segunda-feira, 16 de maio de 2022

Será que Deus existe?



Será que Deus existe?


O que podemos entender por Deus?


A ideia de Deus é o aspecto central de quase todas as religiões (exceptuando algumas versões do budismo), apesar de existirem diversas concepções de Deus. Para algumas religiões — cristianismo, judaísmo e islamismo — há um só Deus e por isso se chamam monoteístas. Mas há também religiões politeístas, de acordo com as quais não existe apenas um Deus, mas vários. A noção de Deus não é, contudo, exclusiva das religiões. Muitas pessoas, como sucede com os panteístas, acreditam que Deus é imanente ao mundo e às coisas que dele fazem parte, mas as principais religiões monoteístas concebem Deus como um ser transcendente. A concepção de Deus mais discutida em filosofia é a concepção teísta (ver teísmo), exposta nos grandes livros sagrados, como a Bíblia e o Corão, e consolidada e desenvolvida ao longo dos séculos pelos mais destacados representantes das grandes religiões ocidentais. Entre eles encontram-se filósofos como Santo Agostinho, Santo Anselmo (1033-1109) e Tomás de Aquino. O teísmo é a concepção de Deus discutida também por DescartesHume e Kant, entre muitos outros. O Deus teísta é um Deus criador do mundo, sumamente bom, todo-poderoso e infinitamente sábio. É também encarado por alguns teólogos como fonte de obrigações morais, ou mandamentos, que determinam o que é moralmente bom e moralmente mau. São muito discutidos em filosofia da religião os argumentos a favor da existência de Deus, havendo três grandes linhas de argumentação: o argumento ontológico, o argumento cosmológico e o argumento do desígnio.


                                                        Aires Almeida

                                                                Dicionário escolar de filosofia, in Critica



A. DEUS EXISTE- Santo Anselmo (1033 -1009)

"Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me, tanto quanto aches bem, que eu compreenda que tu existes como nós acreditamos e que tu és o que nós acreditamos. Nós acreditamos, com efeito, que tu és “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado”. Será que não existe uma tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração: ‘Deus não existe’ ”?16Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ –, compreende o que ouve, e o que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe . Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compreender que tal realidade existe. De facto, quando um pintor pensa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda não fez. Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligência o que já fez e compreende que isso existe . Mesmo o insensato está, pois, convicto de que “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto. Mas, sem dúvida, “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o que é ser maior. Se pois “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” existe apenas no intelecto, então “aquilo mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado” é “algo maior do que o qual algo pode ser pensado”. Mas isto, , é claramente impossível. Existe, pois, sem a menor dúvida, “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” tanto no intelecto como na realidade.

É impossível pensar que Deus não exista 
Isto existe tanto no intelecto como na realidade, em todo o caso, é tão verdadeiro que nem se pode pensar que não exista. Porque pode-se pensar que existe alguma coisa que não se pode pensar que não existe;o que é ser maior do que aquela que se pode pensar que não existe. Daí que, se se pode pensar que “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” não existe, aquilo mesmo “maior do que o qual nada pode ser pensado” não é “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”; o que não pode convir. Assim, pois, “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” existe tão verdadeiramenteque não se pode pensar que não existe.

 

Santo Anselmo,  Proslogion

 

B. DEUS NÃO EXISTE - Karl Marx (1818-1883)

"É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. E a religião é, de facto, a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou ainda não se conquistou ou voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantasmal da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o âmago de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.

A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que eles deixem as ilusões a respeito da sua situação é o apelo para abandonarem uma situação que precisa de ilusões . A crítica da religião é, pois, em germe a crítica do vale de lágrimas de que a religião é a auréola. A crítica colheu nas cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem fantasia ou sem consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que ele pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e recuperou o entendimento, a fim de que ele gire à volta de si mesmo e, assim, à volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira à volta do homem enquanto ele não gira à volta de si mesmo.

Por isso, a tarefa da história , depois que o além da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade do aquém. A imediata Tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, é desmascarar a autoalienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma- se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política."

Karl Marx, Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 

Tradução de Artur Mourão


Feuerbach: Deus não é Deus, mas o Homem e/ou Natureza divinizados

A noção de onipotente que o homem relaciona a Deus, tem fundamento na ilimitação da consciência e do gênero humano. 

Uma limitação que reconheço como minha limitação, esta me humilha, me envergonha e me intranquiliza. Então, para me libertar deste sentimento de vergonha, desta intranquilidade, faço das limitações da minha individualidade as limitações da própria essência humana (FEUERBACH, 2013, p. 40). 

 

Quando Feuerbach começa a reflectir a religião  afirma que  a essência de Deus é a essência do próprio homem e que só é possível conhecer Deus através do homem e conhecer o homem através de Deus. Deus é a manifestação dos sentimentos mais íntimos dos homens -  sentimentos esses que são exteriorizados através da religião. 

Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor (FEUERBACH, 2013, p. 44). 

 

Feuerbach compara a essência da religião com o momento da vida infantil -   a criança vê a sua essência fora de si, através do adulto e o adulto, por sua vez, vê a sua essência através de Deus. 

E a nossa intenção é exatamente provar que a oposição entre o divino e o humano é apenas ilusória, i.e., nada mais do que é a oposição entre a essência humana e o indivíduo humano, que consequentemente também o objeto e o conteúdo da religião cristã é inteiramente humano (FEUERBACH, 2013, p. 45).

 

Segundo Feuerbach, se algo  se apresenta enquanto inseparável do humano, algo que o homem é verdadeiramente dependente, isto deveria ser a natureza e não um ser metafísico. Nenhum espírito é capaz de dominar a natureza, se existe alguma fantasia esta é proveniente do próprio homem que imagina coisas sobrenaturais no agir material da natureza que não tem nada de místico. 

 

[...] a natureza é verdadeiramente possuída por um espírito, porém este espírito é o do homem, é sua própria fantasia, sua própria alma que involuntariamente se introduz na natureza e faz dela um símbolo e um reflexo da sua própria essência humana (FEUERBACH, 2008, p. 30).


 O cristianismo anseia uma vida sem os limites do corpo, sem os limites impostos pela natureza. 

 

Você é obrigado a crer que Deus é um ser existente porque se vê obrigado pela natureza a reconhecer que acima da tua consciência e da tua existência está a sua, e o primeiro conceito base de Deus não é nenhum outro se não este: aquele que é um ser cuja existência precede a sua, tua existência pressupõe a sua (FEUERBACH, 2008, p. 31). 




A existência de Deus

Abordar a questão da existência de Deus, eis uma grande e séria questão, e se me determinasse tratá-la de modo adequado, seria necessário reter-vos aqui até à chegada do reino de Deus. Por isso, espero que me desculpareis por a tratar de um modo um tanto sumário. Sabeis, naturalmente, que a igreja católica erigiu em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. É um dogma assaz curioso mas não deixa de o ser. Tornou-se necessário introduzi-lo porque em determinado momento os livre-pensadores adoptaram o hábito de declarar que existiam este e aquele argumentos racionais contra a existência de Deus e que a aceitação dessa existência era matéria de fé. Os argumentos e as razões foram expostos minuciosamente e a igreja católica entendeu que lhes devia pôr um ponto final. E adoptou mais esse princípio de que a existência de Deus pode ser demonstrada pela simples via racional, e ela própria estabeleceu o que considerava como argumentos dessa prova. São sem dúvida bastantes, mas contentar-me-ei em invocar alguns.

O argumento da causa primeira

argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que tudo o que existe no mundo tem uma causa, e que percorrendo a cadeia de causas se chegará fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus). Este argumento, suponho, não pesa demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção de causa não é a mesma de outrora. Os filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui actualmente a força que se lhe atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que o argumento da causa primeira é daqueles que não possui qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia estes problemas muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: “Meu pai ensinou-me que a pergunta “Quem me criou?” não comporta qualquer resposta porque levantaria imediatamente outra interrogação: “Quem criou Deus?” Esta frase tão simples revelou-me, como ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo tem de ter uma causa também Deus tem de a possuir; e se algo existe sem causa tanto pode ser o mundo como Deus — razão da inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: “E a tartaruga?” o indiano responde: “E se mudássemos de assunto?” Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.

Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, e por outro lado, que não tenha existido sempre. A ideia de que as coisas têm de ter um começo é uma opinião resultante da pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece necessário ocupar mais tempo com o argumento da causa primeira.

O argumento da lei natural

A seguir, há o argumento muito conhecido da lei natural. Foi um argumento muito em voga ao longo do século XVIII, especialmente devido à influência de Isaac Newton e da sua cosmogonia. Observavam-se os planetas que giram à volta do Sol segundo a lei da gravitação, e pensava-se que Deus tinha dado ordem para se movimentarem nessa trajectória, razão por que a efectuavam. Essa era, naturalmente, uma explicação fácil e simples que evitava o trabalho de procurar uma explicação para a lei da gravitação.

Actualmente, explicamos a lei da gravitação de um modo um pouco mais complicado, de harmonia com o que Einstein nos ensinou. Não me proponho fazer uma conferência sobre a interpretação einsteiniana dessa lei porque nos ocuparia bastante tempo; em todo o caso, já se não aceita essa espécie de lei natural que fazia parte do sistema newtoniano, onde, por uma razão que se compreendia, a natureza se comportava de modo uniforme. Muitas coisas que considerávamos como leis naturais são actualmente demonstradas como constituindo puras convenções humanas. Sabeis que mesmo no mais longínquo ponto do espaço sideral uma jarda é igual a três pés. É, sem dúvida, um facto importante mas que dificilmente poderá ser classificado como lei da natureza. E quantas coisas mais, tidas como leis da natureza, são do mesmo género?

Por outro lado, até onde chega o nosso conhecimento real sobre os átomos, descobris que eles se encontram muito menos submetidos a leis do que se pensava, e que as leis estabelecidas são apenas médias estatísticas que lembram justamente aquelas que dependem do acaso. Existe, e todos nós a conhecemos, uma lei segundo a qual, no lançamento de dados, o doble de seis sai apenas uma vez sobre trinta e seis, sem que se conceba esse facto como prova de que essa combinação obedeça a qualquer projecto; ao contrário, se o doble de seis saísse sempre é que pensaríamos que se tratava de coisa determinada! A maior parte das leis da natureza são desse género. São médias estatísticas como aquelas leis que dependem do acaso, o que transforma todo este assunto das leis naturais numa coisa menos extraordinária do que anteriormente se pensava.

Além desta verificação, demonstrativa do carácter epocal da ciência, susceptível de mudança de rumo, a própria ideia segundo a qual as leis da natureza implicam um legislador, resulta duma confusão entre a chamada lei natural e a lei humana. Esta, ordena que vos conduzais de certo modo, embora possais conformar-vos com isso ou adoptar não o fazer; mas as leis naturais são uma descrição do modo como a realidade efectivamente se comporta, e pelo facto de serem uma simples descrição da sua acção real não torna necessário sustentar que tem de existir alguém que imponha essa prescrição. A ser necessário isso, teríamos então de responder à seguinte interrogação: Qual a razão por que Deus prescreveu precisamente estas leis naturais e não outras? Se dizeis que Ele assim fez porque quis, sem qualquer razão, passareis então a admitir que existe alguma coisa não submetida a leis, rompendo-se, então, o vosso encadeamento de leis naturais. Mas se afirmais, como o fazem os teólogos ortodoxos, que em todas as leis feitas por Ele havia uma razão para impor estas e não outras — razão que seria naturalmente a de criar o melhor dos mundos, ainda que isso nos pareça duvidoso — concluiremos, então, que há uma causa para as leis impostas por Deus. E Deus teria sido Ele próprio submetido a uma lei, não havendo qualquer vantagem em o ter introduzido como intermediário. Ter-se-á estabelecido uma lei exterior e anterior às ordens divinas, pelo que Deus não serve os propósitos de primeiro legislador. Em resumo: o argumento de lei natural não é tão consistente quanto se pretendia. Estou a tentar seguir uma ordem cronológica na revisão dos argumentos a favor da existência de Deus, dado que estes têm mudado de harmonia com os tempos. Foram de início argumentos difíceis, intelectuais, comportando determinados sofismas. A medida que nos aproximamos da época actual, tornam-se intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afectados por uma espécie de imprecisão moralizante.

O argumento do plano ou argumento teleológico

O degrau seguinte desta exposição leva-nos ao argumento do plano. Conheceis esse argumento: tudo no mundo está disposto de modo a nele podermos viver, e se o mundo fosse diferente, ainda que ligeiramente, não seria possível essa existência. Tal é o argumento do plano ou argumento teleológico. Ele assume por vezes uma forma bastante curiosa; por exemplo, sustenta-se que os coelhos têm a cauda branca para facilmente serem descobertos pelo caçador. Não sei o que os coelhos pensariam desta aplicação do argumento. Conheceis aquela reflexão de Voltaire de que o nariz foi visivelmente concebido de forma a poder segurar os óculos. Este género de paródia não estava longe do alvo, tanto quanto se podia pensar no século XVIII, porque depois de Darwin sabemos melhor por que os seres vivos se adaptam ao mundo que os cerca. Não foi o meio ambiente criado para se adaptar a eles, mas sim os seres que evoluíram de modo a ele se adaptarem — este, o fundamento da adaptação. A prova do plano não tem aplicação neste caso.

Quando se examina de perto este argumento do plano, é surpreendente verificar-se que alguém possa acreditar que este mundo, com tudo aquilo que encerra, com os seus defeitos, tenha de ser o melhor que um ser omnipotente e omnisciente tenha podido criar ao longo de milhões de anos. Não o posso aceitar. Imaginai que sois omnipotentes e omniscientes e vos são dados milhões de anos para aperfeiçoar o mundo — não vos seria possível criar nada de melhor do que a Ku-Klux-Klan ou o Fascismo? Além disso, se aceitais as leis ordinárias da ciência, deveis supor que a vida do homem, e a vida em geral, desaparecerá em devido tempo em todo este planeta: é uma etapa do declínio do sistema solar. Numa determinada fase do declínio, chegar-se-á a um conjunto de condições de temperatura e outras, inadequadas ao protoplasma e haverá vida por pouco tempo em todo o sistema solar. Vê-se na Lua o exemplo do que acontecerá na Terra — uma coisa morta, fria, desértica.

Dir-se-á que esta opinião é deprimente e que as pessoas seriam incapazes de continuar a viver se dela participassem. Não acredito nisso; é uma pura tolice. Ninguém se preocupará verdadeiramente pelo que acontecerá daqui a milhões de anos. Mesmo que o afirmem, enganam-se a si próprias. As razões dos seus cuidados são mais imediatas, ou resultam simplesmente duma má digestão; na verdade, ninguém ficará seriamente preocupado ao pensar num acontecimento que se produzirá neste mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por isso, ainda que seja lúgubre supor-se que a vida desaparecerá — suponho que se possa dizer isso, ainda que por vezes, quando considero o que as pessoas fazem da sua vida, chegue a pensar que isso constitui uma consolação — esse sentimento não é suficiente para tornar a vida miserável. Simplesmente, obriga a nossa atenção a voltar-se para outros assuntos.

O argumento moral a favor da divindade

Abordámos mais uma etapa daquilo a que poderia chamar o rebaixamento intelectual que os deístas mostraram nos seus argumentos e chegamos agora ao capítulo dos chamados argumentos intelectuais a favor da existência de Deus. Sabeis, naturalmente, que existem três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus e que todos foram refutados por Kant na Crítica da Razão Pura; mas logo que os refutou inventou um novo, um argumento moral que acreditou ser inabalável. Agiu como muitos outros: no domínio da inteligência era um céptico, mas no campo da moral acreditou implicitamente em máximas que tinha bebido com o leite materno. O que ilustra uma particularidade a que os psicanalistas atribuem tanta importância: a influência exercida sobre nós pelas recordações da primeira infância é extraordinariamente mais forte do que as recordações mais recentes.

Kant, como disse, inventou um novo argumento moral a favor da existência de Deus que, sob formas diferentes foi extremamente usado ao longo do século XIX. Teve toda a espécie de formas. Uma delas consistia em afirmar que não haveria o mal ou o bem se Deus não existisse. De momento, não importa a questão de saber se há alguma diferença entre o bem e o mal, ou se não existe: este é outro problema. O que me interessa agora é que, a existir essa diferença, sereis colocados perante uma nova questão: essa distinção será ou não devida a um decreto de Deus? No caso afirmativo não haverá, para Deus, qualquer distinção entre o bem e o mal e, nesse caso, não constituirá declaração sensata o afirmar-se que Deus é bom. Se dizeis como os teólogos que Deus é bom, torna-se necessário que o bem e o mal tenham uma significação independente dum decreto de Deus, porque as leis de Deus serão boas e não más, independentemente do facto de serem ditadas por Ele. A ser assim, declarais implicitamente que não é pela intervenção de Deus que existem o bem e o mal, mas que as suas essências são logicamente anteriores a Deus. Podeis, sem dúvida, se o desejardes, afirmar que existe uma divindade superior que impôs ordens ao Deus que criou o mundo ou, seguindo o exemplo dos gnósticos2 — partido que muitas vezes tenho considerado como bastante plausível — afirmar que o mundo, tal e qual o conhecemos, foi criado por um demónio num momento em que Deus estava distraído. Isto poderia ser discutido longamente mas não estou interessado em refutar tal ponto de vista.

O argumento da reparação da injustiça

Existe ainda outra forma muito curiosa do argumento moral, que é: a existência de Deus é necessária para introduzir a justiça neste mundo. Nesta parte do universo que conhecemos reina uma grande injustiça: quantas vezes sofre o justo, prospera o mau, e mal se sabe qual destes dois casos é o mais perturbador; mas, se se pretende que a justiça reine no conjunto do universo, é necessário supor uma vida futura capaz de estabelecer o equilíbrio da existência cá na Terra. Portanto, diz-se, é necessário que exista um Deus, um paraíso e um inferno para que reine a justiça. É um argumento muito curioso. Se o considero dum ponto de vista científico, direi: “Afinal de contas, apenas conheço este mundo. Nada sei do resto do universo, mas na medida em que me é permitido raciocinar com base em probabilidades, direi que este mundo constitui um belo exemplo e que, se a injustiça reina nele, é quase certo que a injustiça reinará igualmente nos outros”. Suponhamos que recebeis um cabaz de laranjas e, ao abri-las, descobris que as de cima estão apodrecidas. Por certo que não direis: “Debaixo devem estar sãs para que o equilíbrio seja restabelecido”, mas sim: “É provável que tudo esteja estragado”. É exactamente assim que raciocinaria um cientista em face do universo. Diria: “Verificamos neste mundo uma quantidade de injustiças e essa é uma razão para se supor que a justiça o não governa; e, consequentemente, tanto quanto compreendo, isso constitui um argumento contra uma divindade e não a seu favor”. Sem dúvida, sei que este género de argumentos intelectuais não convence realmente as pessoas. O que as persuade a acreditar em Deus não é um argumento intelectual mas, geralmente, acredita-se porque se criou o hábito de o fazer desde criança.

E penso que a razão que imediatamente se segue é o desejo de segurança, uma espécie de aspiração à existência de um irmão mais velho que olhe por nós. Isto desempenha um papel muito profundo e leva as pessoas a desejarem acreditar em Deus. 


Bertrand Russel, Porque não sou cristão?


Deus, fé, razão e aposta

Consideremos este ponto e digamos o seguinte: “Ou Deus existe ou não existe.” Mas qual das alternativas devemos escolher? A razão não pode determinar nada: existe um infinito caos que nos divide. No ponto extremo desta distância infinita, uma moeda está sendo girada e terminará por cair como cara ou coroa. Em que você aposta?

Blaise Pascal, Pensamentos

 (edição póstuma, 1844)

Qual é a causa de Deus?

«Se um universo requer um deus para explicar a sua existência, o que explica a existência do próprio Deus? Da mesma maneira, ou Deus existiu desde sempre ou apenas apareceu ou então deve ter tido uma causa. No entanto, é tão implausível pensar que Deus sempre existiu ou que tenha simplesmente surgido, como pensar que também foi assim com o universo. O próprio raciocínio que nos leva a propor um deus como causa do universo deve levar-nos a propor um supradeus como causa de Deus. E, claro, o supradeus também precisa de uma causa, o suprasupradeus e assim infinitamente. Portanto, sejam quais forem as voltas que dermos, o que obtemos no fim é igualmente implausível. É tão implausível um deus incausado como um universo incausado, e é tão incrível uma série infinita de causas como uma série infinita de deuses.»


«[Mesmo que aceitássemos o argumento, este] apenas provaria, no melhor dos casos, que a primeira causa existe, não que essa primeira causa seja Deus. Em vez disso, a primeira causa poderia ter sido o Diabo (um candidato plausível, dada a natureza do universo). E mesmo que o argumento tivesse provado que a primeira causa tinha de ser um deus, não provaria que ele tivesse de ser o seu Deus (se for um crente) ou um deus que encaixasse na imagem comum que os cristãos, judeus ou muçulmanos têm de Deus. Poderia ser qualquer um dos milhares de deuses diferentes em que os seres humanos acreditam ou, talvez, um deus em que os seres humanos nunca tenham pensado. De facto, o argumento da primeira causa abre a possibilidade de que tenha existido um Deus que criou o universo (ou talvez muitos deuses), mas que agora Deus está morto.»

Howard Kahane, “Há boas razões para acreditar que Deus existe?”, 

in Crítica 

«A existência de Deus pode ser provada de cinco maneiras:

(…) A segunda maneira parte da natureza da causa eficiente. No mundo dos sentidos encontramos uma ordem de causas eficientes. Não há qualquer caso conhecido (nem isso seria, de facto, possível) em que uma coisa é causa eficiente de si própria. Para isto, teria de ser anterior a si própria, o que é impossível. Ora, não é possível haver uma série infinita de causas eficientes, porque nas causas que se seguem umas às outras na série, a primeira é a causa da intermédia, e esta é a causa da última, sejam várias ou apenas uma as causas intermédias. Ora, fazer desaparecer a causa é fazer desaparecer o efeito. Logo, se não há uma primeira causa na série das causas eficientes não haverá uma última nem qualquer causa intermédia. Mas se é possível haver uma série infinita de causas eficientes, não há uma primeira causa eficiente, nem um efeito último, nem quaisquer causas eficientes intermédias; tudo isto é obviamente falso. Logo, é necessário admitir uma primeira causa eficiente, a que todos dão o nome de Deus.»

Tomás de Aquino, “Suma Teológica”.

 

 Deus, pecado e recompensa

«89. Pode-se ainda dizer que Deus como Arquiteto contenta em tudo a Deus como Legislador; e que assim os pecados devem arrastar o seu castigo com eles pela ordem da natureza, e em virtude mesmo da estrutura mecânica das coisas; e que da mesma maneira as belas ações atrairão as suas recompensas por vias maquinais em relação aos corpos; embora isso não possa e não deva acontecer sempre de imediato.

90. Finalmente, sob este governo perfeito, não haveria boa Ação sem recompensa nem má sem castigo: e tudo deve resultar para o bem dos bons, quer dizer, daqueles que não estão descontentes neste grande Estado, que se confiam à Providência depois de terem feito o seu dever, e que amam e imitam, como é devido, o Autor de todo o bem, comprazendo-se na consideração das suas perfeições segundo a natureza do puro amor verdadeiro, que leva a ter prazer na felicidade daquilo que se ama. É o que faz trabalhar as pessoas sábias e virtuosas para tudo o que se revela conforme à vontade divina presuntiva ou antecedente, e não obstante contentar-se com o que Deus faz acontecer efetivamente pela sua vontade secreta, consequente e decisiva; reconhecendo que, se pudéssemos entender bastante a ordem do universo, acharíamos que ela ultrapassa todos os desejos dos mais sábios, e que é impossível torna-la melhor do que é; não só para o todo em geral mas também para nós mesmos em particular, se estivermos ligados como é preciso ao Autor do todo, não só como ao Arquiteto e à causa eficiente do nosso ser mas também como ao nosso Senhor e à causa Final que deve todo o fim da nossa vontade, e é o único que pode fazer a nossa felicidade.»

 

Leibniz, Monadologia, Edições Colibri,

 Lisboa, 2016, pp. 63-64.

 

 Do politeísmo ao monoteísmo

«Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana, por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspetos da vida, de modo que se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e por aí em diante. Às vezes, porém, podiase acreditar que há diversos deuses mas venerar apenas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama henoteísmo. No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Lentamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspetiva religiosa a que se chama monoteísmo. (…)

[Segundo a conceção teísta] Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espiritual, um ser pessoal, perfeitamente bom, omnipotente, omnisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julgao, orientao para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental.»

William L. Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, 

Verbo, 2011, pp. 11-12.



LOLA


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