segunda-feira, 21 de maio de 2018

Filosofia da Educação


    

Filosofia e Filosofia da Educação
           

Gostaria primeiramente de observar que fui solicitado para uma conversa e não para uma conferência. Isso me deixou muito à vontade, pois, conversa supõe diálogo e o diálogo é como que a casa  da Filosofia,  desde os seus primórdios. Sócrates foi um mestre do diálogo e Platão nos legou “Diálogos”. Pretendo, pois, quanto possível dialogar e não monologar. Peço, assim, que as minhas palavras iniciais sejam encaradas como um convite ao diálogo e não como uma conferência.
 
 O que é filosofia? Para quê filosofar?
 
No mundo pragmático em que vivemos, a filosofia parece não servir para absolutamente nada. Ela não consta das rubricas orçamentárias, não tem dotação , não recebe verbas específicas... Mal consta dos currículos escolares e os filósofos são, em sua maioria, uns ilustres desempregados...
 
No entanto, ela serve, ou melhor, comanda tudo. Está presente em qualquer decisão séria que tomamos, em qualquer estratégia que implantamos. Pode-se dizer que ela é onipresente. Conforme Jaspers (1977. p.13) 

“a filosofia é imprescindível ao homem. Está sempre presente e manifesta nos provérbios tradicionais, em máximas filosóficas correntes, em condições dominantes, quais sejam, por exemplo, a linguagem e as crenças políticas”.
 
            É interessante notar que as grandes crises históricas foram férteis em pensamento filosófico. Após a grande crise européia conseqüente à invasão dos bárbaros, surgiram as grandes sínteses da Idade Média. A revolução copernicana que deu origem ao mundo moderno fez aparecerem as filosofias  racionalistas. À Segunda Guerra Mundial seguiu-se o existencialismo...Nosso mundo, nosso país estão certamente em crise. Estamos sentados sobre um vulcão que ameaça explodir. E já se esboçam linhas novas de concepção filosófica.
 
              Haverá uma relação necessária entre crise e filosofia? De certo. A crise produz o que os gregos denominavam “thaumásia”, ou seja, admiração, pasmo, espanto que eles apontavam como sendo a origem do pensar filosófico. Jaspers (ib) acrescenta que a consciência do que ele chama “situações-limite” – ter  de morrer, ter de sofrer, ter de lutar, estar sujeito ao acaso e incorrer inelutavelmente em culpa - também nos leva a filosofar. Não será porque esta consciência nos põe  também ela em crise, causando  espanto ou pasmo, a thaumásia dos gregos?
 
 Poderíamos, talvez, dizer que a crise gerando o espanto ou pasmo, torna-nos conscientes de nossa fragilidade física, intelectual, social ou moral, levando-nos a encarar a realidade como um problema na acepção que lhe dá Julián Marías (apud Saviani, l980. p.20) de situação dramática em que se está e não se pode mais continuar, exigindo, assim , uma solução. Ou seja, a crise, transformada em problema, desperta a reflexão ou 

“ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, vasculhar numa busca constante de significado” (Saviani, 1980. p 23). 

Quando esta reflexão se torna, acrescenta Saviani (ib) radical, rigorosa e global ou de conjunto nasce a filosofia.
 
            Ao dizermos reflexão radical, devemos entender a expressão  em seu sentido literal: trata-se de uma reflexão que vá à raiz dos problemas, buscando atingir suas últimas e mais profunda ramificações. Quando dizemos que a reflexão deve ser rigorosa, entendemo-la como sistemática e metódica. A reflexão deve ser ainda global ou de conjunto, isto é, realizada de modo a abarcar todos os dados, de modo a não deixar escapar nenhum fio condutor no difícil trabalho de discernir no emaranhado das raízes as imbricações fundamentais.
 
            Resumindo, podemos com Saviani (1980. p.27) afirmar que 

“a filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade apresenta”.
 
 
Já se vê que a filosofia é, antes de mais nada, uma atitude e uma tarefa das quais resultam “filosofias” como produto. Atitude ou disposição de amor à verdade, que supõe, sobretudo, muita humildade e nenhuma arrogância de espírito, como afirma Jaspers (1977. p 14), ao explicar o significado, a um tempo etimológico e histórico,  do termo: 

“A palavra grega ‘philósophos’ foi formada em oposição a ‘sophós’ e significa “o que ama o saber”, em contraposição a ao possuidor de conhecimentos  (dono da verdade) que se designava por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até hoje: é a demanda da verdade e não a sua posse que constitui a essência da filosofia...”
           
Das crises, portanto, surgem as filosofia como fruto da necessidade humana de compreender a realidade e de fundamentar a ação que visa a transformá-la.
 
 Será a filosofia algo de intermitente,  que apenas de vez em quando desponta ao longo da história? Não, pois a história é - e cada vez mais - uma longa e funda  crise na qual há, certamente, períodos mais dolorosos e enfáticos, mas que por sua contínua e surpreendente novidade  está sempre a nos chocar, suscitando-nos, em conseqüência, uma atitude constante de reflexão e de busca. A filosofia é, assim, onipresente, pois, se  ninguém escapa ao mundo e à história, ninguém, a não ser por demência, escapa  à crise:

“Não se pode fugir à filosofia. Pode-se perguntar apenas se ela é consciente ou inconsciente, boa ou má, confusa ou clara. Quem recusa a filosofia está realizando um ato filosófico de que não tem consciência” (Jaspers, 1977. p.13).

A afirmação final de Jaspers não faz mais que atualizar o velho argumento aristotélico

“Ou se deve filosofar, ou não se deve filosofar. Se não se deve filosofar, isto só em nome de uma filosofia. Portanto, mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar” (cf. Bochenski, 1973. p. 23).
           

“Me philosophetéon, philosophetéon”, declarava Aristóteles: mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar. Não há  como fugir à filosofia. É verdade que nem todos têm condições de estabelecer uma reflexão que vá até as raízes, que siga com rigor um método, que possua todos os dados necessários a uma visão de conjunto da realidade, sobretudo se considerarmos que esses dados se avolumam e complexificam, à medida que avançam as ciências. Todos tentam, entretanto, consciente ou inconscientemente, com os recursos de que dispõem, com as informações que têm à mão, dar uma resposta aos problemas fundamentais, explicar as “situações-limite”, dar um sentido à vida e à realidade: todos, de algum modo, filosofam.
             
            Uma observação final  deve ser ainda  acrescentada: 

“Filosofar significa estar a caminho. As interrogações são mais importantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interrogação” (Jaspers, 1977. p 14). 

A filosofia é aberta, por mais que o filósofo pretenda dar respostas definitivas. A realidade é rebelde e não se deixa apanhar com facilidade em nossas redes de compreensão. É por demais complexa e dinâmica para que possamos emitir sobre ela uma palavra definitiva. Nem sempre – e isso ocorre com freqüência – consideramos todos os dados disponíveis ou  escolhemos as informações capazes de nos conduzirem à raiz mestra dos problemas ou das crises. Ou, então, quando parece que a atingimos, damo-nos conta de que ainda estamos na superfície e de que é necessário cavar mais fundo: “cada resposta se transforma em nova interrogação”. Não importa o esforço! É melhor seguir que estagnar. Além disso, não caminhamos sozinhos. O que não descobrimos, outros descobrem ou descobrirão e nossas chamas juntas tornarão o mundo, se não transparente, pelo menos mais claro!
 
            A filosofia é, pois, imprescindível. Não serve para nada e serve para tudo. Não há como negá-la: ela se impõe por si mesma!  Refugá-la, só deixando de ser o que somos: consciências que refletem num mundo em permanente crise, num constante devir.
 
  
II – Para que Filosofia da Educação?
 
            Talvez seja mais pertinente perguntar: para que filosofia na educação? A resposta é simples: porque educação é, afinal de contas, o próprio “tornar-se homem” de cada homem num mundo em crise.
 
            Não há como educar fora do mundo. Nenhum educador, nenhuma instituição educacional pode colocar-se à margem do mundo, encarapitando-se numa torre de marfim. A educação, de qualquer modo que a entendamos, sofrerá necessariamente o impacto dos problemas da realidade em que acontece, sob pena de não ser educação. Em função dos problemas existentes na realidade é que surgem os problemas educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as variáveis que determinam uma situação. Deste modo, a “Filosofia na educação” transforma-se em “Filosofia da Educação” enquanto reflexão rigorosa, radical e global ou de conjunto sobre os problemas educacionais. De fato, os problemas educacionais envolvem sempre os problemas da própria realidade. A Filosofia da Educação apenas não os considera em si mesmos, mas enquanto imbricados no contexto educativo.
 
            Penso que disto decorrem duas conseqüências muito simples, óbvias até! A primeira é que todo educador deve filosofar. Melhor ainda, filosofa sempre, queira ou não, tenha ou não consciência do fato. Só que nem sempre filosofa bem. A este respeito afirma Kneller (1972. p. 146): 

“se um professor ou líder educacional não tiver uma filosofia da educação, dificilmente chegará a algum lugar. Um educador superficial pode ser bom ou mau. Se for bom, é menos bom do que poderia ser e, se for mau, será pior do que precisava ser”.
 
            Que problemas no campo da educação exigem de nós  uma reflexão filosófica, nos termos acima explicitados? São muitos. Permitam-me apontar apenas alguns.
 
            Já que a educação é o processo de tornar-se homem de cada homem, é necessário refletir sobre o homem para que se possa saber o “para onde” se deve orientar a educação. É necessário, porém, que esta reflexão não seja unicamente teórica, abstrata, desencarnada. É preciso levar em conta a situação espácio-temporal em que ocorre o processo. Com efeito, não importa apenas o “tornar-se homem”, mas o “tornar-se homem hoje no Brasil”. Só desta forma podemos estabelecer com clareza o que, por exemplo, se tem convencionalmente chamado de “marco referencial”, a partir do qual, numa instituição educativa, currículo, planejamento e atividades podem atingir um mínimo de coerência e de eficiência. 
           
            Que teoria de aprendizagem adotar? Que métodos e técnicas utilizar? Já afirmavam Binet e Simon  correr  

“o risco de um cego empirismo quem se conforma em aplicar um método pedagógico sem investigar a doutrina que lhe serve de alma”. 

Não há métodos neutros. Não há técnicas neutras. No bojo de qualquer teoria, de qualquer método, de qualquer técnica está implícita uma visão de homem e de mundo, uma filosofia. 
 
            A filosofia é, assim, norteadora de todo o processo educativo. O maior problema educacional brasileiro sempre foi e ainda  é, a meu ver, o denunciado por Anísio Teixeira no título de uma de suas obras principais: “Valores proclamados e valores reais na educação brasileira”. Quer em nível de sistema, quer em nível de escola, proclamamos  belíssimos princípios filosófico-educacionais. Na prática, entretanto, caminhamos ao sabor das ideologias e das novidades e – o que é pior – sem nos darmos conta da incoerência existente entre nossas palavras e nossos atos.
 
            A segunda conseqüência a ser tirada do que antes dissemos é que também o educando deve filosofar, ou seja, deve refletir sistematicamente, buscando as raízes dos  problemas - seus e  de seu tempo -  de modo a formar uma “visão de mundo” e adquirir criticamente princípios e valores que lhe orientem  a vida.  Só assim serão homens e não robôs. É preciso, pois, municiá-lo de instrumentos racionais e afetivos  para que se habitue a ser crítico, a não se contentar com qualquer resposta, a colocar sempre e em tudo uma pitada razoável de dúvida, a cavar fundo e não se intimidar perante a tarefa ingrata de estar sempre questionando e se questionando.
 
 A partir de minha já longa experiência de magistério, posso  afirmar que há sempre fome de filosofia. Basta levantar um problema nos termos acima descritos para que se alcem  as antenas, sobretudo as juvenis!  Talvez porque, tendo uma

percepção não muito  nítida, mas agudamente sentida  da crise,  faltem aos jovens  o instrumental necessário  para explicitá-la,  analisá-la e julgá-la, em razão do banimento  a que assistimos da filosofia,  até mesmo de nossos currículos escolares.
 
Conclusão
 
            Não há, portanto, como fugir à filosofia no campo da educação. Ela se relaciona intimamente  com a função nem sempre levada a sério e, não obstante, fundamental, de avaliar. De fato, a avaliação  resume, de certo modo, ou acompanha, como um  vetor ou como um eixo orientador, todo o processo educacional. Ela se faz presente no início do processo, ao estabelecermos as metas; no seu decurso, quando traçamos e executamos as estratégias; no final, quando julgamos o que e quanto foi cumprido. Ora, avaliar é emitir juízos de valor e estes implicam sempre, queiramos ou não, consciente ou inconscientemente uma posição filosófica, uma filosofia.
 
 Uma palavra, talvez, resuma tudo o que tentamos dizer: a filosofia é o aval da educação!
 
 Referências bibliográficas      
 
BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1973. 119 p.
JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães, 1977. 173 p.
SAVIANI, Dermeval. Educação; do senso comum  à  consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1980. 224 p.
KNELLER, Georges. Introdução à filosofia da educação. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. 167 p.

 Prof. José J. F. Lara
 
 Extraído de  Estudos Leopoldenses, 
São Leopoldo, v. 21, n. 85, p. 29-36. 
Revisado e modificado pelo autor em 18/02/2001



                                           Lola



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