Em tempos de Pandemia...
Pensem com o coração
Furo a traqueia à senhora da cama 16
como se eu não tivesse medo até de respirar. Todos os doentes que estão
ventilados muitos dias nos Cuidados Intensivos precisam de uma traqueostomia
para sobreviver. Tenho sorte. Tenho sorte porque as minhas mãos vão em
contramão com o meu coração. As minhas mãos estão firmes.
“Hoje é preciso fazer uma traqueostomia na
senhora da cama 16.” A vontade de fazer atropela o medo de falhar. Sei que se
cometer um erro talvez nunca mais me levante. Sempre senti que no dia em que
tiver a sensação que cometi um erro crasso, que mate alguém, nunca mais exerço
Medicina, por mais que me venham dizer que já salvei muitas vidas. É o que eu
sinto. Pode acontecer a qualquer um.
Neste
momento tenho medo de fazer e tenho medo de não fazer. O medo que tenho de
fazer é que me pode levar a não mais fazer. O corpo não me tem ajudado, e eu
ajudo-me o mais que consigo. Tenho muitos médicos novinhos à volta a querer ver
como se faz, e eu explico-lhes a técnica. A enfermeira que está comigo é uma
querida, mas tenho que pedir a um enfermeiro mais treinado que lhe dê formação
para que ela me possa assistir. Está muita gente a aprender em andamento.
Furo
a traqueia à senhora da cama 16 como se eu não tivesse medo até de respirar.
Todos os doentes que estão ventilados muitos dias nos Cuidados Intensivos
precisam de uma traqueostomia para sobreviver. Tenho sorte. Tenho sorte porque
as minhas mãos vão em contramão com o meu coração. As minhas mãos estão firmes.
A senhora vai se safar. Tem idade de ser mãe e de ser filha.
No
serviço de urgência chega um homem novo com uma descompensação diabética, em
fadiga respiratória. Tem de ser anestesiado, colocado o tubo na traqueia e
ligado ao ventilador. Sob o meu olhar dou a vez à médica mais nova para
executar o acto. Rapidamente, tenho de a empurrar para o lado porque o momento
torna-se tenso. São segundos que valem uma vida. A minha cabeça é uma orquestra
de ruído, mas sinto um silêncio nos momentos de stress que até me assusto a mim
próprio. Sou de gelo sob pressão. Tenho sorte. Fui treinado por gente incrível,
apostei muito na minha formação, e a vida já me mostrou muita coisa. Não sei em
que dose vêm os saberes e o instinto. Se tivesse tido tempo para pensar, talvez
errasse, mas segurei-o com vida. Sinto-me orgulhoso. Ainda estou vivo. Ainda
posso ajudar. Valeu o esforço para trabalhar. Talvez tenha valido esta vida.
Enquanto
se brinca com a pandemia como se fosse um jogo político de amadores, a discutir
quem foi mais ignorante sobre a desgraça anunciada do Natal, nós estamos a ver
muita gente a morrer nos hospitais. E estamos a ver de coração aberto que é
como dói mais, mas foi por isso que escolhemos esta profissão. Para ajudar
pessoas, usar a razão que suporta a emoção. E todos os dias agradeço
genuinamente a quem me ensinou e tudo faço para ensinar os mais novos, a cada
oportunidade.
A
senhora da cama 16 quando curar a covid ainda vai continuar a cuidar da mãe. O
senhor da diabetes afinal também é positivo para covid, e como eu sinto que não
tive todos os cuidados que deveria ter tido porque confiei que pudesse ficar
afastado, fiquei longe da minha mãe durante duas semanas, sem saber se a meia
vacina me protege o suficiente.
Nós
estamos a viver as nossas dores, as dores dos outros, e as vossas dores. Não é
justo. Quem é que cuida de quem cuida? E se nós cairmos, quem é que cuida de
vocês? Entre medos, saberes, dúvidas, instintos, aprender e ensinar, nós
estamos a aguentar muitas dores, porque queremos tratar dos vossos.
Eu
não peço muito. Apenas peço que pensem com o coração.
Gustavo Carona
Médico intensivista
12 de Janeiro de 2021, 15:00
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