Gostaria
primeiramente de observar que fui solicitado para uma conversa e não para uma
conferência. Isso me deixou muito à vontade, pois, conversa supõe diálogo e o
diálogo é como que a casa da
Filosofia, desde os seus primórdios.
Sócrates foi um mestre do diálogo e Platão nos legou “Diálogos”. Pretendo,
pois, quanto possível dialogar e não monologar. Peço, assim, que as minhas
palavras iniciais sejam encaradas como um convite ao diálogo e não como uma
conferência.
O
que é filosofia? Para quê filosofar?
No mundo pragmático em que vivemos,
a filosofia parece não servir para absolutamente nada. Ela não consta das
rubricas orçamentárias, não tem dotação , não recebe verbas específicas... Mal
consta dos currículos escolares e os filósofos são, em sua maioria, uns
ilustres desempregados...
No entanto, ela serve, ou melhor, comanda tudo. Está presente em qualquer
decisão séria que tomamos, em qualquer estratégia que implantamos. Pode-se
dizer que ela é onipresente. Conforme Jaspers (1977. p.13)
“a filosofia é imprescindível ao homem. Está
sempre presente e manifesta nos provérbios tradicionais, em máximas filosóficas
correntes, em condições dominantes, quais sejam, por exemplo, a linguagem e as
crenças políticas”.
É
interessante notar que as grandes crises históricas foram férteis em pensamento
filosófico. Após a grande crise européia conseqüente à invasão dos bárbaros,
surgiram as grandes sínteses da Idade Média. A revolução copernicana que deu
origem ao mundo moderno fez aparecerem as filosofias racionalistas. À Segunda Guerra Mundial
seguiu-se o existencialismo...Nosso mundo, nosso país estão certamente em
crise. Estamos sentados sobre um vulcão que ameaça explodir. E já se esboçam
linhas novas de concepção filosófica.
Haverá uma relação necessária entre crise e
filosofia? De certo. A crise produz o que os gregos denominavam “thaumásia”, ou seja, admiração, pasmo,
espanto que eles apontavam como sendo a origem do pensar filosófico. Jaspers
(ib) acrescenta que a consciência do que ele chama “situações-limite” –
ter de morrer, ter de sofrer, ter de
lutar, estar sujeito ao acaso e incorrer inelutavelmente em culpa - também nos leva a filosofar. Não será
porque esta consciência nos põe também
ela em crise, causando espanto ou pasmo,
a thaumásia dos gregos?
Poderíamos, talvez, dizer que a crise gerando
o espanto ou pasmo, torna-nos conscientes de nossa fragilidade física,
intelectual, social ou moral, levando-nos a encarar a realidade como um problema na acepção que lhe dá Julián
Marías (apud Saviani, l980. p.20) de situação
dramática em que se está e não se pode mais continuar, exigindo, assim ,
uma solução. Ou seja, a crise, transformada
em problema, desperta a reflexão ou
“ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, vasculhar numa busca
constante de significado” (Saviani, 1980. p 23).
Quando esta reflexão se
torna, acrescenta Saviani (ib) radical,
rigorosa e global ou de conjunto nasce a filosofia.
Ao
dizermos reflexão radical, devemos
entender a expressão em seu sentido
literal: trata-se de uma reflexão que vá à raiz dos problemas, buscando atingir
suas últimas e mais profunda ramificações. Quando dizemos que a reflexão deve
ser rigorosa, entendemo-la como
sistemática e metódica. A reflexão deve ser ainda global ou de conjunto, isto é, realizada de modo a abarcar todos os
dados, de modo a não deixar escapar nenhum fio condutor no difícil trabalho de
discernir no emaranhado das raízes as imbricações fundamentais.
Resumindo,
podemos com Saviani (1980. p.27) afirmar que
“a filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os
problemas que a realidade apresenta”.
Já se vê que a filosofia é, antes de
mais nada, uma atitude e uma tarefa das quais resultam “filosofias” como
produto. Atitude ou disposição de amor à
verdade, que supõe, sobretudo, muita humildade e nenhuma arrogância de
espírito, como afirma Jaspers (1977. p 14), ao explicar o significado, a um
tempo etimológico e histórico, do termo:
“A palavra grega ‘philósophos’ foi
formada em oposição a ‘sophós’ e significa “o que ama o saber”, em
contraposição a ao possuidor de conhecimentos
(dono da verdade) que se designava por sábio. Este sentido da palavra
manteve-se até hoje: é a demanda da verdade e não a sua posse que constitui a
essência da filosofia...”
Das crises, portanto, surgem as
filosofia como fruto da necessidade humana de compreender a realidade e de
fundamentar a ação que visa a transformá-la.
Será a filosofia algo de intermitente, que apenas de vez em quando desponta ao longo
da história? Não, pois a história é - e cada vez mais - uma longa e funda crise na qual há, certamente, períodos mais
dolorosos e enfáticos, mas que por sua contínua e surpreendente novidade está sempre a nos chocar, suscitando-nos, em
conseqüência, uma atitude constante de reflexão e de busca. A filosofia é,
assim, onipresente, pois, se ninguém escapa
ao mundo e à história, ninguém, a não ser por demência, escapa à crise:
“Não
se pode fugir à filosofia. Pode-se perguntar apenas se ela é consciente ou
inconsciente, boa ou má, confusa ou clara. Quem recusa a filosofia está
realizando um ato filosófico de que não tem consciência” (Jaspers, 1977.
p.13).
A afirmação final de Jaspers não faz
mais que atualizar o velho argumento aristotélico:
“Ou se deve filosofar, ou não se deve filosofar. Se não se deve
filosofar, isto só em nome de uma filosofia. Portanto, mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar” (cf. Bochenski, 1973. p. 23).
“Me philosophetéon, philosophetéon”,
declarava Aristóteles: mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar. Não
há como fugir à filosofia. É verdade que
nem todos têm condições de estabelecer uma reflexão que vá até as raízes, que
siga com rigor um método, que possua todos os dados necessários a uma visão de
conjunto da realidade, sobretudo se considerarmos que esses dados se avolumam e
complexificam, à medida que avançam as ciências. Todos tentam, entretanto,
consciente ou inconscientemente, com os recursos de que dispõem, com as
informações que têm à mão, dar uma resposta aos problemas fundamentais,
explicar as “situações-limite”, dar um sentido à vida e à realidade: todos, de
algum modo, filosofam.
Uma
observação final deve ser ainda acrescentada:
“Filosofar significa estar a caminho. As interrogações são mais
importantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova
interrogação” (Jaspers, 1977. p 14).
A filosofia é aberta, por mais que o
filósofo pretenda dar respostas definitivas. A realidade é rebelde e não se
deixa apanhar com facilidade em nossas redes de compreensão. É por demais
complexa e dinâmica para que possamos emitir sobre ela uma palavra definitiva.
Nem sempre – e isso ocorre com freqüência – consideramos todos os dados
disponíveis ou escolhemos as informações
capazes de nos conduzirem à raiz mestra dos problemas ou das crises. Ou, então,
quando parece que a atingimos, damo-nos conta de que ainda estamos na superfície
e de que é necessário cavar mais fundo: “cada resposta se transforma em nova
interrogação”. Não importa o esforço! É melhor seguir que estagnar. Além disso,
não caminhamos sozinhos. O que não descobrimos, outros descobrem ou descobrirão
e nossas chamas juntas tornarão o mundo, se não transparente, pelo menos mais
claro!
A
filosofia é, pois, imprescindível. Não serve para nada e serve para tudo. Não
há como negá-la: ela se impõe por si mesma!
Refugá-la, só deixando de ser o que somos: consciências que refletem num
mundo em permanente crise, num constante devir.
II – Para que Filosofia da Educação?
Talvez seja mais pertinente
perguntar: para que filosofia na educação? A resposta é simples: porque
educação é, afinal de contas, o próprio “tornar-se homem” de cada homem num
mundo em crise.
Não
há como educar fora do mundo. Nenhum educador, nenhuma instituição educacional
pode colocar-se à margem do mundo, encarapitando-se numa torre de marfim. A
educação, de qualquer modo que a entendamos, sofrerá necessariamente o impacto
dos problemas da realidade em que acontece, sob pena de não ser educação. Em
função dos problemas existentes na realidade é que surgem os problemas
educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as
variáveis que determinam uma situação. Deste modo, a “Filosofia na educação”
transforma-se em “Filosofia da Educação”
enquanto reflexão rigorosa, radical e global ou de conjunto sobre os problemas
educacionais. De fato, os problemas educacionais envolvem sempre os problemas
da própria realidade. A Filosofia da Educação apenas não os considera em si
mesmos, mas enquanto imbricados no contexto educativo.
Penso
que disto decorrem duas conseqüências muito simples, óbvias até! A primeira é
que todo educador deve filosofar.
Melhor ainda, filosofa sempre, queira ou não, tenha ou não consciência do fato.
Só que nem sempre filosofa bem. A este respeito afirma Kneller (1972. p. 146):
“se um professor ou líder educacional não
tiver uma filosofia da educação, dificilmente chegará a algum lugar. Um educador
superficial pode ser bom ou mau. Se for bom, é menos bom do que poderia ser e,
se for mau, será pior do que precisava ser”.
Que
problemas no campo da educação exigem de nós
uma reflexão filosófica, nos termos acima explicitados? São muitos. Permitam-me
apontar apenas alguns.
Já
que a educação é o processo de tornar-se homem de cada homem, é necessário
refletir sobre o homem para que se possa saber o “para onde” se deve orientar a
educação. É necessário, porém, que esta reflexão não seja unicamente teórica,
abstrata, desencarnada. É preciso levar em conta a situação espácio-temporal em
que ocorre o processo. Com efeito, não importa apenas o “tornar-se homem”, mas
o “tornar-se homem hoje no Brasil”. Só desta forma podemos estabelecer com clareza
o que, por exemplo, se tem convencionalmente chamado de “marco referencial”, a
partir do qual, numa instituição educativa, currículo, planejamento e
atividades podem atingir um mínimo de coerência e de eficiência.
Que
teoria de aprendizagem adotar? Que métodos e técnicas utilizar? Já afirmavam
Binet e Simon correr
“o
risco de um cego empirismo quem se conforma em aplicar um método pedagógico sem
investigar a doutrina que lhe serve de alma”.
Não há métodos neutros. Não
há técnicas neutras. No bojo de qualquer teoria, de qualquer método, de
qualquer técnica está implícita uma visão de homem e de mundo, uma
filosofia.
A
filosofia é, assim, norteadora de todo o processo educativo. O maior problema
educacional brasileiro sempre foi e ainda
é, a meu ver, o denunciado por Anísio Teixeira no título de uma de suas
obras principais: “Valores proclamados e valores reais na educação brasileira”.
Quer em nível de sistema, quer em nível de escola, proclamamos belíssimos princípios
filosófico-educacionais. Na prática, entretanto, caminhamos ao sabor das
ideologias e das novidades e – o que é pior – sem nos darmos conta da
incoerência existente entre nossas palavras e nossos atos.
A
segunda conseqüência a ser tirada do que antes dissemos é que também o educando deve filosofar, ou
seja, deve refletir sistematicamente, buscando as raízes dos problemas - seus e de seu tempo - de modo a formar uma “visão de mundo” e
adquirir criticamente princípios e valores que lhe orientem a vida.
Só assim serão homens e não robôs. É preciso, pois, municiá-lo de
instrumentos racionais e afetivos para
que se habitue a ser crítico, a não se contentar com qualquer resposta, a
colocar sempre e em tudo uma pitada razoável de dúvida, a cavar fundo e não se
intimidar perante a tarefa ingrata de estar sempre questionando e se
questionando.
A partir de minha já longa experiência de
magistério, posso afirmar que há sempre
fome de filosofia. Basta levantar um problema
nos termos acima descritos para
que se alcem as antenas, sobretudo as
juvenis! Talvez porque, tendo uma
percepção não muito nítida, mas agudamente sentida da crise,
faltem aos jovens o instrumental
necessário para explicitá-la, analisá-la e julgá-la, em razão do
banimento a que assistimos da filosofia, até mesmo de nossos currículos escolares.
Conclusão
Não
há, portanto, como fugir à filosofia no campo da educação. Ela se relaciona
intimamente com a função nem sempre
levada a sério e, não obstante, fundamental, de avaliar. De fato, a avaliação resume, de certo modo, ou acompanha, como
um vetor ou como um eixo orientador,
todo o processo educacional. Ela se faz presente no início do processo, ao
estabelecermos as metas; no seu decurso, quando traçamos e executamos as
estratégias; no final, quando julgamos o que e quanto foi cumprido. Ora,
avaliar é emitir juízos de valor e estes implicam sempre, queiramos ou não,
consciente ou inconscientemente uma posição filosófica, uma filosofia.
Uma palavra, talvez, resuma tudo o que
tentamos dizer: a filosofia é o aval da educação!
Referências
bibliográficas
BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico.
São Paulo: EPU, 1973. 119 p.
JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães, 1977. 173 p.
SAVIANI, Dermeval. Educação; do senso comum à
consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1980. 224 p.
KNELLER, Georges. Introdução à filosofia da educação.
4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. 167 p.
Prof. José J. F. Lara
Extraído de Estudos Leopoldenses,
São Leopoldo, v. 21, n. 85, p. 29-36.
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