O Problema do Mal
Chegou agora a altura de nos voltarmos para algumas das dificuldades que a crença teísta enfrenta — algumas das fontes que se pensa justificarem o ateísmo, a crença de que o Deus teísta não existe. A mais formidável destas dificuldades é o problema do mal.
Há séculos que se sente que a existência de mal no
mundo é um problema para o teísmo. Parece
difícil acreditar que um mundo que contenha
uma abundância de mal
tão vasta como o nosso
possa ser a criação e o objecto
de controlo soberano
por parte de um ser perfeitamente bom, omnipotente e omnisciente. Há séculos que o intelecto humano se confronta com este
problema e todos os principais teólogos procuraram solucioná‐lo.
Temos de ter o cuidado de distinguir entre duas formas importantes do problema do mal. Chamarei a estas duas formas «forma lógica do problema do mal» e «forma indiciária do problema do mal». Embora a diferença importante entre estas duas for‐ mas do problema do mal só se torne completamente clara à medida que ambas forem discutidas em detalhe, será útil ter diante de nós uma breve formulação de ambas as formas do problema, no início da nossa investigação.
A forma lógica do problema do mal é a perspectiva de que a existência de mal no nosso mundo é logicamente inconsistente com a existência do Deus teísta.
A forma indiciária do problema do mal é a perspectiva de que a diversidade e a abundância de mal no nosso mundo, embora talvez não sejam logicamente inconsistentes com a existência do Deus teísta, dão, ainda assim, uma sustentação racional ao ateísmo, a crença de que o Deus teísta não existe.
Temos agora de examinar cada uma destas formas do problema com algum detalhe.
O problema lógico
A forma lógica
do problema implica
a inconsistência interna
do teísmo, porquanto o teísta aceita duas afirmações que são logicamente inconsistentes entre si. As duas afirmações em causa são:
1. 1. Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.
2. O mal existe.
Estas duas
afirmações, insiste o defensor da forma lógica
do problema, são logicamen‐
te inconsistentes entre si, do mesmo modo que
3. 3. Este objecto é
vermelho.é inconsistente com
4. Este objecto não é colorido.
Suponhamos, por enquanto, que o defensor da forma lógica do problema do mal conseguia provar‐nos que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si. Seríamos então forçados a rejeitar ou 1 ou 2, visto que se duas afirmações são logica‐ mente inconsistentes entre si, é impossível que ambas sejam verdadeiras. Se uma delas é verdadeira, então a outra tem de ser falsa. Além disso, como dificilmente poderíamos
negar a realidade do mal no nosso mundo, parece que teríamos de rejeitar a crença no deus teísta; seríamos levados à conclusão de que o ateísmo é verdadeiro. Na verdade, mesmo sendo tentados a rejeitar 2, restando‐nos a opção de acreditar em 1, esta não é uma tentação a que os teístas na sua maioria possam ceder facilmente. Pois que na sua
maioria os teístas aderem a tradições religiosas que dão ênfase à realidade do mal no nosso mundo. Na tradição judaico‐cristã, por exemplo, o homicídio
é considerado uma acção má e pecaminosa,
e dificilmente se poderá negar
a ocorrência de homicídios no nosso mundo. Então, como os teístas em geral aceitam a realidade do mal no nosso mundo e a destacam, seria algo desastroso para o teísmo
se estabelecêssemos aquela que é a afirmação central da forma lógica do problema do mal: que 1 é logicamente inconsistente com 2.
Estabelecendo a inconsistência
Como podemos estabelecer que duas afirmações são
inconsistentes entre si? Por vezes não é preciso estabelecer seja o que for, porque
as duas afirmações contradizem‐ se explicitamente, como,
por exemplo, as afirmações: «Elisabete tem mais de um metro e meio» e «Elisabete não tem mais do que um metro e meio». É frequente, contudo, duas afirmações
inconsistentes entre si não serem
explicitamente contraditórias. Nes‐ ses casos podemos estabelecer que são inconsistentes derivando delas duas afirmações que são explicitamente contraditórias. Considere‐se as afirmações 3 e 4, por exemplo. É evidente
que estas
duas afirmações
são logicamente
inconsistentes entre si; não podem ser ambas verdadeiras. Mas não são explicitamente contraditórias. Se nos pedi‐ rem para provar que 3 e 4 são inconsistentes entre si, podemos fazê‐lo derivando a partir delas afirmações que são explicitamente contraditórias. Para o fazer temos de acrescentar
outra afirmação a 3 e 4:
5.
Tudo o que é vermelho
é colorido.
De 3, 4 e 5 podemos então derivar facilmente um par de afirmações explicitamente
contraditórias: «Este objecto é colorido» (de 3 e 5) e «Este objecto não é colorido» (repetição de 4). Este é, então, o procedimento
que podemos seguir se nos pedirem para estabelecer que duas afirmações são logicamente inconsistentes entre si.
Antes de considerar se o defensor da forma lógica do problema do mal pode ou não estabelecer que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, temos de compreender claramente um detalhe muito importante acerca do modo de o fazer. Quando temos duas afirmações que não são explicitamente contraditórias e queremos
estabelecer que são
logicamente inconsistentes,
fazemo‐lo acrescentando‐lhes uma afirmação ou afirmações adicionais e derivando de todo o grupo (o par original e a afirmação ou afirmações adicionais) um par de afirmações que sejam explicitamente contraditórias entre si. O detalhe que agora requer muita atenção é o seguinte: para que este procedimento funcione, a afirmação ou afirmações adicionais têm não só de ser verdadeiras mas necessariamente verdadeiras. Repare‐se, por exemplo, que a afir‐ mação que adicionámos a 3 e 4 para estabelecer que são inconsistentes entre si é uma verdade necessária — é logicamente impossível que algo seja vermelho sem ser colori‐ do. Se, contudo, a afirmação ou afirmações adicionais usadas para deduzir as afirma‐ ções explicitamente contraditórias são verdadeiras, mas não necessariamente verda‐
deiras, então embora possamos ter êxito ao deduzir afirmações explicitamente contra‐ ditórias,
não teremos conseguido mostrar que as
duas afirmações originais são logica‐ mente inconsistentes entre si.
Para ver que
isto é assim consideremos o seguinte par de afirmações:
6.
O objecto na minha mão direita é uma moeda.
7.
O objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos.
Como é evidente, 6 e 7 não são logicamente inconsistentes entre si, visto que ambas
podem ser verdadeiras, ou poderiam ter sido. Não são logicamente inconsistentes
entre si porque nada há logicamente impossível na ideia de que a moeda na minha
mão direita esteja uma moeda
de vinte e cinco ou de cinquenta cêntimos. (Contraste‐se 6 e 7
com
3 e 4. É óbvio que há algo de
logicamente impossível na ideia de que
um dado objecto é vermelho e no entanto não é colorido.) Mas note‐se que podemos adi‐ cionar a 6 e 7 uma afirmação tal que a partir das três se pode derivar afirmações expli‐ citamente contraditórias.
8.
Todas as moedas
na minha mão direita são moedas de dez cêntimos.
A partir de 6, 7 e 8 podemos derivar
o par de afirmações explicitamente contraditó‐ rias: «O objecto
na minha mão direita é uma moeda de dez cêntimos» (de 6 e 8) e «O
objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos» (repetição de 7). Agora suponha‐se que 8 é verdadeira, que na verdade
todas as moedas
na minha mão direita são de dez cêntimos. Teremos
conseguido, então, deduzir
afirmações explici‐ tamente contraditórias a partir do nosso par original, 6 e 7, com a ajuda da afirmação
verdadeira 8. Mas é claro que com este
procedimento não teremos
estabelecido que 6 e
7 são logicamente inconsistentes entre si.
Por que não?
Porque 8 — a afirmação adicional — embora verdadeira, não é necessariamente verdadeira. A afirmação 8 não é necessariamente verdadeira porque eu podia (logicamente) ter uma moeda de vinte e cinco cêntimos ou de cinquenta cêntimos na minha mão direita. A afirmação 8 é de facto verdadeira, mas como podia logicamente ter sido falsa, não é uma verdade necessária. Temos então de ver muito claramente que, para estabelecer a inconsistên‐ cia lógica entre duas afirmações adicionando uma afirmação e derivando afirmações explicitamente contraditórias, a afirmação adicional tem de ser não só verdadeira mas necessariamente verdadeira.
Por que não?
Porque 8 — a afirmação adicional — embora verdadeira, não é necessariamente verdadeira. A afirmação 8 não é necessariamente verdadeira porque eu podia (logicamente) ter uma moeda de vinte e cinco cêntimos ou de cinquenta cêntimos na minha mão direita. A afirmação 8 é de facto verdadeira, mas como podia logicamente ter sido falsa, não é uma verdade necessária. Temos então de ver muito claramente que, para estabelecer a inconsistên‐ cia lógica entre duas afirmações adicionando uma afirmação e derivando afirmações explicitamente contraditórias, a afirmação adicional tem de ser não só verdadeira mas necessariamente verdadeira.
Aplicação ao problema lógico do
mal
Como 1) «Deus existe e é omnipotente, omnisciente
e perfeitamente bom» e 2) «O mal existe» não são explicitamente contraditórias, quem defende que 1 e 2 são logica‐ mente inconsistentes entre si tem de legitimar esta afirmação adicionando uma afir‐ mação necessariamente verdadeira a 1 e 2 e deduzindo afirmações explicitamente
con‐ traditórias. Mas que afirmação poderíamos acrescentar? Suponha‐se que começamos com
9. Um ser omnipotente, omnisciente, perfeitamente bom, impedirá a ocorrência seja
de que mal for.
De 1, 2 e 9 podemos derivar as afirmações explicitamente contraditórias «Nenhum
mal existe» (de 1 e 9) e «O mal existe» (repetição de 2). Assim, se pudermos mostrar que a afirmação 9 é necessariamente verdadeira, teremos conseguido estabelecer a tese da forma lógica do problema do mal: que 1 e 2 são logicamente inconsistentes
entre si. Mas será 9 necessariamente verdadeira? Relembrando a nossa discussão da omnipotência, parece que
Deus
teria o poder de impedir qualquer mal que
fosse, pois«impedir a ocorrência de um mal» não parece
uma tarefa logicamente contraditória, como «fazer um quadrado redondo». Mas não é fácil estabelecer que 9 é necessaria‐
mente verdadeira. Visto
que na nossa
própria experiência sabemos
que o mal está por vezes ligado ao bem de tal modo que não podemos
alcançar o bem sem permitir
o mal. Além disso, em tais
exemplos, o bem por vezes supera o mal, de modo que um ser bom pode
permitir intencionalmente a ocorrência do mal para
realizar um bem que se lhe
sobrepõe.
Gottfried Leibniz dá o exemplo
de um general que sabe
que para alcançar
o bem de salvar a cidade
de ser destruída às mãos de um exército inimigo
tem de ordenar aos seus homens que a defendam, o que resultará
na morte e sofrimento de alguns deles. O
bem de salvar as mulheres
e crianças da cidade supera
o mal do sofrimento e morte
de alguns dos seus defensores. Embora o general possa impedir que estes sofram
e morram, ordenando às suas forças que retirem rapidamente, não o pode fazer
sem abdicar do bem de salvar
a cidade e os seus
habitantes. Seguramente que não pesamos contra a bondade do general o facto de este permitir
a ocorrência do mal para
alcançar o bem maior.
Talvez, portanto, alguns
males no nosso mundo estejam
ligados a bens que os superam, de tal maneira que
nem Deus pode alcançar os bens em causa sem permitir que ocorram os males ligados
a esses bens. A ser assim, a afirmação 9 não é necessariamente verdadeira.
É claro que, ao contrário do general, o poder de Deus é ilimitado, e poder‐se‐á pen‐ sar que por muito que o bem e o mal estejam intimamente ligados, Deus podia sempre alcançar o bem e impedir o
mal. Mas isto
é ignorar a possibilidade de a ocorrência
de alguns males no nosso mundo ser logicamente necessária para a obtenção de bens que os superam, de maneira que a tarefa de dar lugar a esses bens sem permitir os males associados é tão impossível como fazer um quadrado redondo. Assim, mais uma vez, embora Deus, sendo omnipotente, possa impedir que os males em causa ocorram, não pode, apesar da sua omnipotência, alcançar os bens maiores e ao mesmo tempo impe‐
dir a ocorrência de tais males.1 Portanto, uma vez que 1) a omnipotência não é o poder de fazer o que é logicamente impossível e 2) pode ser logicamente
impossível impedir a ocorrência de determinados males no nosso mundo e ainda assim alcançar alguns bens muito importantes, que superam esses males, não podemos estar certos de que a afirmação 9 é necessariamente verdadeira; não podemos estar certos de que um ser omnipotente
e perfeitamente bom impedirá a ocorrência seja de que mal for.
Acabámos de ver que a tentativa de estabelecer que 1 e 2 são inconsistentes entre si deduzindo
afirmações explicitamente contraditórias a partir de 1, 2 e 9 é um fracasso. Pois embora 1, 2 e 9 permitam de facto gerar afirmações
explicitamente contraditórias, não temos como saber se 9 é necessariamente verdadeira.
Da discussão anterior vem‐nos a sugestão
de permutar 9 por
10. Um
ser bom, omnipotente e omnisciente impede a ocorrência de qualquer mal que não seja logicamente necessário à ocorrência de um bem que o supere.
A afirmação 10, ao contrário da 9, considera a possibilidade de
determinados males estarem de tal modo ligados a bens que os superam, que nem Deus possa realizar esses bens sem permitir que os males ocorram. A afirmação 10, então, não só parece verda‐
deira como necessariamente verdadeira. O problema agora, contudo, é que a partir de 1, 2 e 10 não se pode derivar afirmações explicitamente contraditórias. Tudo o que podemos concluir
a partir de 1, 2 e 10 é que os males que existem no nosso mundo são logicamente
necessários à ocorrência
de bens que os superam, e essa afirmação não é uma contradição explícita.
É agora patente a dificuldade geral que afecta
as tentativas de estabelecer
que 1 e 2 são logicamente
inconsistentes entre si. Quando adicionamos
uma afirmação como 9, que nos permite derivar afirmações explicitamente contraditórias, não podemos estar certos de que essa afirmação adicional é necessariamente verdadeira. Por outro lado, quando adicionamos
uma afirmação
como 10, que parece necessariamente verdadeira, verificamos que não é possível derivar afirmações explicitamente contraditórias. Nin‐ guém conseguiu apresentar uma afirmação que saibamos ser necessariamente verda‐
deira e que, adicionada a 1 e 2, nos permita derivar afirmações explicitamente contra‐ ditórias.
Por consequência, é razoável concluir que a forma lógica do problema do mal não é um grande obstáculo para o teísmo. Ninguém conseguiu estabelecer a tese central deste problema, de que 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, através de um argumento convincente.
Por consequência, é razoável concluir que a forma lógica do problema do mal não é um grande obstáculo para o teísmo. Ninguém conseguiu estabelecer a tese central deste problema, de que 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, através de um argumento convincente.
A «defesa do livre‐arbítrio»
Antes de nos voltarmos para a forma indiciária do problema do mal, é importante
que compreendamos a influência de uma defesa
tradicional do teísmo
contra a forma lógica do problema do mal. Segundo
esta defesa — a «defesa do
livre‐arbítrio» — Deus, apesar da sua
omnipotência, pode não ter sido capaz de
criar um mundo com criaturas humanas livres
sem com isso permitir a ocorrência de uma quantidade con‐ siderável de mal. Esta defesa depende da suposição básica
de que é logicamente impossível realizar livremente
uma acção e estar, ao mesmo tempo, causalmente
determinado a realizar
essa mesma acção.
Sem esta suposição, a defesa com base no livre‐arbítrio desmorona‐se. Pois se se pode estar causalmente determinado a realizar uma acção e ainda
assim realizar essa acção livremente, então parece claro que Deus poderia ter criado um mundo com
criaturas humanas livres que não agissem senão correctamente, que nunca praticassem o mal — pois que, sendo omnipotente, poderia simplesmente criar as suas criaturas e determiná‐las causalmente a fazer apenas
o que é correcto.
Suponhamos que o pressuposto fundamental da defesa do livre‐arbítrio é verdadeiro, que é logicamente impossível estar causalmente determinado a realizar uma acção
e no
entanto realizá‐la livremente. Este pressuposto significa que embora Deus possa
causar a existência de criaturas e determiná‐las causalmente a ser livres
a respeito de uma certa acção,
não pode determiná‐las causalmente a praticarem ou absterem‐se de praticar essa acção livremente; quer a pessoa
pratique a acção
ou se abstenha de a pra‐
ticar, isso dependerá da pessoa
e não de Deus, no caso de a prática
ou abstenção serem livres. Suponha‐se agora que Deus cria um mundo com criaturas
humanas livres, com a liberdade de fazer diversas coisas,
incluindo bem e mal. Se as criaturas humanas livres criadas por Deus exercem a sua liberdade para fazer bem ou para fazer mal, é
uma opção delas.
E é logicamente possível que independentemente de que criaturas livres Deus decida trazer à existência, todas se servirão por vezes da liberdade para fazer mal. Sendo assim, é possível que Deus não pudesse ter criado um mundo com criaturas livres que não agissem senão correctamente; é possível que qualquer mundo que Deus pudesse criar tendo criaturas com a liberdade de agir bem ou mal, fosse um mundo em que estas criaturas por vezes agem mal.
E é logicamente possível que independentemente de que criaturas livres Deus decida trazer à existência, todas se servirão por vezes da liberdade para fazer mal. Sendo assim, é possível que Deus não pudesse ter criado um mundo com criaturas livres que não agissem senão correctamente; é possível que qualquer mundo que Deus pudesse criar tendo criaturas com a liberdade de agir bem ou mal, fosse um mundo em que estas criaturas por vezes agem mal.
A anterior linha de raciocínio procura estabelecer que a verdade
da seguinte afir‐ mação é logicamente possível:
11. Deus,
apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo em que há criaturas humanas
livres e nenhum mal.
Mas se é possível 11 ser verdadeira e se também é possível que um mundo com cria‐ turas humanas livres seja melhor do que um mundo sem criaturas humanas
livres, segue‐se que 1 e 2 não são
de modo algum inconsistentes entre si. Pois considere‐se o seguinte grupo de afirmações:
1. Deus existe, é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.
11. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo com criaturas humanas livres e nenhum mal.
12. Um
mundo com criaturas humanas livres e algum mal é melhor do que um mundo sem
criaturas humanas livres.
13. Deus cria o melhor mundo que pode.
De 1, 11, 12 e 13 segue‐se que 2) «O mal existe». Mas se 1, 11, 12 e 13 implicam 2 e não
há inconsistência entre 1, 11, 12 e 13, então não pode haver inconsistência entre 1 e 2. Se num grupo de afirmações não há inconsistência entre elas, então nenhuma afirmação que se siga desse grupo de afirmações pode ser inconsistente com uma ou mais afir‐ mações do mesmo grupo.
Podemos agora ver qual a relevância da defesa do livre‐arbítrio para a forma lógica do problema do mal. Objectámos à última porque ninguém conseguiu estabelecer a tese central desta forma do problema: que 1) «Deus é omnipotente, omnisciente e per‐ feitamente bom» é inconsistente com 2) «O mal existe». Mas, evidentemente, do facto de ninguém ter provado que 1 e 2 são inconsistentes entre si não se segue que elas não são inconsistentes entre si. A defesa do livre‐arbítrio procura dar o último passo: pro‐ var que 1 e 2 são mesmo consistentes entre si. Fá‐lo tentando estabelecer
que é possível (logicamente) 11 e 12 serem verdadeiras e não haver inconsistência lógica entre as afir‐ mações do grupo formado por 1, 11, 12 e 13.
A questão de a defesa do livre‐arbítrio conseguir ou não mostrar que 1 e 2 são logicamente consistentes entre si é um assunto demasiado complicado e controverso para o desenvolvermos neste livro.2 Mesmo que não o consiga, porém, o teísta não tem de se preocupar demasiado com a forma lógica do problema do mal, pois, como vimos, ninguém estabeleceu que 1 e 2 são inconsisten‐ tes entre si.
A questão de a defesa do livre‐arbítrio conseguir ou não mostrar que 1 e 2 são logicamente consistentes entre si é um assunto demasiado complicado e controverso para o desenvolvermos neste livro.2 Mesmo que não o consiga, porém, o teísta não tem de se preocupar demasiado com a forma lógica do problema do mal, pois, como vimos, ninguém estabeleceu que 1 e 2 são inconsisten‐ tes entre si.
O problema indiciário
Volto‐me agora para a forma
indiciária do problema
do mal — a forma do problema
segundo a qual a diversidade e abundância de mal no nosso mundo, embora talvez
não seja logicamente inconsistente com a existência de Deus, nos
dá ainda assim
uma base racional para acreditar na inexistência do Deus teísta.
Ao desenvolver esta forma do problema do mal, será útil centrarmo‐nos num mal particular que o nosso mundo contenha em considerável abundância. O sofrimento intenso em seres humanos ou animais, por exemplo, ocorre quotidiana e abundantemente no nosso mundo. Tal sofrimento intenso é um inequívoco exemplo de mal. Claro que se o sofrimento intenso conduzir a algum bem superior, um bem que não poderíamos obter sem suportar o sofrimento em causa, poderíamos concluir que o sofrimento é justificado, mas apesar disso continua a ser um mal. Pois não podemos confundir o sofrimento intenso em si e por si com as coisas boas a que por vezes conduz ou das quais pode ser uma parte necessária.
O sofrimento intenso nos seres humanos ou animais é mau em si, é um mal, ainda que por vezes se possa justificar em virtude de fazer parte de algum bem, ou de conduzir a um bem inalcançável sem esse sofrimento. Por vezes, algo que em si é mau pode ser bom como meio, por nos levar a algo que é bom em si. Nesse caso, embora continuando a ser um mal em si, o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais é, não obstante, um mal que se pode ter justificação moral para permitir.
Ao desenvolver esta forma do problema do mal, será útil centrarmo‐nos num mal particular que o nosso mundo contenha em considerável abundância. O sofrimento intenso em seres humanos ou animais, por exemplo, ocorre quotidiana e abundantemente no nosso mundo. Tal sofrimento intenso é um inequívoco exemplo de mal. Claro que se o sofrimento intenso conduzir a algum bem superior, um bem que não poderíamos obter sem suportar o sofrimento em causa, poderíamos concluir que o sofrimento é justificado, mas apesar disso continua a ser um mal. Pois não podemos confundir o sofrimento intenso em si e por si com as coisas boas a que por vezes conduz ou das quais pode ser uma parte necessária.
O sofrimento intenso nos seres humanos ou animais é mau em si, é um mal, ainda que por vezes se possa justificar em virtude de fazer parte de algum bem, ou de conduzir a um bem inalcançável sem esse sofrimento. Por vezes, algo que em si é mau pode ser bom como meio, por nos levar a algo que é bom em si. Nesse caso, embora continuando a ser um mal em si, o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais é, não obstante, um mal que se pode ter justificação moral para permitir.
Encarar o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais como um mal intrínseco, contudo, não significa que a capacidade para
ter experiência do sofrimento intenso seja em si boa ou má. Como vimos,
há alturas em que ter experiência do sofrimento
intenso é muito útil, na medida em que pode
fazer‐nos agir com rapidez no sentido de nos afastarmos de situações que nos
são prejudiciais. Assim, a capacidade para ter experiência de sofrimento intenso
é‐nos útil. Além disso, por vezes, uma coisa que em
si mesma é má (a dor ou o sofrimento intenso) pode servir
um bom propósito. A forma indiciária do problema do mal baseia‐se em exemplos de sofrimento intenso, em seres humanos ou
animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico.
Desenvolvemos aqui o argumento centrando‐nos num exemplo de sofrimento animal: um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela descarga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livre‐arbítrio aos corços, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livre‐arbítrio.
Por que permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, podia tê‐lo impedido com tanta facilidade?
Admite‐se em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. Tão‐pouco parece razoável supor que há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o corço sofresse durante cinco dias. Suponha‐se que por «mal sem sentido» entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso perder um bem superior ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou pior. Será que o sofrimento do corço é um mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal durante esses cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido.
Quanto a isto, o consenso é, ao que parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absoluto de Deus, ser‐lhe‐ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que o sofrimento do corço é um mal sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia impedir sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou pior.
Desenvolvemos aqui o argumento centrando‐nos num exemplo de sofrimento animal: um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela descarga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livre‐arbítrio aos corços, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livre‐arbítrio.
Por que permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, podia tê‐lo impedido com tanta facilidade?
Admite‐se em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. Tão‐pouco parece razoável supor que há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o corço sofresse durante cinco dias. Suponha‐se que por «mal sem sentido» entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso perder um bem superior ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou pior. Será que o sofrimento do corço é um mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal durante esses cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido.
Quanto a isto, o consenso é, ao que parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absoluto de Deus, ser‐lhe‐ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que o sofrimento do corço é um mal sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia impedir sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou pior.
À luz de tais exemplos
de males horríveis, pode‐se formular da seguinte maneira
o argumento indiciário:
1. 1.Provavelmente,
há males sem sentido (por exemplo, o sofrimento do corço).
2. Se deus existe,
não há males sem sentido.
Logo,
3. Provavelmente, Deus não existe.
Este argumento surge da perspectiva comum de que no nosso mundo ocorrem
dia‐ riamente males terríveis, males que temos
razões para pensar
que um ser omnipoten‐ te, omnisciente e perfeitamente bom teria impedido. E parece dar‐nos
uma boa razão para considerar provável a inexistência de Deus.
TAREFA:
1.Explique a diferença entre a forma
lógica do problema do mal e a forma
indiciária.
2. Qual é a principal dificuldade da tese central
da forma lógica
do problema do mal?
3. Qual é a relevância da defesa do livre‐arbítrio para
a forma lógica
do problema do mal?
4. Explique o argumento indiciário fundamental a favor do ateísmo.
5. O que poderia
o teísta responder a este argumento?
Introdução à
Filosofia da Religião (pp. 116 a 124)
William L. Rowe
Tradução de Vítor Guerreiro
Lola
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