Sociedade do Cansaço
“A sociedade do século XXI
não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também os seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de
desempenho e produção. São empresários de si mesmos”
– Byung-Chul Han, em “Sociedade do Cansaço”.[tradução Enio Paulo Gianchini]. São Paulo: Editora Vozes, 2015.
O filósofo sul-coreano, um
destacado dissecador da sociedade do hiperconsumismo, fala sobre suas críticas
ao “inferno do igual”
– por Carles Geli (Barcelona, El País*)
– por Carles Geli (Barcelona, El País*)
As Torres Gêmeas,
edifícios idênticos que se refletem mutuamente, um sistema fechado em si mesmo,
impondo o igual e excluindo o diferente e que foram alvo de um ataque que abriu um buraco
no sistema global do igual. Ou as pessoas praticando binge watching (maratonas de
séries), visualizando continuamente só aquilo de que gostam: mais uma vez,
multiplicando o igual, nunca o diferente ou o outro… São duas das poderosas
imagens utilizadas pelo filósofo sul coreano Byung-Chul Han (Seul,
1959), um dos mais reconhecidos dissecadores dos males que acometem a sociedade
hiperconsumista e neoliberal depois da queda do Muro de Berlim. Livros como A
Sociedade do Cansaço, Psicopolítica e A Expulsão do Diferente reúnem
seu denso discurso intelectual, que ele desenvolve sempre em rede: conecta
tudo, como faz com suas mãos muito abertas, de dedos longos que se juntam
enquanto ajeita um curto rabo de cavalo.
“No 1984 orwelliano a sociedade era
consciente de que estava sendo dominada; hoje não temos nem essa consciência de
dominação”, alertou em sua palestra no Centro de Cultura Contemporânea de
Barcelona (CCCB), na Espanha, onde o professor formado e radicado na Alemanha
falou sobre a expulsão da diferença. E expôs sua particular visão de mundo,
construída a partir da tese de que os indivíduos hoje se autoexploram e têm
pavor do outro, do diferente. Vivendo, assim, “no deserto, ou no inferno, do
igual”.
Autenticidade. Para Han, as pessoas se
vendem como autênticas porque “todos querem ser diferentes uns dos outros”, o
que força a “produzir a si mesmo”. E é impossível ser verdadeiramente diferente
hoje porque “nessa vontade de ser diferente prossegue o igual”. Resultado: o
sistema só permite que existam “diferenças comercializáveis”.
Autoexploração. Na opinião do filósofo,
passou-se do “dever fazer” para o “poder fazer”. “Vive-se com a angústia de não
estar fazendo tudo o que poderia ser feito”, e se você não é um vencedor, a
culpa é sua. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando;
é a lógica traiçoeira do neoliberalismo que culmina na síndrome de burnout”. E a consequência: “Não há mais contra quem direcionar a
revolução,
a repressão não vem mais dos outros”. É “a alienação de si mesmo”, que no
físico se traduz em anorexias ou em compulsão alimentar ou no consumo exagerado
de produtos ou entretenimento.
‘Big data’. “Os macrodados tornam
supérfluo o pensamento porque se tudo é quantificável, tudo é igual… Estamos em
pleno dataísmo: o homem não é mais soberano de si mesmo, mas resultado de uma
operação algorítmica que o domina sem que ele perceba; vemos isso na China com
a concessão de vistos segundo os dados geridos pelo Estado ou na técnica do reconhecimento facial“. A revolta implicaria em
deixar de compartilhar dados ou sair das redes sociais? “Não podemos nos
recusar a fornecê-los: uma serra também pode cortar cabeças… É preciso ajustar
o sistema: o ebook foi feito para que eu o leia, não para que eu seja lido
através de algoritmos… Ou será que o algoritmo agora fará o homem? Nos Estados Unidos vimos a influência
do Facebook nas eleições… Precisamos de uma carta digital que recupere a dignidade humana
e pensar em uma renda básica para as profissões que serão devoradas pelas novas
tecnologias”.
Comunicação. “Sem a presença do
outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são
substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação
digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a
comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os
mais iguais; o igual não dói!”.
Jardim. “Eu sou diferente; estou
cercado de aparelhos analógicos: tive dois pianos de 400 quilos e por três anos
cultivei um jardim secreto que me deu contato com a realidade: cores, aromas,
sensações… Permitiu-me perceber a alteridade da terra: a terra tinha peso,
fazia tudo com as mãos; o digital não pesa, não tem cheiro, não opõe
resistência, você passa um dedo e pronto… É a abolição da realidade; meu
próximo livro será esse: Elogio
da Terra. O Jardim Secreto. A terra é mais do que dígitos e
números.
Narcisismo. Han afirma que “ser observado hoje é um aspecto
central do ser no mundo”. O problema reside no fato de que “o narcisista é cego na hora
de ver o outro” e, sem esse outro, “não se pode produzir o sentimento de
autoestima”. O narcisismo teria chegado também àquela que deveria ser uma
panaceia, a arte: “Degenerou em narcisismo, está ao serviço do consumo,
pagam-se quantias injustificadas por ela, já é vítima do sistema; se fosse
alheia ao sistema, seria uma narrativa nova, mas não é”.
Os outros. Esta é a chave para suas
reflexões mais recentes. “Quanto mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção;
essa é a lógica atual; o capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os
turistas; o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentes”.
Por isso propõe “retornar ao animal original, que não consome nem se comunica
de forma desenfreada; não tenho soluções concretas, mas talvez o sistema acabe
desmoronando por si mesmo… Em todo caso, vivemos uma época de conformismo
radical: a universidade tem clientes e só cria trabalhadores, não forma
espiritualmente; o mundo está no limite de sua capacidade; talvez assim chegue
a um curto-circuito e recuperemos aquele animal original”.
Refugiados. Han é muito claro: com o
atual sistema neoliberal “não se sente preocupação, medo ou aversão pelos refugiados, na verdade são vistos como um peso, com ressentimento ou
inveja”; a prova é que logo o mundo ocidental vai veranear em seus países.
Tempo. É preciso revolucionar o uso do tempo, afirma o filósofo,
professor em Berlim. “A aceleração atual diminui a capacidade de permanecer:
precisamos de um tempo próprio que o sistema produtivo não nos deixa ter; necessitamos
de um tempo livre, que significa ficar parado, sem nada produtivo a fazer, mas
que não deve ser confundido com um tempo de recuperação para continuar
trabalhando; o tempo trabalhado é tempo perdido, não é um tempo para nós”.
El País,
7 de Fevereiro de 2018
O nome do autor desse pequeno livrinho é quase
impronunciável: Byung-Chul Han, nascido na Coréia e fixado na Alemanha. Fui
atrás de um coreano e perguntei pela pronúncia. E a sugestão foi Pian-Chôl-Han
e se non é vero é bene trovato. Estudou
Filosofia na Universidade de Friburgo, Literatura Alemã e Teologia na
Universidade de Munique. Em 1994, doutorou-se com uma tese sobre Martin
Heidegger. Atualmente é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade
de Berlim. Ensaísta, escreve sobre temas atuais.
Gosto muito desse gênero, o ensaio,
e a Sociedade do Cansaço é um
primor. O autor faz, inspirando-se em M. Heidegger, uma espécie de diagnóstico
da sociedade contemporânea, vale dizer, do século XXI. Estabelece, para isso,
uma discussão com vários filósofos: Hannah Arendt, Gilles Deleuze, Giorgio
Agamben, Friedrich Nietzsche; todavia, o seu principal interlocutor é Michel
Foucault e a sociedade disciplinar, pertinente aos séculos XIX e XX, feita de
asilos, hospitais, fábricas, prisões, quartéis e descrita primorosamente em Vigiar e Punir. Na base da sociedade
disciplinar o xantóptico: uma
metáfora de vigilância do espaço e do tempo para a “produção” de corpos dóceis,
produtivos e obedientes. A sociedade disciplinar é uma sociedade da
negatividade, dominada pelo não, pela proibição e pela coerção. O verbo modal
negativo que a domina é não-ter-o-direito.
Sua negatividade gera loucos e delinquentes.
Em muito pouco tempo, sempre
segundo Byung-Chul-Han, a sociedade se transformou, a ponto de já não mais
denominar-se sociedade disciplinar. Estamos “além” da sociedade disciplinar,
estamos vivendo em sociedade de desempenho e nela os sujeitos não mais são os
“sujeitos da obediência”, mas “sujeitos do desempenho e produção”.
Empreendedores. Para que essa passagem ocorresse uma mudança
na estrutura psíquica dos indivíduos se produziu.
1. Negatividade do paradigma Imunológico X Excesso
de positividade
A época do paradigma imunológico, o
século XX, está se esgotando. São características dessa época a divisão entre o dentro e o fora,
o amigo e o inimigo, o próprio e o estranho — este último, em particular,
eliminado em função de sua alteridade. Vale dizer, a alteridade é a
característica fundamental da imunologia e, não por acaso, seu vocabulário é o
da guerra: a ação é definida como ataque e a defesa. Toda e qualquer reação imunológica
repousa na alteridade/na interioridade/na negatividade. Globalização e
paradigma imunológico não caminham juntos. O mundo organizado imunologicamente
possui muros, cercas, barreiras, soleiras, trincheiras. Essa organização impede
o processo de troca e intercâmbio e não é então adequado à globalização.
São essas as peças chaves desse
paradigma: alteridade/ interioridade e negatividade. E é no — e com — o
esgotamento dessas matrizes que se impôs a mudança na
estrutura psíquica dos indivíduos a qual nos interessa
particularmente discutir.
Com o desaparecimento da
alteridade, o mundo torna-se pobre em negatividades. O excesso de positividades
é a característica da nossa presente época, marcada por patologias específicas:
depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade
(TDAH), transtorno de personalidade limítrofe, Síndrome de Burnout. Vivemos uma violência de
positividade, que podemos traduzir em supercomunicação, superprodução e
superdesempenho. A hiperatividade representa a massificação do positivo.
1 Yes, we can: mudança na estrutura psíquica
O caráter positivo da sociedade de
desempenho é expresso por Yes, we can. Maximizar a produção: essa palavra
de ordem já habita o inconsciente social. No
lugar de proibição, mandamento ou lei, entram iniciativa, projeto,
motivação. A positividade do poder é mais eficiente que a negatividade do
dever! O sujeito de desempenho é mais rápido e produtivo que o sujeito da
obediência. Convocado pela rapidez, ele realiza um grande número de tarefas ao
mesmo tempo (multitarefas) e sua atenção também se multiplica: hiperatenção com
uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, processos e fontes
informativas e com isso a atenção perde a profundidade e torna-se cada vez mais
rasa.
E, o que me parece fundamental: o
sujeito do desempenho está livre da instância
externa de domínio que o obriga a trabalhar, explorando-o. Vale
dizer, até mesmo em relação à exploração, o sujeito do desempenho livrou-se da alteridade e, com ela, da negatividade. Tornou-se senhor e soberano
de si mesmo. Coerção e liberdade, doravante, coincidem e o sujeito do
desempenho se entrega, com volúpia, à livre coerção de si mesmo!
Liberdade paradoxal, pois já não mais distingue agressor e vítima, e é dessa
indistinção que as patologias se alimentam. Está submetido apenas a si
mesmo, e essa é a diferença em relação ao sujeito da obediência da sociedade
disciplinar: ali, visando explorar, vigiar e submeter, a alteridade estava presente. Com isso, a
sociedade de desempenho produz seres humanos depressivos e fracassados. O homem
depressivo explora a si mesmo sem qualquer coação estranha. É prisioneiro e
vigia, agressor e vítima ao mesmo tempo. Internalizou a figura do senhor e do
escravo.
A depressão tem a ver com o excesso
de positividade e reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma.
Ela irrompe “no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder. Ela
é de princípio um cansaço de fazer e de poder. A lamúria do indivíduo
depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê
que nada é impossível. Não mais-poder-poder leva a uma autoacusação destrutiva
e a uma autoagressão. O sujeito de desempenho encontra-se em guerra consigo”
(HAN, 2015: 29).
O que nos torna depressivos e
fracassados é o imperativo de obedecer a nós mesmos que se soma à pressão de
desempenho. Somos responsáveis e temos que ter iniciativas. Mais desempenho: é
o novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho. Inventar mais. Criar
mais. Ter mais produtividade. Mais rapidez. Mais, mais, mais…
· Qual é a saída?
A resposta que Byung-Chul Han nos
oferece só ganha sentido se retivermos a ideia de que a principal força produtiva da atual fase da
sociedade do desempenho é o indivíduo em guerra consigo mesmo, em sua tentativa
de conquistar o impossível: produzir mais, com mais rapidez, ao internalizar o
senhor e o escravo, ao eliminar toda e qualquer alteridade coativa, etc. À
medida que detemos o poder-de-poder-fazer mais, mais e mais, podemos também tentar
parar a máquina de desempenho em que cada um de nós e nos transformamos.
Se na sociedade do desempenho estamos por nossa conta e risco, podemos
também inverter os termos da liberdade-na-coerção em
que vivemos e então repropor o negativo sob outras bases, valorizando tudo o
que interrompe a máquina de guerra que somos, tudo o que nos leva a sair do
autismo e reconquistar a alteridade.
A chave proposta por Byung-Chul Han
é a contemplação. Mais ativa que a hiperatividade, a contemplação é um saber
soberano que sabe dizer não aos estímulos opressivos e intrusivos, que dirige o
olhar soberanamente, subtraindo-o dos excitamentos exteriores. E no restante
desse precioso livrinho, o autor nos oferece diferentes figurações da
contemplação. Em Humano, demasiado
Humano, Nietzsche afirma: “Por falta de repouso nossa civilização
caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os
inquietos, valeram tanto. Assim pertence às correções necessárias a serem
tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento
contemplativo”[1] (HAN.
2015: 37).
Se a contemplação é o Norte da sua
reflexão, Byung-Chul Han valoriza também a atenção profunda, parente próxima do
tédio profundo, indispensável para o verdadeiro processo criativo. Walter
Benjamin chama esse tédio profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da
experiência” (HAN. 2015: 33) — com a sua perda também se vão as possibilidades
psíquicas daí decorrentes: o “dom do escutar espreitando” e, com ele,
“comunidade dos espreitadores” (HAN. 2015: 34). O autor dá também grande ênfase
à pedagogia do ver nietzschiano: “…habituando o olho ao descanso, à paciência,
ao deixar-aproximar-de-si”, capacitando o olho a uma atenção profunda e
contemplativa, a um olhar lento e demorado (HAN. 2015: 51) Byung-Chul Han
aplaude os tempos intermediários, os entremeios, as interrupções, as pausas, a
hesitação, o não, a angústia, o luto, a ira — estes últimos são sentimentos
ligados à negatividade. Tudo que atrasa a aceleração é bem-vindo.
Também é bem-vindo o que nos
permite recompor a alteridade, o estar-junto-com-o-outro. E, então, não o
cansaço da sociedade de desempenho, cansaço sinônimo de esgotamento e dele só
nos refazemos de forma isolada-autista e solitária. Cansaços que como o fogo
nos incapacitam até mesmo de falar e o olhar leva a uma desfiguração do que é
visto. Cansaços que levam a “infartos da alma” (HAN. 2015: 71). Cansaços sem
mundo, cansaços destruidores de mundo.
E, todavia, há um outro tipo de
cansaço, um cansaço “que confia no mundo”. Um cansaço amigo que não está
“socado” no eu, mas que abre o mundo, mais mundo. Nos convoca para um não-fazer sereno. Inspira e desperta uma
visibilidade específica, uma atenção lenta e longa. Na feliz expressão do
autor, esse tipo de cansaço “afrouxa as presilhas da identidade” (HAN. 2015:
75). Tudo que o olho vê se torna mais permeável e indeterminado e essa in-diferença concede a tudo uma aura de amizade (HAN. 2015: 75). Um tempo intermédio e nele ficamos e nos
dedicamos ao inútil. O que nos permite recompor a alteridade é um cansaço
que pede comunidade e só nela e com ela relaxamos.
Bibliografia
HAN. Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis. Vozes:
2015.
[1] Citado
pelo autor.
in https://pontodevistabrblog.wordpress.com/2016/08/25/sociedade-do-cansaco/
in https://pontodevistabrblog.wordpress.com/2016/08/25/sociedade-do-cansaco/
Um amigo ofereceu-me o livro e eu ando a ler!
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