Subjectismo e objectivismo moral
É comum pensar-se que, enquanto que na ciência só encontramos juízos de facto, nos domínios da ética, da estética e da religião os juízos de valor ocupam um lugar proeminente. Mas qual será ao certo a sua natureza? Concentremo-nos em juízos de valor com conteúdo moral, como “Matar pessoas inocentes é errado” ou “A pena de morte é injusta”. Para compreendermos a sua natureza, temos que responder a estas perguntas:
1.
Os juízos morais têm valor de verdade?
2.
Se têm valor de verdade, são verdadeiros ou falsos
independentemente da perspectiva de quaisquer sujeitos?
Quem responde afirmativamente a ambas as perguntas
está a dizer que afinal não há uma diferença assim tão grande entre os juízos
de facto e os juízos de valor morais (ou éticos — usaremos aqui os termos
“ética” e “moral” indiferentemente). Está a dizer que os segundos, tal como
primeiros, são verdadeiros ou falsos de uma forma completamente objectiva.
Podemos afirmar que quem pensa assim tem uma perspectiva objectivista da ética.
Quem aceita esta perspectiva pensa que, se disseres que a pena de morte é
injusta, estás a fazer uma afirmação que é verdadeira ou falsa
independentemente do que as pessoas pensam sobre a pena de morte.
Mas, como verás, há várias teorias que respondem
negativamente à primeira ou à segunda pergunta. Já neste capítulo analisaremos
duas perspectivas segundo as quais não existem factos morais que ultrapassem o
âmbito dos gostos e preferências pessoais, a saber, o subjectivismo e o
emotivismo. No próximo capítulo consideraremos duas teorias que, embora não
sejam objectivistas, presumem que há verdades morais independentes das
preferências dos indivíduos.
Subjectivismo moral: o que é?
O subjectivismo moral é a teoria segundo a qual,
embora existam factos morais, estes não são objectivos. As afirmações acerca do
bem e do mal, do que é certo e errado, embora sejam proposições genuínas, são
subjectivas: são verdadeiras ou falsas, mas não o são independentemente dos
sujeitos que as fazem. Segundo esta concepção, só existem opiniões pessoais na
ética e nunca verdades absolutas. A ética é um domínio em que cada um tem “a
sua verdade”, pois nele não existem factos objectivos. Para os subjectivistas
os juízos morais descrevem apenas os nossos sentimentos de aprovação e
reprovação acerca das pessoas e daquilo que elas fazem. O certo e o errado
dependem, portanto, dos sentimentos de cada um. Resumindo, o subjectivista
pensa o seguinte:
Os juízos morais têm valor de verdade, mas o seu valor de verdade depende
da perspectiva do sujeito que faz o juízo. Há assim factos morais, mas estes
são subjectivos, pois só dizem respeito aos sentimentos de aprovação ou
reprovação das pessoas.
O subjectivismo pode parecer atraente. Pensamos muitas
vezes que o que algumas pessoas consideram certo pode estar errado para outras
e que estas diferenças têm ser respeitadas. Se um dos nossos amigos considera
que a pena de morte deveria ser abolida e nós pensamos que não, poderemos estar
dispostos a aceitar que é tudo uma questão de pontos de vista ou de opiniões
diferentes, sem que nenhum dos dois tenha de estar enganado. Talvez um de nós
valorize mais a vida e o outro mais a justiça. Talvez estas sejam apenas duas
perspectivas igualmente “válidas” sobre o mesmo assunto.
Há duas razões que podem levar-nos a aceitar o subjectvismo
moral.
Uma delas baseia-se na ideia de que o subjectivismo
torna possível a liberdade. O subjectivista pode alegar que, se as distinções
entre o certo e o errado não forem fruto dos sentimentos de cada pessoa, então
serão imposições exteriores que limitam as possibilidades de acção de cada
indivíduo. Pressupõe, portanto, que agimos livremente apenas quando escutamos
os nossos sentimentos e agimos de acordo com eles.
Outra razão que parece apoiar o subjectivismo é a
ideia de que este promove a tolerância entre pessoas com convicções morais
diferentes. Quando percebemos simultaneamente que as distinções entre o certo e
o errado dependem dos sentimentos de cada pessoa e que os sentimentos de uma
não são melhores nem piores que os de outra, então tornamo-nos mais tolerantes,
mais capazes de aceitar como legítimas as acções que são contrárias às nossas
preferências.
Objecções
ao subjectivismo moral
O subjectivismo pode parecer-te uma boa teoria sobre
os juízos éticos, sobretudo se já tiveste a impressão, no meio de uma discussão
acalorada sobre um tema moral controverso, que só existem opiniões pessoais
diferentes no que respeita ao certo e ao errado, ao bem e ao mal. Mas é
possível que deixes de pensar assim se considerares alguns casos concretos.
Imagina que alguém te diz que queimar pessoas vivas é uma acção louvável. Tu
afirmas que não. Se aceitares o subjectivismo moral terás de aceitar que a tua
opinião não é melhor nem pior que a da outra pessoa, simplesmente porque na
ética não há verdades nem falsidades independentes daquilo que as pessoas
pensam. Só há opiniões diferentes.
Mas será que estás preparado para aceitar isto? Se te
parece que sim, pensa numa outra possibilidade. Pensa numa pessoa que acha que
te pode sacrificar, apesar de seres uma pessoa saudável e normal, para salvar o
seu filho, que
precisa de um transplante de coração. Achas que isto é
uma questão de opinião, ou achas, pelo contrário, que ela realmente não te pode
fazer isso? Se pensas que ela realmente não te pode matar para salvar o seu
filho, tens que rejeitar o subjectivismo.
Estes exemplos permitem-nos compreender uma das
objecções mais fortes ao subjectivismo:
O subjectivismo permite que qualquer juízo moral seja verdadeiro.
Se uma pessoa pensa que devemos torturar inocentes,
então para essa pessoa é verdade que devemos torturar inocentes. Se uma pessoa
pensa que é errado ajudar os outros, então para essa pessoa é verdade que é
errado ajudar os outros. Assim, o subjectivismo parece fazer da ética um
domínio completamente arbitrário. À luz desta teoria nenhum ponto de vista, por
muito monstruoso ou absurdo que seja, pode ser considerado realmente errado ou
pelo menos pior que pontos de vista alternativos.
A aceitação do subjectivismo suscita assim diversos
problemas e um deles diz respeito à educação moral. Se educarmos coerentemente
os nossos filhos de acordo com a perspectiva subjectivista, teremos que
ensinar-lhes apenas a seguir os seus sentimentos, a orientar-se em função
daquilo de que gostam e de que não gostam. Teremos de lhes dizer que qualquer
comportamento que venham a ter é aceitável, bastando para isso que esteja de
acordo com os seus sentimentos. Se uma criança de tenra idade tiver um
sentimento profundamente negativo em relação à escola, provavelmente pensará
que não há mal nenhum em faltar às aulas. E o subjectivista terá que aceitar
que, para ela, é verdade que não há mal nenhum em faltar as aulas. Podemos
assim concluir o seguinte:
O subjectivismo compromete-nos com uma educação moral que consiste apenas
em ensinar que devemos agir de acordo com os nossos sentimentos.
Muitos vêm nisto uma objecção importante ao
subjectivismo. Outra objecção talvez ainda mais importante diz respeito à ideia
de debater questões morais. Para o subjectivista as noções de certo e errado,
bem e mal, são criações dos indivíduos que não são mais que o resultado das
suas preferências, desejos ou sentimentos. Assim, um subjectivista acredita que
qualquer tentativa de debater racionalmente uma questão moral é perfeitamente
inútil, uma vez que não há nenhuma verdade independente dos sentimentos de cada
indivíduo que possa ser “demonstrada” através do debate. Cada indivíduo
limitar-se-á a defender as posições que forem consentâneas com os seus
sentimentos. Se o Miguel seguir princípios racistas de nada servirá tentar
mostrar-lhe que está errado, até porque, de acordo com o subjectivismo, nunca é
possível que estejamos enganados em questões morais. Se o Miguel disser que
devemos tratar os negros como inferiores, sentindo intensamente que isso está
certo, então a afirmação “Devemos tratar os negros como inferiores” está
realmente certa para ele, é verdadeira para ele. Ele não está nem mais nem
menos enganado do que alguém que pense o contrário. E, se ele tem razão do seu
ponto de vista, então ficamos sem motivos para tentar mudar a sua opinião — não
temos motivos para argumentar racionalmente a favor seja do que for. Podemos
então concluir o seguinte:
O subjectivismo tira todo o sentido ao debate sobre questões morais.
Assim, se aceitarmos o subjectivismo deixaremos de ter
motivos para avaliar os juízos éticos das outras pessoas e para argumentar
racionalmente quando se trata de resolver questões morais. O subjectivismo
torna absurdo qualquer esforço racional para encontrar os melhores princípios
éticos e fundamentá-los perante os outros.
Para veres como esta objecção ao subjectivismo se pode
tornar mais forte, imagina que o João e a Maria estão a discutir o problema de
saber se o aborto é moralmente aceitável. O João afirma: “O aborto é profundamente
errado”. E a Maria responde: “O aborto não tem nada de errado”. Estamos perante
duas afirmações inconsistentes entre si, pois não podem ser ambas verdadeiras.
Só que para o subjectivista cada uma delas significa, respectivamente, o
seguinte:
O João reprova o aborto.
A Maria não reprova o aborto.
Estas duas afirmações já não são inconsistentes. Por
isso, parece que elas não conseguem traduzir correctamente as afirmações
iniciais do João e da Maria, que são inconsistentes. Por outras palavras,
quando o João diz “O aborto é profundamente errado” isso não significa apenas
“O João reprova o aborto”, pois nesse caso a sua afirmação não seria
inconsistente com a de Maria. Isto parece mostrar que o subjectivismo é falso,
ou seja, que afinal não podemos entender os juízos morais como simples
proposições sobre os sentimentos de aprovação ou reprovação de cada indivíduo.
Questões de revisão
1.
O que distingue os juízos de facto dos juízos de
valor?
2.
O que caracteriza o subjectivismo moral?
3. Por que razão o subjectivismo parece fazer da ética um
domínio completamente arbitrário?
4. Por que razão o subjectivismo parece ter implicações
absurdas para a educação moral?
5.
Por que razão o subjectivismo parece tornar absurda
qualquer tentativa de debater racionalmente questões morais?
Problemas
1. “Se as distinções entre o certo e o errado não forem
fruto dos sentimentos de cada pessoa, então serão imposições exteriores que
limitam as possibilidades de acção de cada indivíduo e diminuem assim a sua
liberdade”. Concordas? Porquê?
2. “O subjectivismo promove a tolerância entre pessoas
com convicções morais diferentes, pois faz cada um perceber que as suas
convicções não são melhores que as dos outros”. Concordas? Porquê?
3. Mário e José têm opiniões diferentes sobre um
funcionário da sua empresa que não foi promovido por motivos racistas. Mário
defende que o seu patrão agiu bem ao recusar a promoção e José acredita que a
acção deste foi errada. À luz do subjectivismo, como podem Mário e José tentar
chegar a um acordo?
Objectivismo Moral: o que é?
Muitos filósofos
defendem que a ética é objectiva e que o valor de verdade dos juízos morais é
independente quer das preferências e sentimentos pessoais quer dos costumes
sociais. Defendem também que a ética é independente da religião e que a verdade
ou falsidade dos juízos morais não deriva da vontade de Deus. Discordam
portanto do Subjectivismo Moral, do Relativismo Moral Cultural e da Teoria dos
Mandamentos Divinos.
Mas, se os juízos
morais são independentes dos sentimentos, dos costumes sociais e da vontade
divina, baseiam-se em quê? Segundo os objectivistas morais, baseiam-se na
razão, ou seja, na capacidade humana de “raciocinar, compreender, ponderar,
ajuizar, etc.” (1) - numa palavra, na capacidade de pensar. Ao
pensar sobre questões morais como o aborto, a mentira ou a pena de morte, não
nos limitamos a emitir juízos, tentamos também justificar esses juízos através
das melhores razões que conseguirmos descobrir.
Nas palavras do filósofo James Rachels:
«Um juízo moral - ou qualquer outro tipo de juízo de
valor - tem de ser apoiado em boas razões. Se alguém disser que uma determinada
acção seria errada, pode-se perguntar porque razão seria errada e, se não
houver uma resposta satisfatória, pode-se rejeitar esse conselho por ser
infundado. Neste aspecto, os juízos morais são diferentes de meras expressões
de preferência pessoal. Se alguém diz “Eu gosto de café”, não necessita de ter
uma razão para isso; poderá estar a declarar o seu gosto pessoal e nada mais.
Mas os juízos morais requerem o apoio de razões, sendo, na ausência dessas
razões, meramente arbitrários. (…)
As verdades morais
são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se for sustentado
por razões melhores que os juízos alternativos.
Assim, se quisermos
entender a natureza da ética, devemos atentar nas razões. Uma verdade em ética
é uma conclusão apoiada em razões: a resposta correcta a uma questão moral é
simplesmente a resposta que tem do seu lado o peso da razão. Tais verdades são
objectivas no sentido em que são verdadeiras independentemente do que possamos
querer ou pensar. Não podemos tornar algo bom ou mau pelo simples desejo de que
seja assim (…). Isto explica igualmente a nossa falibilidade: podemos
enganar-nos sobre o que é bom ou mau porque podemos estar enganados sobre o que
a razão recomenda. A razão diz o que diz, alheia às nossas opiniões e
desejos.» (2)
De acordo com os
objectivistas morais, existem critérios transubjectivos e transculturais de
valoração. Esses critérios ultrapassam a perspectiva de cada pessoa e de cada
sociedade, proporcionando uma forma de avaliar com imparcialidade as acções e
as práticas sociais. Podem ser compreendidos e aplicados por todos os
indivíduos racionais, independentemente das suas motivações e interesses
particulares, bem como da cultura em que foram educados. (3) São
culturalmente neutros e independentes dos sentimentos pessoais dos indivíduos.
Um desses critérios é
o de a acção individual ou a prática social em questão ser benéfica ou
prejudicial para as pessoas que são afectadas por ela. As boas acções e as boas
práticas sociais beneficiam as pessoas; as más acções e as más práticas sociais
prejudicam as pessoas. (4)
Se avaliarmos
práticas como a violação e a excisão à luz desse critério concluiremos que elas
são más, pois prejudicam as pessoas. Esse juízo é verdadeiro pois pode ser
justificado com boas razões e essa verdade é objectiva: pode ser compreendida,
e eventualmente aceite, pelas pessoas envolvidas, independentemente dos seus
sentimentos, interesses pessoais e costumes sociais.
Mas é claro que nem todas as pessoas reconhecerão a verdade desse juízo moral. Por exemplo: um violador e um executante da excisão poderão considerá-lo falso.
Na sua opinião,
essa possibilidade é suficiente para mostrar que esse juízo (e qualquer outro
juízo moral) afinal não é objectivo?
Pedro Galvão in Critica
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