verdadeira justificada; defende que a conhece que p se e só se
 1 p,
a crê que p,
3 a crença de a de que p é justificada.
 Como existem três partes nesta definição, ela é chamada a definição tripartida ou descrição tripartida; define o conhecimento proposicional, conhecimento de (que) p; não define o conhecimento por trato como em «a conhece James» nem o conhecimento do como, p. ex. conhecimento de como andar de bicicleta, a não ser que se demonstre que estes se possam reduzir a conhecimento-de-que.
A definição tripartida tem atractivos óbvios. A primeira condição, que, se a conhece que p, então p é verdadeiro (o que pode ser lido como Kap->p), é normalmente considerada estipulativa. A segunda condição, que, se a conhece que p, então a crê que p (podemos ler isto como Kap->Bap), mínima, e a terceira, que, se a conhece que p, então a sua crença de que p é justificada (Kap->JBap), encontra-se aí para impedir qualquer conjectura fortuita de ser considerada conhecimento no caso de a pessoa que conjectura ser suficientemente confiante para crer na sua própria conjectura. Vale contudo a pena notar uma consequência desta justificação da condição 3; é ela que uma crença não é geralmente considerada justificada pelo mero facto de ser verdadeira, pois de outro modo a condição 3 seria desnecessária. Se eu decidir, atirando uma moeda ao ar, qual o investimento que dará maior lucro, e se vier afortunadamente, a verificar ter razão, supomos que o valor da minha escolha é talvez demonstrado pelo resultado, mas ela não é justificada por esse resultado; eu não tinha qualquer justificação real para fazer a escolha que fiz. (Podíamos alternativamente distinguir entre duas formas de justificação, antes e depois do acontecimento, e passar a definição tripartida em termos da primeira; mas então a questão passaria a ser se elas são realmente duas formas da mesma coisa.)
Quais são os problemas da definição tripartida? Poder-se-ia pensar que a segunda condição é insuficiente: crer que p não é tão forte como ter a certeza de que p, e para conhecer é preciso ter a certeza, não apenas crer.
A melhor razão para querermos alguma descrição de certeza na nossa análise do conhecimento, é o facto de as pessoas se mostrarem, com razão, hesitantes em afirmar o conhecimento quando não estão bem certas. Esta hesitação parece dever-se a algo acerca do que o conhecimento é, e não existe maneira óbvia de explicá-lo se o conhecimento for como a concepção tripartida afirma que ele é. Assim, embora seja normalmente sugerido que a noção de certeza é relevante para a análise de afirmações de conhecimento, mas não para a análise do conhecimento em si (p. ex., in Woozley, 1953), isto não nos deixa qualquer hipótese de explicar porque é que a certeza deva ser requerida antes de se poder afirmar conhecimento quando ela não é requerida para o conhecimento em si, i. e., para a existência daquilo que se afirma.
Como vamos descobrir outras razões para rejeitar a definição tripartida, não temos qualquer razão para aprofundar aqui este ponto. A moral a tirar é a de que, se pretendemos dar uma descrição do conhecimento que não inclua uma exigência de certeza, a nossa descrição devia algures ter lugar para a noção de certeza; se ela encara a certeza como um requisito para uma afirmação de conhecimento tem de ser capaz de explicar nos seus próprios termos por que motivo deveria ser assim.
Mas por que haveríamos de ter relutância em mudar a segunda condição para «a tem a certeza de que p»? A resposta é que estamos preparados, em circunstâncias que não são particularmente invulgares, para aceitar que alguém possui de facto conhecimento quando essa pessoa está tão longe de ter a certeza, que não ousaria afirmar ela própria o conhecimento. O exemplo clássico oferecido é o do colegial hesitante, que aprendeu por exemplo as datas dos reinados dos soberanos ingleses na noite anterior, mas que fica tão alarmado com o autoritarismo do seu professor, que fica completamente inseguro de que as respostas que lhe ocorrem quando interrogado sejam de facto as correctas. Supondo, todavia, que essas respostas estejam correctas, não aceitaríamos que ele as conhece, ainda que ele próprio pudesse não fazer tal afirmação? E as razões que possamos ter para aceitar isto estão decerto próximas das sugeridas pela definição tripartida; ele tem a resposta correcta, e não é por acaso.
Há uma fraqueza neste recurso ao colegial hesitante, que mais uma vez se prende com a segunda condição. Na medida em que o colegial não tem bem a certeza das respostas que lhe ocorrem, poderemos aceitar que ele ainda crê nelas? Se não tivermos cuidado, a utilização deste exemplo para rebater as pretensões de uma condição de certeza resultará na nossa perda da condição de crença que estamos a tentar defender.
 2.Os Exemplos Contrários de Gettier
 Henry está a ver televisão numa tarde de Junho. Assiste à final masculina de Wimbledon e, na televisão, McEnroe vence Connors; o resultado é de dois a zero e «match point» para McEnroe no terceiro «set». McEnroe ganha o ponto. Henry crê justificadamente que
1 acabei de ver McEnroe ganhar a final de Wimbledon deste ano, e infere sensatamente que
2 McEnroe é o campeão de Wimbledon deste ano.
No entanto, as câmaras que estavam em Wimbledon deixaram na realidade de funcionar, e a televisão está a passar uma gravação da competição do ano passado. Mas enquanto isto acontece, McEnroe está prestes de repetir a retumbante vitória do ano passado. Portanto a crença 2 de Henry é verdadeira, ele tem decerto justificação para nela crer. Contudo, dificilmente aceitaríamos que Henry conhece 2.
Este tipo de exemplo contrário à descrição tripartida do conhecimento é conhecido como exemplo contrário de Gettier, segundo E. L. Gettier (1963). (Devo este exemplo específico a Brian Garrett.) Gettier argumentava que eles mostram que a descrição tripartida é insuficiente; é possível que alguém não conheça, mesmo que as três condições sejam realizadas.
Gettier não põe aqui em causa nenhuma das três condições. Aceita que elas são individualmente necessárias, e apenas argumenta que precisam de ser complementadas.
Vale a pena formalizar a situação, por razões que serão evidentes mais tarde. Lendo 1 como p e 2 como q, temos:
~pBapJBapp->q, JBa (p->q), qBaqJBaq.
O exemplo contrário de Gettier é por conseguinte um exemplo em que a tem uma crença justificada mas falsa por inferência a partir da qual ele justificavelmente crê que algo que acontece é verdadeiro, e chega deste modo a uma crença verdadeira justificada que não é conhecimento.
Que resposta poderá ser dada a estes infames mas ligeiramente irritantes exemplos contrários? Parece haver três vias possíveis:
1 encontrar algum meio de demonstrar que os exemplos contrários não funcionam;
2 aceitar os exemplos contrários e tentar encontrar um complemento à análise tripartida que os exclui;
3 aceitar os exemplos contrários e alterar a análise tripartida para os incluir em vez de lhe acrescentar o que quer que seja.
O restante prende-se com a primeira via.
Em que princípios de inferência se baseiam estes exemplos contrários? O próprio Gettier apresenta dois. Para que os exemplos funcionem, deve ser possível que uma crença falsa continue a ser justificada; e uma crença justificada deve justificar qualquer crença que ela implique (ou que se creia justificadamente que implique). Este último é precisamente o princípio da oclusão POj acima mencionado na discussão do cepticismo (1.2). Portanto, se pudéssemos mostrar que POj é falso, isto teria o duplo efeito de destruir os exemplos contrários de Gettier bem como (pelo menos em parte) o primeiro argumento céptico. Poderia ser, contudo, possível construir novas variantes do tema Gettier que não se baseiam na inferência ou numa inferência deste tipo, como veremos a seguir, e sendo assim não há queixas acerca do PO% ou de outros princípios que venham a ser muito eficientes.
Uma coisa que não podemos fazer é rejeitar os exemplos contrários de Gettier como forjados e artificiais. São perfeitamente eficientes nos seus próprios termos. Mas poderíamos sensatamente perguntar de que serve cansar o cérebro a descobrir uma definição aceitável de «a sabe que p». Será isto mais do que um mero exercício técnico? O que nos desconcertaria no facto de não conseguirmos elaborar uma definição à prova de problemas? Muitas das inúmeras dissertações escritas em resposta a Gettier dão a impressão de que responder a Gettier é uma espécie de jogo filosófico privado, que não tem qualquer interesse a não ser para os jogadores. E não nos demonstrou afinal Wittgenstein que um conceito pode ser perfeitamente legítimo sem ser definível, argumentando que não é indispensável que exista qualquer elemento comum a todos os casos de uma propriedade (p. ex. casos de conhecimento) para além do facto de serem casos (p. ex. de que são conhecimento)? (Cf. Wittgenstein, 1969b, pp. 17-18, e 1953, §§ 66-7.) Então o que é que poderia afinal depender do nosso êxito ou malogro para descobrir condições necessárias e suficientes para o conhecimento?
Simpatizo sob vários aspectos com o tom geral desta queixa, como depressa se tornará evidente. O que me entusiasma na procura de uma resposta a Gettier é a sensação de que talvez seja possível encontrar uma descrição do que é o conhecimento, que venha a ter um efeito substancial no que dissermos sobre a justificação em partes ulteriores deste livro. Isto podia acontecer de duas maneiras ou através da qualquer delas. Podíamos encontrar uma descrição do que é o conhecimento, que bastasse para destruir atitudes cépticas cruciais, e consequentemente confirmar a possibilidade de algumas das nossas crenças serem justificadas; a descrição que tento apoiar no capítulo 3 tem pretensões . neste sentido. Ou podíamos tentar definir a justificação em termos de conhecimento. Por exemplo, podíamos supor que uma crença é justificada se e só se em certas circunstâncias (a especificar) fosse conhecimento. (Jennifer Hornsby deu-me esta ideia.) Entretanto devemos considerar algumas descrições do conhecimento que parecem menos frutuosas.
 3. Respostas a Gettier
 Evitei de maneira bastante óbvia, tanto quanto me foi possível, apresentar sequer a diagnose mais aproximativa do defeito na análise tripartida exposta por Gettier. Isto porque as diferentes respostas a Gettier emanam todas de diferentes diagnoses das carências da análise tripartida; uma vez que se saiba o que falta, devia ser uma questão bastante simples provê-la.
A presença de falsidade pertinente
 A diagnose mais óbvia é simplesmente a de que a crença inicial de que p, de que se infere a crença justificada verdadeira de que q, é falsa. Assim, poderíamos acrescentar à análise tripartida a quarta condição de que nada pode ser conhecido que seja inferido de uma crença falsa, ou de um grupo de crenças de que uma seja falsa. Esta simples sugestão peca por dois motivos. Primeiro, podem escrever-se variantes do tema de Gettier nas quais, embora exista falsidade, não há inferência. Suponham que eu creio que se encontra uma ovelha num campo próximo por causa do que vejo. Não infiro do que vejo que está uma ovelha no campo; creio simplesmente que há lá uma. O animal que vejo é um grande cão peludo, mas a minha crença não é falsa, porque também lá está uma ovelha, que eu ignoro, oculta pela sebe. Aqui poderíamos admitir que a minha crença é verdadeira e justificada, mas recusarmo-nos a aceitar que eu sei que existe uma ovelha no campo. (Este exemplo vem de Chisholm, 1977, p. 105.)
Uma das réplicas poderia ser que eu estou certamente a inferir que vejo uma ovelha no campo a partir do meu conhecimento dos meus actuais estados sensoriais. Esta réplica levanta vastos pontos controversos; mas o capítulo 5 contém um aturado argumento que diz que se existe algum conhecimento não-inferencial, )arte dele refere-se a outras coisas que não os nossos estados dos sentidos - porque não então ovelhas, por exemplo?
O segundo defeito é o de que a sugestão é demasiado forte e pode tomar-nos impossível conhecer o que quer que seja. Como veremos, é um perigo de uma série de respostas a Gettier. No caso presente, todos nós sofremos de numerosas crenças falsas que têm algum papel dos nossos processos inferenciais, e portanto nesta sugestão nenhuma das nossas presentes crenças justificadas contaria como conhecimento.
Para eliminar estes defeitos temos de remover a referência à inferência, e reforçar a relação especificada entre as crenças falsas e as verdadeiras justificadas, que não devem contar como conhecimento. Deste modo poderíamos simplesmente requerer uma ausência de falsidade pertinente. Isto fugiria ao exemplo da ovelha no campo porque eu presumivelmente creio (falsamente) que o animal que posso ver é uma ovelha ainda que esta crença não seja utilizada em inferência. Mas como sugestão parece mais atribuir um nome à dificuldade do que resolvê-la: quais as crenças falsas que devem ser consideradas pertinentes?
Uma resposta poderia ser a de que uma crença falsa de (que) p é pertinente no sentido pretendido se, tendo o crente acreditado em vez disso que, ~p, a sua crença de que q deixaria de ser justificada. Nem todas as crenças falsas são pertinentes neste sentido. Algumas serão tão remotas ou insignificantes que o facto de uma pessoa crer nelas ou no seu contrário não teria qualquer efeito naquilo que uma pessoa crê aqui. Por exemplo, entre as crenças em virtude das quais eu afirmo conhecer que Napoleão foi um grande soldado, pode haver uma que é falsa, mas que é tão insignificante que a minha justificação em crer que Napoleão foi um grande soldado sobreviveria à minha mudança de opinião nesse aspecto particular. Semelhante crença falsa não seria pertinente no nosso caso presente.
Mas a nova descrição defronta-se com dificuldades, que podem ser ilustradas por um exemplo. Suponhamos que eu espero que uma colega me dê boleia para casa esta noite, mas que o carro dela está sem bateria; isto não constituirá dificuldade, porque o carro de um amigo se encontra convenientemente perto com alguns cabos que podemos utilizar para pôr o carro dela a trabalhar. Creio agora que ela me dará uma boleia esta noite, e esta crença é justificada. Sei que ela me dará uma boleia? O requisito de não haver crenças falsas pertinentes sugere plausivelmente que o facto de eu saber depende das outras crenças que possa ter. Mas esta sugestão levanta dificuldades. Se, por exemplo, eu creio meramente
1 que ela me dará uma boleia esta noite.
Pode ser-me dado conhecer isto, mas se creio simultaneamente (em) 1 e
2 que o carro dela não está sem bateria,
não posso, uma vez que tenho uma falsa crença pertinente. Mas se, ao mesmo tempo que creio em 1 e 2, por acaso também creio
3 que o carro de um amigo se encontra convenientemente perto com cabos,
então esta crença aparentemente gratuita torna de novo possível que eu saiba que terei uma boleia. Pois se tivesse acreditado no contrário de 2, a minha primeira crença não seria justificada, anão ser que eu também acreditasse em qualquer coisa como 3. Parece, pois, que a nossa presente sugestão tem por efeito que, o facto de eu ter ou não conhecimento dependerá vulgarmente das outras crenças aparentemente gratuitas que possa ter. Há qualquer coisa de insatisfatório nisto, e é preciso mais trabalho para defender a descrição contra queixas deste tipo.
Anulabilidade / Revogabilidade
 Uma abordagem ligeiramente diferente analisa os exemplos contrários de Gettier dizendo que surgem porque há algumas verdades que teriam destruído a justificação do crente se ele acreditasse nelas (cf. Lehrer e Paxson, 1969; Swain, 1974). Assim, por exemplo, suponham que Henry tinha acreditado estar a assistir a uma gravação da final de Wimbledon do ano passado, tal como na realidade estava; nesse caso, a sua justificação para a sua crença de que p e, consequentemente, através do PCj, para a sua crença de que q, teria sido destruída. A sugestão é então acrescentar uma quarta condição exigindo que não haja nenhuma outra verdade tal, que o facto de Henry crer nela destruísse a sua justificação para crer que q. Esta é a sugestão de revogabilidade; requeremos para o conhecimento que a justificação seja irrevogável, i. e., que a adição de outras verdades não a revogue.
Isto não implicará que uma crença falsa não seja nunca justificada, uma vez que a sugestão é a de que, embora algumas crenças sejam revogavelmente justificadas, requeremos a justificação irrevogável para o conhecimento. Contudo, corre o perigo de tornar a primeira condição para o conhecimento (Kap -> p) redundante. É como se uma crença falsa nunca pudesse ser irrevogavelmente justificada dado que haveria sempre alguma verdade (ainda que fosse apenas a negação da crença falsa) cuja adição destruiria a justificação. Mas talvez isto seja uma força da teoria e não uma fraqueza, uma vez que a nova análise quadripartida possuirá uma coerência que antes faltava; fornece uma explicação na quarta condição daquilo que antes era incluído por mera estipulação, que o conhecimento requer verdade.
Pode afirmar-se que a sugestão de revogabilidade fornece uma extensão do requisito anterior, de que não haja falsidades pertinentes; olhamos agora para além das proposições de que o crente está realmente convicto, para proposições que teriam um efeito se se acreditasse nelas. Mas esta extensão não constitui uma vantagem real. O tipo de dificuldade com que depara a noção de revogabilidade, pode uma vez mais ser ilustrada por um exemplo. Assim, creio talvez que os meus filhos se encontram agora mesmo a brincar em casa no jardim, e tenho boas razões para esta crença. Contudo, sem que eu o saiba, um vizinho foi até lá depois de eu ter saído de casa esta manhã para convidar as crianças para irem passar a manhã a casa dele. E se eu tivesse sabido isto, a minha justificação para crer que elas estão a brincar em casa seria anulada, porque eu também creio que elas normalmente aceitam esse tipo de convites. No entanto, a minha mulher tem estado preocupada com a saúde de uma delas e recusou o convite. Saberei eu que os meus filhos estão a brincar no jardim em casa? Se a sua intuição é que sim, sei, deve rejeitar o critério de revogabilidade de acordo com o agora formulado. Se é a de que não sei com base no facto de que se tivesse sabido do convite a minha justificação teria sido anulada, tem o dever de dar uma descrição do porquê (que eu desconheço) da verdade de que a minha mulher recusou o convite não conseguir restabelecer de algum modo o equilíbrio. De qualquer das formas, a proposta de revogabilidade tem de ser alterada.
O problema parece residir, tal como residia em relação ao requisito de que não pode haver falsidade pertinente, na forma como novas crenças podem ser acrescentadas pouco a pouco e destruir a justificação existente, ao passo que existem ainda outras verdades à espera em fundo para anular o elemento anulador? Primeiro queremos perguntar se, seja como for, não é provável que exista sempre alguma verdade que, se só ela fosse acrescentada e todas as outras excluídas, anulasse a minha justificação. Mesmo que isto não acontecesse sempre, acontecerá por certo com frequência suficiente para que o alcance do meu conhecimento seja consideravelmente reduzido, e isto em si é já uma espécie de objecção. Em segundo lugar, precisamos de encontrar uma maneira de contradizer o modo como a adição pouco a pouco de outras verdades parece ligar-me e depois desligar-me do conhecimento.
Poderíamos conseguir realizar a segunda tarefa alterando a nossa descrição de revogabilidade de forma a que, em vez de falarmos de alguma outra verdade (que pouco a pouco causou o problema da adição), falemos acerca de todas as verdades sejam elas quais forem. Assim poderíamos requerer como quarta condição que a nossa justificação fosse mantida, mesmo quando todas as verdades são acrescentadas em simultâneo ao nosso conjunto de crenças. Esta nova noção de revogabilidade parece (provavelmente) permitir que eu sei agora que os meus filhos estão a brincar no jardim, porque a segunda verdade acrescentada nega os poderes anuladores da primeira. Mas restam ainda problemas para esta nova noção de revogabilidade. Primeiro, ao falar de acrescentar todas as verdades ao mesmo tempo, parece que passámos claramente ao domínio da ficção. Com efeito, teremos alguma concepção adequada de «todas as verdades»? Segundo, parece, por este critério, nunca teremos mais do que a mais leve das razões para crer que conhecemos alguma coisa; pois ao crer isto estamos a crer que, quando todas as verdades lá estiverem, a nossa justificação manter-se-á, e parece ser necessário muito mais para sustentar essa crença do que o que é necessário para sustentar uma vulgar afirmação de conhecer.
Fiabilidade
Uma abordagem diferente desvia a nossa atenção da relação entre a proposição afirmada como conhecimento e outras crenças falsas que deviam ter sido verdadeiras ou outras verdades em que se devia ter acreditado. Foi por vezes sugerido que uma crença verdadeira justificada pode ser conhecimento quando deriva de um método fidedigno (ver Goldman, 1976; Armstrong, 1973, cap. 13; Swain, 1981). No exemplo de Gettier, Henry sabe de facto que a final de Wimbledon está a ser disputada nessa tarde; esta crença verdadeira justificada deriva do método seguro de ler os jornais, que estão normalmente correctos em relação a este tipo de coisa. No entanto, a sua crença de que q deriva nitidamente de um método que é menos que fidedigno. Tê-lo-ia induzido em erro neste ponto, se McEnroe tivesse sofrido um lapso momentâneo e sucumbido aos esforços de Connors desta vez.
A abordagem da fiabilidade pode ser mais elaborada; de certa forma está relacionada de perto com a abordagem causal considerada a seguir, porque nos é nitidamente devida uma descrição do que é a segurança, e uma resposta causal é tentadora (ver, p. ex., Goldman, 1979). No entanto, podemos já ver dificuldades para qualquer variação desta abordagem. Corre o perigo, ou de tornar o conhecimento impossível, ou de ir direito a um dos nossos argumentos cépticos.
Por fidedigno estamos a referir-nos a um método adequado, se devidamente seguido, é perfeitamente fidedigno e nunca conduz a uma crença falsa. Mas, independentemente da dificuldade geral de distinguir entre um defeito no método e um defeito na maneira como o método foi aplicado, parece improvável que existam quaisquer métodos perfeitamente fidedignos de adquirir crenças. O homem é falível, e a sua falibilidade manifesta-se não apenas no modo como os métodos são utilizados, mas nos métodos de recolha de crenças de que dispõe. Logo, se o conhecimento requer um método infalível ou perfeitamente seguro, é impossível.
Mas se nos afastarmos da noção de fiabilidade perfeita e requerermos apenas que o método seja geralmente fidedigno, convidamos aos argumentos cépticos do nosso segundo tipo. Como é que um método que falhou algures em circunstâncias pertinentemente semelhantes é suficiente para permitir conhecimento desta vez? Se tínhamos alguma esperança de que a nossa eventual descrição do conhecimento nos ajudasse a rejeitar os argumentos cépticos, esta descrição particular parece tornar as coisas piores e não melhores. E claro que isto não demonstrará que a descrição está errada. Pode ser que a descrição correcta do conhecimento dê infelizmente ao céptico a oportunidade de que ele está à espera. Mas não deveríamos aceitar que é assim que as coisas são antes de nos convencermos de que não há outra descrição do conhecimento que ofereça ao céptico menos vantagem. Podemos ainda ter esperança numa que lhe complique a vida em vez de lha facilitar.
Um afastamento final seria requerer apenas que o método seja seguro desta vez. Isto tem o efeito de desviar a nossa atenção de casos anteriores em que o método falhou e, logo, de escapar ao argumento céptico que tem nesses casos o seu ponto de partida. Mas poderíamos sensatamente duvidar de que o requisito de que o método seja seguro equivalha desta vez a qualquer adição genuína à descrição tripartida. Se a fiabilidade for definida em termos da produção de verdade, nada acrescenta à primeira condição desde que restrinjamos a nossa atenção ao caso particular. Se for definida em termos de justificação, nada acrescenta à terceira. E não há outra descrição que pareça convidativa. (Pode ser, no entanto, que a teoria causal seja equivalente a uma noção de justificação no caso particular; ver 2.4).
Razões Convincentes
Uma abordagem diferente revela a imperfeição de Henry no caso Gettier como devendo-se ao facto de as suas razões serem menos do que conclusivas. Se requerermos, para o conhecimento, que a crença verdadeira justificada se baseie em razões conclusivas, todos os casos Gettier, e na realidade qualquer caso em que o crente esteja correcto por acidente, caem por terra.
Todo o trabalho nesta abordagem deve centrar-se numa descrição persuasiva do que torna as razões conclusivas. Uma sugestão seria que, onde as crenças A-M constituem razões convincentes para a crença N, A-M não poderia ser verdadeiro se N for falso. Isto excluirá os exemplos contrários, mas tornará também o -conhecimento um fenómeno raro na melhor das hipóteses. O conhecimento empírico, pelo menos, parece agora impossível; no domínio empírico, as nossas razões nunca são conclusivas leste sentido.
Uma descrição mais fraca, que devemos a F. Dretske (1971), sugere que as razões A-M de alguém para uma crença N são conclusivas se e só se A-M não fossem verdadeiros se N for falso. isto é mais fraco porque dizer que A-M não seria verdadeiro se N for falso não é o mesmo do que dizer que não poderiam ser verdadeiros se N for falso, como diz a descrição mais forte. É tão fraca que não chega a fornecer um genuíno sentido de «conclusivo», mas isto não importa grandemente. Esta descrição mais fraca parece-me prometedora na sua abordagem geral, e a teoria que defenderei no capítulo seguinte, é distintamente semelhante. Mas difere no facto de não falar de razões; e isto é uma virtude porque parece de facto possível que deva haver crença justificada sem razões. A minha crença de que estou a sofrer pode talvez ser justificada, mas dificilmente se pode dizer que eu a baseie em razões conclusivas ou outras. Não a baseio de forma alguma em razões.
 A Teoria Causal
 A. I. Goldman propõe um complemento causal para a definição tripartida (Goldman, 1967). Uma diagnose inicial dos exemplos contrários de Gettier pode ser a de que é apenas uma questão de sorte que a crença justificada de Henry seja verdadeira. Esta diagnose não pode por si fornecer uma resposta adequada. Não nos podemos limitar a estipular que não há sorte envolvida, porque todos nós dependemos da sorte até certo ponto. Por exemplo, o facto de o nosso método de recolha de crenças fornecer aqui uma crença verdadeira em vez de uma falsa, como por vezes fornece, será unicamente uma questão de sorte quanto a nós. E evidentemente que o facto de a sorte se encontrar sempre envolvida algures dá também um ponto de apoio ao céptico. Mas a diagnose pode sugerir uma resposta melhor. A sugestão de Goldman é a de que, o que tornou crença verdadeira no caso Gettier, não é o que levou Henry a acreditar nela. Por conseguinte ele propõe, como quarta condição para o conhecimento de que p, que o facto de pdeveria causar a crença de a de que p. Isto exclui os casos Gettier porque neles, o facto de a crença ser verdadeira, é uma coincidência. Queremos que um elo de ligação entre crença e verdade impeça que isto aconteça, e um elo causal parece prometedor.
Por atraente que seja esta abordagem, depara com dificuldades. A primeira é a de que podemos considerar difícil supor que os factos possam causar o que quer que seja; eles são decerto demasiado inertes para que afectem o andamento do mundo, ainda que esse mundo seja um mero mundo mental de crenças. Afinal, o que são factos? A primeira ideia que nos surge é a de que os factos são semelhantes, se não idênticos, a proposições verdadeiras (o que explicaria a razão pela qual não existem factos falsos). Mas poderão as proposições verdadeiras causar alguma coisa? Certamente que os factos (ou as proposições verdadeiras) reflectem o mundo mais do que o afectam. As análises prevalecentes de causalidade parecem justificadamente admitir apenas acontecimentos e possivelmente agentes como causas. Em segundo lugar, há um problema acerca do conhecimento do futuro; a sugestão de Goldman parece requerer que, ou temos um caso de causalidade retrógrada (causando o futuro o passado), ou que o conhecimento do futuro é impossível, uma vez que as causas não podem suceder-se aos seus efeitos. Terceiro, há o problema do conhecimento universal, ou de uma forma mais geral do conhecimento por inferência. A minha crença de que todos os homens são mortais é causada, mas não pelo facto de todos os homens serem mortais; se quaisquer factos o causam, são os factos de este homem, aquele homem, etc.., terem morrido. E a morte destes homens não é causada pelo facto de todos os homens morrerem (o que restauraria a análise causal, com uma causa intermédia); mas todos os homens morrem porque esses homens morrem (entre outros). Como pode, pois, a análise causal mostrar que eu conheço que todos os homens morrem?
Há respostas para estas críticas, claro. Estamos mais habituados a falar de factos como causas do que a crítica primeira permite. O facto de os filósofos não se terem ainda persuadido de compreender a ideia de que os factos podem ser causas, não devia causar que nós excluíssemos todo o recurso à causalidade do facto como filosoficamente infundado. (A frase anterior é um caso pontual). Também a segunda crítica poderia ser respondida complicando a teoria ao permitir que os factos fossem conhecidos em casos em que facto e crença são efeitos diferentes de uma causa comum. A terceira crítica, parece, contudo, mais insubmissa. A aceitação de que os factos podem ser causas não melhorará muito a nossa predisposição para supor que os factos universais podem causar crenças universais.
Há aspectos prometedores na teoria causal, e a teoria que defenderei pode de facto ser encarada como uma generalização a partir dela.
 4. Observações Finais
 As várias propostas anteriormente consideradas foram apresentadas como se fossem adições à análise tripartida, admitindo que Gettier mostrara que a análise fosse insuficiente. Mas podemos encontrar entre elas pelo menos uma que pode ser considerada como uma defesa directa da análise tripartida. Qualquer proposta que seja equivalente a uma nova teoria da justificação pode conseguir mostrar que nos casos Gettier as crenças verdadeiras pertinentes não eram de todo justificadas. E podíamos considerar a teoria causal desta maneira. A teoria causal podia estar a dizer-nos que uma crença só é justificada quando causada (directa ou indirectamente) pelos factos. Estaria então a adoptar a via 1, conforme distinguida em 2.2. (Algumas versões da proposta de fiabilidade também podiam ser encaradas a esta luz.) Movendo-nos desta forma, partiríamos então de uma teoria causal da justificação; a teoria causal do conhecimento seria simplesmente uma das suas consequências.
Uma forma possível de argumentar contra uma teoria causal da justificação seria afirmar que não temos qualquer garantia de que exista apenas uma maneira de vir a justificar as crenças, e em particular nenhuma razão real para supor que qualquer maneira aceitável possa ser de algum modo causal, de forma que todas as crenças justificadas (de) que p devem ser causadas por factos pertinentes. Não queremos por certo excluir à partida a possibilidade de que algumas crenças morais, por exemplo, sejam justificadas, fazendo-o apenas porque não queremos admitir a existência de factos morais (se não o quisermos). E poderíamos continuar a duvidar da existência de factos matemáticos causalmente eficientes, sem querer com isso dizer que nenhumas crenças matemáticas possam por isso ser justificadas.
Mais importante, todavia, é que a sugerida descrição causal de justificação é falsa porque nega a possibilidade de uma crença falsa ser justificada. Uma crença falsa de que p não tem qualquer facto de que p a causá-la. Só se pode fugir a esta objecção encontrando uma descrição diferente da justificação de crenças falsas da que é apresentada para verdadeiras. Mas isso não pode estar correcto. A justificação deve ser a mesma tanto para crenças verdadeiras como para falsas, quanto mais não seja porque podemos perguntar e decidir se uma crença é justificada (p. ex., uma crença acerca do futuro) antes de decidirmos se é verdadeira ou falsa.
Esta crítica deixa em aberto a possibilidade de um tipo diferente de teoria causal, nas linhas sugeridas no final de 2.2. Com uma teoria causal do conhecimento e a tese de que uma crença é justificada se e só sendo verdadeira fosse conhecimento, podemos dar uma descrição causal da justificação que não é vulnerável à existência de crenças justificadas falsas.
  Leitura Adicional
 As dissertações centrais na área são de Gettier (1963), Dretske (1971), Goldman (1967) e Swain (1974).
A discussão (e rejeição) talvez mais antiga da definição tripartida encontra-se no Teeteto de Platão (Platão, 1973, 201 c-210d).
A enorme diligência recentemente gerada pelos defeitos encontrados na descrição tripartida é meticulosamente analisada in Shope (1983), com inúmeras referências. Existem evidentemente muitas abordagens e variantes de abordagens do problema Gettier que não discuti, incluindo a do próprio Shope.
A maioria das dissertações referidas no presente capítulo encontram-se coligidas in Pappas e Swain (1978), que contém também uma introdução analítica da área.
Prichard (1967) faz uma interessante e inovadora descrição das relações entre conhecimento, crença, certeza e verdade.
Uma questão importante que não discutimos é se o conhecimento implica crença. Para isto, cf. Ring (1977).
As dissertações da autoria de Gettier, Prichard e Woozley estão coligidas in Phillips Griffiths (1967).

DANCY, Jonathan (1990), 
Epistemologia Contemporânea. 
Lisboa: Edições 70, pp. 39-54.



Lola

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