Três sentidos de “conhece”
Na linguagem vulgar, quando dizemos que alguém conhece algo podemos querer dizer coisas diferentes com “conhece”. Há diferentes sentidos de “conhecimento” ou, digamos, diferentes tipos de conhecimento. De entre estes, os mais significativos são (1) o conhecimento proposicional, (2) o conhecimento por contacto e (3) o "saber-fazer”. Comecemos pelo conhecimento proposicional.
1. O conhecimento proposicional é o conhecimento de factos ou de proposições verdadeiras. Consideremos os exemplos seguintes de conhecimento proposicional:
(1) O João sabe que César foi assassinado.
(2) O João sabe que o céu é azul.
Nestes exemplos, os objectos do conhecimento, ou aquilo que é conhecido, são, respectivamente, as proposições verdadeiras César foi assassinado e o céu é azul.
É importante distinguir entre frases e proposições. Considerem-se duas pessoas, o Paulo e o Pedro. Suponhamos que cada um deles está convencido de que o céu é azul. Só que o Paulo apenas sabe falar Português e o Pedro apenas Francês. Ao expressar a sua crença, o Paulo diria “O céu é azul.” e o Pedro “Le ciel est bleu.” Embora cada um deles expresse a sua crença através de uma frase diferente, acreditam ambos na mesma proposição. Do mesmo modo, uma vez que ambos sabem que o céu é azul, conhecem a mesma proposição.
Podemos pensar a crença como uma relação entre um sujeito e uma proposição. Se a proposição de que estamos convencidos é verdadeira, então a nossa crença é verdadeira e se a proposição de que estamos convencidos é falsa, então a nossa crença é falsa. Podemos também pensar o conhecimento proposicional como uma relação entre um sujeito e uma proposição. Mais precisamente, o conhecimento proposicional é uma relação entre um sujeito e uma proposição verdadeira.
O conhecimento proposicional não é a única espécie de conhecimento. Suponhamos, por exemplo, que alguém faz as afirmações seguintes:
(3) O João conhece o presidente dos Estados Unidos.
(4) O João conhece o Papa.
Podemos naturalmente pensar que estas afirmações implicam que o João conhece pessoalmente, quer o presidente dos Estados Unidos, quer o Papa. Podemos naturalmente pensar que (3) e (4) implicam que o João esteve na presença deles. Se realmente entendemos (3) e (4) deste modo, então estamos a atribuir ao João um conhecimento por contacto. Dizer que o João conhece alguém por contacto implica que o conhece pessoalmente ou que esteve na sua presença.
É necessário distinguir o conhecimento por contacto do conhecimento proposicional. É óbvio que podemos ter bastante conhecimento proposicional sobre alguém sem ter conhecimento por contacto dessa pessoa. Posso, por exemplo, ter bastante conhecimento proposicional sobre o presidente. Posso saber que ele nasceu nesta ou naquela data e que ele frequentou tal ou tal universidade. Posso saber muitas mais proposições verdadeiras semelhantes acerca dele. Porém, do facto de ter bastante conhecimento proposicional sobre o presidente não se segue que tenho dele conhecimento por contacto, visto que não o conheço pessoalmente nem estive alguma vez na sua presença.
Na linguagem vulgar, quando dizemos “A conhece B”, estamos por vezes a usar “conhece” no sentido proposicional, outras vezes no sentido do conhecimento por contacto. Suponha-se, por exemplo, que um detective diz estas palavras sinistras “Conheço este assassino. Ele vai matar outra vez - e brevemente.” O nosso detective não tem de ser entendido como querendo dizer que esteve realmente na presença do assassino ou que o conhece pessoalmente. Pode querer dizer simplesmente que sabe que o assassino é do tipo que brevemente atacará outra vez. Detém uma certa espécie de conhecimento proposicional acerca do assassino. Da mesma forma, se eu estou impressionado com o vasto conhecimento que o João tem sobre César, posso dizer “O João conhece realmente César.” É claro que estou a dar a entender que o João tem muito conhecimento proposicional sobre César e não que o João esteve na sua presença.
Além de pessoas, podemos conhecer coisas por contacto. Podemos, por exemplo, conhecer Paris ou o sabor da manga por contacto. Se temos esse tipo de conhecimento de Paris é porque lá estivemos; e se temos esse tipo de conhecimento do sabor da manga é porque provámos manga. Mais uma vez, é necessário distinguir o conhecimento deste tipo do conhecimento proposicional. Podemos ter muito conhecimento proposicional acerca de Paris, sabendo quais são os principais boulevards, quando foi fundada a cidade, sabendo onde se localizam vários pontos marcantes da cidade, sem ter o tipo de conhecimento que decorre de ter lá estado.
Consideremos ainda o "saber-fazer.” Por vezes, quando dizemos “A sabe fazer X” queremos dizer ou dar a entender que A tem aptidão para X. Noutros casos, porém, quando dizemos que “A sabe fazer X” não queremos dizer que A tem aptidão para X. Assim, há um sentido em que “saber fazer X” sugere termos aptidão para X e outro que não o sugere. De acordo com o primeiro sentido de "saber-fazer”
(5) O João sabe tocar uma sonata para piano.
implica
(6) O João tem aptidão para tocar uma sonata para piano.
Lembremos, porém, que há outro sentido de saber fazer X que não implica que se tenha aptidão para X. Para ter uma ideia deste segundo sentido, suponhamos que o João é um violinista talentoso que lê bem música, mas não é capaz de tocar piano. Imaginemos que ele tem um profundo conhecimento sobre como tocar uma certa sonata para piano; pode saber, por exemplo, que o indicador direito deve tocar tal nota e que o polegar direito uma outra, e assim por diante. Na verdade, o João seria capaz de descrever precisamente como tocar a peça, mesmo não sendo capaz, ele mesmo, de a tocar. Neste caso, podemos dizer que o João sabe tocar a sonata, embora não tenha aptidão para tocá-la. Neste sentido de “saber-fazer”, (5) não implica (6). Há, pois, um sentido de “saber fazer" algo que se resume simplesmente a ter conhecimento proposicional sobre como fazê-lo. O violinista João, por exemplo, tem bastante conhecimento proposicional sobre como tocar uma sonata para piano, mas noutro sentido de “saber-fazer” não sabe tocar uma sonata para piano, pois falta-lhe a aptidão para tal.
Como se ilustra pelos casos anteriores, podemos ter muito conhecimento proposicional sobre como fazer algo sem ter a aptidão para o fazer. Inversamente, podemos ter a aptidão para fazer algo sem ter muito conhecimento proposicional sobre o assunto. Para perceber esta situação, imaginemos um fisiólogo que tem muito conhecimento proposicional sobre como andar. Estudou o modo como precisamos de transferir peso de um pé para outro, como os joelhos se devem dobrar, que músculos trabalham, etc. O nosso perito pode ter um grande conhecimento proposicional sobre como andar. Consideremos agora a jovem Maria. A Maria tem dez meses e acabou de aprender a andar. Ela sabe andar, mas podemos facilmente imaginar que lhe falta o conhecimento proposicional do perito sobre o assunto. O conhecimento proposicional da Maria sobre como andar é provavelmente bastante fraco, se é que é algum.
Distinguimos o conhecimento proposicional, quer do conhecimento por contacto, quer do saber fazer algo. Tradicionalmente, os filósofos preocuparam-se mais com o conhecimento proposicional. Uma das razões disto é que os filósofos se preocupam tipicamente com o que é verdadeiro. Querem saber o que é verdadeiro e avaliar e apreciar as suas próprias pretensões de conhecimento da verdade, bem como as dos outros. Quando, por exemplo, os filósofos se interrogam sobre a extensão do nosso conhecimento, preocupam-se tipicamente com a extensão do nosso conhecimento proposicional, com o número de verdades que conhecemos. Quando um filósofo diz que sabe que há objetos externos e outro o nega, há um desacordo sobre a existência de um certo tipo de conhecimento proposicional; há desacordo sobre o conhecimento de um certo tipo de verdades . O conhecimento por contacto e o "saber-fazer” não estão “focados na verdade” como o conhecimento proposicional.
Noah Lemos, An Introduction to the Theory of Knowledge
(Cambridge, 2007, pp. 2-5).
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