Para que serve a lógica?
Uma maneira esclarecedora de compreender
o que é a lógica e qual é a sua importância é compreender primeiro o que é o
raciocínio e qual é a sua importância. Será aqui abordado sobretudo o
raciocínio discursivo, que é onde a lógica desempenha o seu papel mais óbvio,
mas nem todo o raciocínio é discursivo. Quando reconhecemos um rosto humano,
subimos um lance de escadas ou até quando caminhamos, a quantidade de
raciocínio exigida é impressionante. Contudo, está quase inteiramente fora do
nosso controlo. Fazemo-lo, demorámos anos a aprender a fazê-lo desde o tempo em
que gatinhávamos, mas não sabemos exatamente como o fazemos. De modo que será
abordado aqui sobretudo o raciocínio discursivo: o tipo de raciocínio que
fazemos usando uma linguagem. A matemática, a ciência, a filosofia, a história
e a arqueologia fazem-se com raciocínio discursivo; e o raciocínio quotidiano
também é em parte discursivo.
O
raciocínio discursivo é uma tentativa de provar uma conclusão com base numa ou
mais premissas — e o que não é discursivo não anda longe disto, se bem que
neste caso não faça muito sentido falar literalmente de premissas e conclusões.
Toda a gente raciocina todos os dias, mesmo sem uma compreensão robusta do que
é raciocinar, nem de como se raciocina bem. E é aqui que entra a lógica. O
objetivo desta área de estudos é ter uma compreensão mais robusta do
raciocínio, e desenvolver instrumentos para distinguir o bom do mau raciocínio.
No último século, o progresso da lógica tem sido notável, apesar de ser ainda
em grande parte mal compreendida, sobretudo porque é muito mais fácil
compreender aplicações específicas da lógica, como o raciocínio estatístico, e
também porque não temos uma única lógica completamente geral que seja
consensual entre os especialistas — apesar de a lógica clássica e as suas
extensões serem talvez as mais promissoras.
Sem
raciocínio discursivo, ficaríamos reduzidos ao que conseguimos saber só pela
observação direta. Não saberíamos o que aconteceu há sessenta e seis milhões de
anos que eliminou a maior parte da fauna do planeta, e não saberíamos que a
água é feita de oxigénio e hidrogénio. Para saber a maior parte do que queremos
saber precisamos de raciocinar, ou seja, precisamos de tentar chegar a uma
conclusão com base numa ou mais premissas, porque não temos uma maneira mais
direta de descobrir essa conclusão. É por isso que o raciocínio é importante,
e, consequentemente, é por isso que a lógica é importante.
O raciocínio discursivo ora é dedutivo, ora indutivo. Até muito recentemente, só o primeiro estava
apropriadamente compreendido (ainda que se tratasse apenas de alguns dos seus
tipos), porque não tínhamos instrumentos matemáticos para aplicar adequadamente
ao raciocínio indutivo — instrumentos do género dos que temos no caso da
dedução desde as primeiras décadas do século XX. Mas qual é exatamente a
diferença entre o raciocínio dedutivo e o indutivo? Há algumas diferenças
cruciais, mas a mais fundamental é que o raciocínio dedutivo é exclusivamente
linguístico, ao passo que o indutivo não o é. Eis um exemplo de uma dedução
válida:
Se Úrsula nasceu em Tiradentes, nasceu
no Chile.
Contudo, ela não nasceu no Chile.
Logo, não nasceu em Tiradentes.
Para saber que esta dedução é válida,
não precisamos de saber quem é a Úrsula, nem onde nasceu ela; não precisamos de
saber onde fica Tiradentes, nem se é ou não uma localidade chilena. Tudo o que
temos de conhecer é as condições de verdade das três afirmações, e a maneira
como estão organizadas. Apesar de a maior parte das pessoas serem incapazes de
o descobrir por si, sem ajuda matemática, esta dedução é válida — porque
qualquer condição de verdade na qual as duas premissas sejam verdadeiras é
também uma condição de verdade em que a conclusão é verdadeira. Eis um pequeno
arrazoado para mostrar por que razão isto é assim:
Suponha-se que a conclusão é falsa. Há alguma condição
de verdade na qual as duas premissas sejam verdadeiras, dada essa suposição? A
resposta é que não há. Não há, porque se a conclusão for falsa, então ela
nasceu em Tiradentes. Contudo, se a primeira premissa for verdadeira, ela
nasceu no Chile, o que significa que a segunda premissa é afinal de contas
falsa. E caso suponhamos agora que a segunda premissa é verdadeira, isso
significa que a primeira é falsa, porque nesse caso ela nasceu em Tiradentes,
mas não no Chile, e consequentemente não é verdadeiro que se ela nasceu naquela
cidade, nasceu naquele país.
Eis uma dedução mais simples, que
qualquer pessoa consegue ver que é válida, mesmo que não tenha formação lógica:
Úrsula e Marguerite são cineastas.
Logo, Úrsula é cineasta.
Neste caso, é completamente óbvio que
qualquer condição de verdade na qual a premissa seja verdadeira é também uma
condição de verdade na qual a conclusão será verdadeira. E sabemo-lo sem
precisarmos de saber quem são aquelas pessoas, nem se são realmente cineastas.
É isto que significa dizer que a dedução é uma forma meramente linguística de
raciocínio: tudo o que precisamos de conhecer para saber que uma dedução é
válida, ou inválida, é as condições de verdade de todas as suas afirmações. Isto
não basta, contudo, no caso do raciocínio indutivo. Neste caso, o conhecimento
linguístico não é suficiente; precisamos também de conhecimento de fundo geral
para determinar se as premissas de um raciocínio indutivo apoiam, ou não, a
conclusão. Será dado a seu tempo um exemplo deste tipo de raciocínio.
Para
já, é importante compreender o próprio conceito de condição de verdade.
Considere-se a afirmação “Há extraterrestres azuis inteligentes”. Não sabemos
se esta afirmação é verdadeira, ou se será falsa. Talvez seja verdadeira,
talvez seja falsa. Não sabemos. Não somos omniscientes; há um número indefinido
de afirmações verdadeiras que não sabemos que são verdadeiras, e também um
número indefinido de afirmações falsas que não sabemos que são falsas. E o que
há de terrível quanto a nós é que há muitas afirmações falsas que muitas
pessoas acreditam que são verdadeiras sem provas adequadas, e também muitas
afirmações verdadeiras que muitas pessoas acreditam que são falsas sem provas
adequadas. Voltaremos a este tema.
Para
já, note-se que não sabemos se a frase “Há extraterrestres azuis inteligentes”
é verdadeira ou falsa. Contudo, há algo que sabemos: sabemos que se há
extraterrestres azuis inteligentes, então aquela afirmação é verdadeira; e
sabemos que aquela afirmação é falsa se não existirem tais seres. Por outras
palavras, não sabemos qual é o valor de verdade daquela afirmação, mas sabemos
quais são as suas condições de verdade, porque sabemos quais são os requisitos
para que aquela afirmação seja verdadeira, e quais são os requisitos para que
seja falsa. Assim, as condições de verdade de uma afirmação são aquelas
condições nas quais essa afirmação é verdadeira, e as outras condições nas
quais é falsa.
O
raciocínio dedutivo é meramente linguístico precisamente nesse sentido: quando
é válido, o nosso conhecimento das condições de verdade das suas afirmações é
suficiente para saber que não terá conclusão falsa caso todas as premissas
sejam verdadeiras.
De
notar que em lógica e filosofia a palavra “válido” é entendida num sentido
especializado. Quase todos os cientistas e leigos usam esta palavra de maneira
diferente. É um pouco como velocidade e aceleração, na física, ou massa e peso.
A maior parte das pessoas, à exceção dos físicos, usam os dois pares de palavras
como se quisessem dizer aproximadamente o mesmo. No seu sentido especializado,
contudo, aqueles dois pares de palavras não querem dizer o mesmo — e a física
nem sequer dá os primeiros passos a menos que distingamos cuidadosamente a
velocidade da aceleração e a massa do peso. O mesmo acontece com o conceito de
validade. No seu sentido especializado, em lógica e filosofia, a validade é uma
característica do raciocínio dedutivo, e não é o mesmo que a verdade. Num dado
raciocínio, as suas afirmações são verdadeiras ou falsas, mas não são válidas
nem inválidas, porque a validade diz respeito ao raciocínio constituído por
essas afirmações. Por outro lado, o próprio raciocínio não é verdadeiro nem
falso, mas antes válido ou inválido, porque a verdade e a falsidade são
características de afirmações, e não de raciocínios. É um pouco como ser
numeroso. Os indianos são numerosos, porque há muitos, mas nenhum indiano
individual é numeroso, porque essa é uma característica do conjunto dos
indianos, e não dos indianos individuais. Simetricamente, o conjunto dos
indianos não tem cérebro, que é uma coisa que todos os indianos certamente têm.
Só porque todos os membros de um conjunto têm uma dada característica, isso não
significa que o conjunto tenha também essa característica, nem vice-versa. De
modo que quando as pessoas falam de raciocínios verdadeiros ou de afirmações
válidas, isso significa que nada praticamente sabem de lógica. São como
crianças perdidas na floresta, e nem têm disso consciência.
A
validade, pois, é o que temos num raciocínio quando as suas afirmações estão
organizadas de tal maneira que não há condições de verdade nas quais a
conclusão seja falsa, caso todas as premissas sejam verdadeiras. É esta
característica do raciocínio dedutivo que nos permite descobrir o que não
sabíamos, com base no que já sabemos. Assim, se uma pessoa souber que Úrsula
não nasceu no Chile, e se souber também que se ela nasceu em Tiradentes, nasceu
no Chile, essa pessoa, caso saiba raciocinar bem, consegue descobrir algo de novo
acerca de Úrsula: que não nasceu em Tiradentes.
Contudo,
a validade não é suficiente para que tenhamos um bom raciocínio dedutivo. Pelo
menos duas outras condições são necessárias — condições que serão abordadas a
seu tempo. Contudo, note-se que a validade é a única condição estritamente
lógica, no sentido de ser a única condição para a análise da qual temos
instrumentos matemáticos. As outras duas condições caem fora do âmbito da
lógica num sentido estrito, matemático — ainda que façam parte da lógica,
concebida de maneira abrangente como um instrumento geral para examinar o
raciocínio, conceção esta da lógica que a aproxima sobremaneira, e ainda bem,
de uma área da filosofia conhecida como “teoria do conhecimento” ou
“epistemologia”.
É
óbvio que alguns raciocínios perfeitamente válidos são apesar disso bastante
desastrados, porque têm premissas falsas. É dedutivamente válido concluir que
Aristóteles nasceu em Portugal das premissas de que 1) ou nasceu na Grécia ou
em Portugal e 2) não nasceu na Grécia. Apesar de válido, contudo, este
raciocínio é bastante desastrado, porque a segunda premissa é falsa. Para
chegar a conclusões verdadeiras, é preciso começar com premissas verdadeiras; a
validade não basta. Por outro lado, sem validade, as premissas verdadeiras não
fazem seja o que for para provar que a conclusão é verdadeira. Precisamos tanto
da validade como de premissas verdadeiras para chegar a uma conclusão
verdadeira. O raciocínio é
sólido quando é ao mesmo tempo válido e todas as suas premissas são
verdadeiras. Todas as deduções sólidas têm conclusões verdadeiras.
Este é o conceito semitécnico de solidez.
Porém,
como sabemos que as premissas são de facto verdadeiras? Como deveria ser
evidente, isso depende das premissas. Talvez sejam acerca de planetas e
estrelas; nesse caso, precisamos de astronomia. Ou talvez sejam acerca da
depressão; nesse caso, precisamos de psicologia ou psiquiatria. É quase certo
que as nossas premissas, a menos que sejam as mais óbvias afirmações do
aqui-e-agora, serão em si conclusões de outros raciocínios, sejam eles dedutivos
ou indutivos. É esta característica que nos dá uma espécie de árvore
inferencial, na qual vários fragmentos de raciocínio se combinam de várias
maneiras para nos permitir chegar a uma conclusão geral. E como já se sugeriu,
em quase todos os casos, com a distinta exceção da própria lógica e da
matemática, combinamos vários raciocínios dedutivos e indutivos para tentar
saber seja o que for que queremos saber. Nem a indução por si, nem a dedução,
nos levam muito longe. Precisamos de ambas — exceto, é claro, na matemática e
na lógica, onde todos os resultados técnicos são puramente dedutivos, ainda que
mesmo aí se encontre um imenso pano de fundo de pressupostos que, afinal, são
também indutivos.
Foram
mencionadas três condições para que um raciocínio seja bom, e só se falou até
agora de duas delas: a validade e a verdade das premissas. Por que razão não é
isto suficiente? Afinal, todos os raciocínios sólidos têm conclusão verdadeira.
E o que se quer é isso mesmo: conclusões verdadeiras. Ou não?
Bem,
em rigor, não é isso que se quer. Queremos também saber que essas conclusões
são verdadeiras. E porque não somos omniscientes, ser verdadeiro não significa
que sabemos que é verdadeiro. Há muitas afirmações verdadeiras que acreditamos
erradamente que são falsas, e vice-versa. Só porque uma afirmação é verdadeira,
isso não significa que sabemos que o é. Para sabermos que uma afirmação é
verdadeira precisamos de provas, e o raciocínio é uma maneira de tentar provar
que uma dada conclusão é verdadeira. Não há outra maneira apropriada de tentar
descobrir se uma dada conclusão é verdadeira a não ser começando com algo que
já acreditamos que sabemos. Considere-se o seguinte raciocínio, que não é
propriamente genial:
A primeira surpresa aqui é que esta é
uma dedução válida, porque não há condições de verdade na qual a premissa seja
verdadeira, apesar de a conclusão ser falsa. Mas isso só é assim porque a
premissa é igual à conclusão. O raciocínio é viciosamente circular, é claro,
mas isso não quer dizer que não seja válido, porque a validade, no sentido
especializado da lógica, não quer de modo algum dizer que o raciocínio é bom.
E
que dizer da solidez? Aquele raciocínio é sólido? Bem, se houver extraterrestres
inteligentes azuis, o raciocínio é sólido, porque é válido e porque, nesse
caso, a premissa será verdadeira. Contudo, é óbvio que somos incapazes de usar
este raciocínio para descobrir se a conclusão é verdadeira, simplesmente porque
teríamos de saber de antemão que a premissa é verdadeira — mas a premissa é a
mesma afirmação que encontramos na conclusão. De modo que precisaríamos de
saber de antemão que a conclusão é verdadeira, para conseguirmos provar que é
verdadeira com este raciocínio. E isso seria uma tolice, claro.
Assim,
como se vê agora claramente, a solidez não é suficiente para que um raciocínio
seja bom. É também necessário que o raciocínio não seja circular. Ora, este é
um conceito epistémico, no sentido em que diz respeito às nossas maneiras de
tentar descobrir coisas e saber coisas. Para descobrir algo que ainda não
sabemos, precisamos de começar por algo que já sabemos. Contudo, o conceito de
conhecimento é enganador, porque tem um pé fora do nosso controlo, e outro
perfeitamente sob o nosso controlo. Precisamos de ter cuidado ao entrar nestas
águas, porque muitas pessoas pretendem falar e escrever acerca do conhecimento
sem se darem conta de que, afinal de contas, não estão falando do conhecimento.
E
o que é o conhecimento, afinal de contas? Bem, seja o que for que se possa
dizer, não é certamente o mesmo do que a verdade, porque há muitas afirmações
verdadeiras que desconhecemos. E o conhecimento não é também seja o que for que
por acaso pensamos que é conhecimento, porque não somos omniscientes: em muitos
casos, acreditamos que sabemos, mas não sabemos; estamos enganados.
Para
que consigamos saber que a Terra está parada, a Terra precisa de estar parada.
Se a Terra não estiver parada, não sabemos que está parada, ainda que pensemos
que sabemos que o está. Neste caso, temos essa crença, mas estamos enganados.
Isto é o que em filosofia e linguística é conhecido como “a factividade do
conhecimento”: podemos acreditar erradamente que sabemos que a Terra está
parada mas, a menos que a Terra esteja parada, não o sabemos. É isto que
significa dizer que o conhecimento tem um pé fora do nosso controlo; esse pé é
a verdade. Para que realmente saibamos seja o que for, em contraste com a
crença falsa de que sabemos, a verdade tem de estar envolvida — e a verdade
está largamente fora do nosso controlo. Se há ou não extraterrestres
inteligentes azuis, isso é algo que está fora do nosso controlo. Se há, a
afirmação em questão é verdadeira, e é falsa caso contrário. A verdade,
felizmente, está na sua maior parte fora do nosso controlo. (Porquê “na sua
maior parte”? Porque em alguns casos temos controlo sobre o que é verdadeiro:
quando uma pessoa corre, a afirmação “Ela está correndo” é verdadeira, porque
ela está correndo: foi ela que tornou essa afirmação verdadeira.)
De
modo que o conhecimento tem um pé na verdade, que é algo que está em grande
parte fora do nosso controlo. Contudo, o conhecimento não diz respeito apenas à
verdade. Talvez algumas pessoas acreditem que há extraterrestres inteligentes
azuis, mas não o sabem efetivamente, ainda que eles existam. Para saber
realmente algo é preciso ter provas; a verdade não chega. E o que são as
provas? É a nossa maneira de tentar descobrir a verdade. Uma prova é seja o que
for que conta apropriadamente a favor de uma dada conclusão. Ver uma borboleta
pousada na nossa perna é uma prova suficientemente boa, em condições comuns, de
que está de facto uma borboleta pousada na nossa perna. Mas ouvir vozes que
mais ninguém ouve, quando uma pessoa sobe à montanha e faz jejum durante dois
dias, não é uma prova suficientemente boa de que essa é a voz de Deus. Em
epistemologia, é comum usar o termo “justificação” para falar de provas, mas o
que há de importância capital a compreender aqui, seja qual for o termo que se
use, é que ter uma boa prova ou justificação de uma coisa qualquer não implica
que isso é realmente verdadeiro; as provas não são factivas, ao contrário do
conhecimento.
Voltando
ao raciocínio, este é o nosso principal instrumento de descoberta da verdade.
Sem raciocínio, a observação seria fútil. Quando observamos certos resultados
num laboratório, precisamos ainda de raciocinar para concluir que uma cerca
hipótese científica foi refutada, ou vindicada. Raciocinar é inferir conclusões
a partir de premissas que, tanto quanto conseguimos ver, provam essas
conclusões.
Não
há conhecimento, no sentido declarativo em que sabemos que as baleias não são
peixes, sem raciocínio discursivo de algum tipo, e este é o pedaço que está sob
o nosso controlo. O conhecimento declarativo exige prova ou justificação, e
isto envolve raciocínio discursivo. O raciocínio discursivo está sob o nosso
controlo, o que significa que conseguimos raciocinar cuidadosa e
responsavelmente, ou irresponsavelmente, que é a alternativa de eleição da
maior parte dos terráqueos.
Agora
que clarificámos um pouco o conceito de conhecimento, estamos em condições de
retomar o tema e explicar o que há de errado no raciocínio viciosamente
circular. Ainda que seja sólido, este tipo de raciocínio é evidentemente
deficiente. Mas porquê? Há aqui dois fatores em jogo, e só um deles é óbvio
desde o início. É óbvio desde logo que não há maneira alguma de provar
adequadamente uma afirmação se começarmos por ela ou por uma qualquer
equivalente verbal. Eis um exemplo deste último caso:
Neste caso, a conclusão não é exatamente
a mesma afirmação que se encontra na premissa, mas o raciocínio é à mesma
viciosamente circular, porque quem considera a conclusão duvidosa, considera
que também a premissa o é.
Porém,
qual é o segundo fator aqui em jogo que não é assim tão óbvio? Trata-se de um
fator tão crucial, que não é talvez um exagero afirmar que explica por si o
sucesso da ciência. Considere-se a diferença entre as seguintes duas situações:
- Casualmente, uma pessoa olha pela janela e vê o
que parece alguém que caminha naquela manhã muito fria e chuvosa.
- Casualmente, uma pessoa olha pela janela e vê o
que parece alguém a voar como o Super-Homem.
No primeiro caso, a prova visual casual
é perfeitamente suficiente para traçar a conclusão de que alguém está
efetivamente a caminhar lá fora. Contudo, precisamente a mesma prova não é
suficiente no segundo caso. Porquê? Porque a conclusão a traçar no segundo caso
é bastante implausível, ao passo que, no primeiro, a conclusão é comum até mais
não. Isto significa que não avaliamos as provas no vácuo; avaliamo-las contra
um pano de fundo de crenças prévias. Sempre que uma prova parece apontar na
direção de uma conclusão muitíssimo implausível, exigimos mais e mais provas
plausíveis, tão perto de serem incontestáveis quanto o conseguirmos. O elemento
indutivo aqui é óbvio, e quem já conhece o raciocínio indutivo bayesiano está
em casa. Voltaremos ao tema daqui a pouco; para já, importa persistir no
raciocínio dedutivo e no papel crucial que o conceito de plausibilidade prévia
desempenha também aqui. Numa palavra, a terceira condição para que um
raciocínio dedutivo seja bom, além da validade e da verdade das premissas, é
esta: as premissas precisam de ser mais plausíveis do que a conclusão.
Esta
terceira condição vai além de bloquear o raciocínio viciosamente circular;
ajuda além disso a explicar por que razão começa por ser viciosamente circular.
E é-o porque para descobrir algo é preciso começar pelo que é mais plausível do
que o que queremos descobrir. Imagine-se que alguém está a tentar descobrir se
há oxigénio em Marte. É simplesmente desatinado tentar fazê-lo partindo de
premissas que não sejam mais plausíveis do que a hipótese de que há oxigénio em
Marte; se essas premissas não são mais plausíveis e contudo as aceitamos para
traçar essa conclusão, por que não poupar trabalho e aceitar também que há
oxigénio em Marte desde logo? Isto significa que há uma espécie de princípio
epistémico geral com respeito ao raciocínio probatório, ou seja, o raciocínio
que visa descobrir algo que ainda não sabemos. O princípio é que para o
fazermos adequadamente precisamos de começar com premissas que sejam mais
plausíveis do que a conclusão que estamos a tentar traçar.
Repare-se
que este princípio epistémico aplica-se apenas ao raciocínio probatório, e nem
tudo o que se apresenta como raciocínio tem esse aspeto probatório — em alguns
casos, não pretendemos encontrar provas a favor de uma dada conclusão que ainda
desconhecemos, mas antes explicar por que razão é verdadeira uma conclusão que
já sabemos que é verdadeira. E por vezes este tipo de tarefa é explicitada na
forma de um raciocínio dedutivo, ainda que neste caso não se trate de modo
algum de raciocínio probatório.
Eis
um exemplo. Suponha-se que uma criança vê água fervendo pela primeira vez, e
pergunta por que razão está fervendo. Quem lhe responde tenta então
explicar-lhe as leis da natureza relevantes que estão em operação naquele
fenómeno, e essa explicação é suscetível de ser entendida como um raciocínio
dedutivo: isto e aqueloutro ocorre; logo, a água está fervendo. Obviamente, a
conclusão é muito mais óbvia e plausível do que as premissas, e não apenas para
a criança. Porquê? Porque basta olhar para ver a água fervendo. Mas não se
consegue olhar e com esse simples gesto ver que as leis da natureza são assim e
assado. As premissas usadas são menos plausíveis do que a conclusão — e não há
problema algum com isso, porque este não é um caso de raciocínio probatório,
mas antes de raciocínio explicativo.
Eis
outro exemplo de raciocínio que não é probatório. Em lógica conseguimos provar,
por exemplo, que a afirmação “Úrsula é grega ou não” é uma verdade lógica,
usando premissas que são menos óbvias do que esta afirmação. Isto ocorre porque
não estamos a tentar descobrir se aquela afirmação é verdadeira; isso já nós
sabemos. O que estamos a tentar descobrir é se conseguimos provar que é
verdadeira usando princípios lógicos mais fundamentais.
Esta
terceira condição do raciocínio bom — a que vou chamar “cogente”, a partir de
agora — é bastante mais óbvia quando raciocinamos para tentar persuadir alguém.
Um argumento, não no sentido de uma disputa irracional, mas antes no sentido
lógico, é um raciocínio que visa persuadir alguém. Ora, se uma pessoa está a
tentar persuadir outra de uma maneira apropriada, o que é muito diferente de
manipulá-la, terá de começar de premissas que aquela pessoa considera
plausíveis; de outro modo, ela limitar-se-á a rejeitá-las. E se a pessoa está a
tentar persuadi-la de que a conclusão é verdadeira, isso significa que a outra
não a considera plausível, pelo menos à partida. De modo que é preciso partir
de premissas que quem não aceita a conclusão considere mais plausíveis do que a
conclusão.
Porém,
o que é, afinal, a plausibilidade? É um juízo quotidiano, e bastante impreciso,
de probabilidade. A plausibilidade é o que parece mais ou menos provável a
alguém, e diferentes pessoas podem fazer diferentes juízos de plausibilidade. A
plausibilidade é fortemente subjetiva, ao contrário da verdade e da validade.
Porém, não é irredutivelmente subjetiva, porque se consegue provar muitas
afirmações inicialmente implausíveis. Por exemplo, se alguém afirmar que dobrar
cinquenta vezes uma folha comum de papel, que tem cerca de 0,1 milímetros de
espessura, tem como resultado uma espessura de mais de cem milhões de
quilómetros, isso é muitíssimo, muitíssimo implausível. Contudo, consegue-se
provar de maneira simples que as coisas são mesmo assim, e depois disso a
afirmação é ajuizada como maximamente plausível: provou-se que é verdadeira.
Na
verdade, o próprio fito da argumentação, quando argumentamos cooperativamente
para tentar descobrir a verdade, é fazer diminuir o fosso hiante entre o que a
outra pessoa considera plausível e o que nós consideramos plausível. Quando
duas pessoas razoáveis discordam quanto a uma questão, precisam de dar um e
outro passo atrás até conseguirem descobrir um terreno comum, a partir do qual
possam então tentar descobrir que conclusão retirar das premissas que ambos
consideram plausíveis.
Evidentemente,
que não é isto que os terráqueos tendem a fazer, em geral, quando argumentam;
em vez de tentarem descobrir a verdade, é muito comum que as pessoas tentem
manipular as outras, enganá-las e marcar pontos numa guerra verbal. Trata-se de
um exercício imoral, e é uma pena que em vez de ser publicamente condenado
seja, ao invés, desfrutado como um entretenimento doentio, mais ou manos como
ver touradas. O dolo epistémico é muito comum entre terráqueos. Raciocinar bem
não é coisa natural no nosso planeta.
Passando
agora à indução, trata-se de um tipo muito diferente de raciocínio, porque não
é meramente linguístico. Para saber se um dado raciocínio dedutivo é válido ou
não, exige-se apenas o exame cuidadoso das condições de verdade de todas as
suas afirmações; o conhecimento de fundo sobre o mundo em geral é irrelevante.
Porém, no caso do raciocínio indutivo, o conhecimento de fundo sobre o mundo é
crucial. Porque a dedução é tão diferente da indução, é hoje em dia comum
reservar a palavra “validade” para a dedução, ao contrário do que alguns
autores faziam há umas décadas. Isto é só uma convenção. Se uma pessoa falar de
validade indutiva, terá de dizer que é um tipo muito diferente de validade.
Hoje em dia é comum reservar a palavra “validade” para a dedução, e falar
acerca de premissas que apoiam indutivamente a conclusão, no caso da indução.
Para
ver claramente a diferença mais fundamental entre a dedução e a indução,
considere-se o raciocínio óbvio que conclui que a probabilidade de sair caras é
de 1/2, depois de Úrsula lançar uma moeda ao ar:
Este não é um bom raciocínio indutivo,
por razões que se tornarão visíveis daqui a pouco, mas é um ponto de partida
razoável. Por agora, note-se que dependemos do conhecimento de fundo para
ajuizar se o raciocínio está pelo menos na direção certa. Por que não retirar a
conclusão de que a moeda irá ficar de pé? Ou que irá ficar parada no ar? Ou explodir?
Ou simplesmente transformar-se num elefante púrpura com asas? Todas estas
hipóteses remotas são tão boas como quaisquer outras, se ignorarmos o
conhecimento de fundo que temos acerca do mundo, e pensarmos ao invés
exclusivamente em condições de verdade. Recorde-se que, para saber se uma
dedução é válida, basta pensar nas condições de verdade: há alguma condição de
verdade, de todo em todo, ainda que completamente louca e rebuscada, na qual as
premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa? Não é preciso saber seja
o que for acerca do mundo em geral; a competência linguística é suficiente.
No
caso da indução, contudo, é claro que essa competência não é suficiente. A
conclusão indutiva de que a moeda tem uma probabilidade de cinquenta por cento
de sair caras não é melhor do que a conclusão de que irá transformar-se num
elefante púrpura com asas, caso só se tenha em consideração as condições de
verdade daquelas afirmações. Por mais forte que seja um raciocínio indutivo, há
sempre condições de verdade em que todas as premissas são verdadeiras e a
conclusão falsa. Tudo o que isto quer dizer, contudo, é que o raciocínio
indutivo não é dedutivo — o que não é uma surpresa assim tão grande. Os padrões
dedutivos são simplesmente demasiado grosseiros; é como tentar ver bactérias a
olho nu. Quando temos dois raciocínios indutivos, mesmo que um seja muito
melhor do que o outro, ambos são dedutivamente inválidos, por igual. O ponto
importante aqui é que isso é irrelevante.
Voltando
um pouco atrás, por que razão o raciocínio indutivo da moeda não é
particularmente bom? Porque é o que seria apropriado chamar uma “indução
preguiçosa”, e o facto de parecer que este género de induções são razoáveis é
talvez um dos fatores cruciais que explica por que razão os terráqueos
demoraram tanto tempo a descobrir a ciência, e por que razão ainda hoje a maior
parte das pessoas têm dificuldade em compreender as características mais
básicas do raciocínio científico, que é crucialmente indutivo. Suponha-se que
alguém afirma que Úrsula comprou a sua moeda numa loja de truques de magia.
Subitamente, não parece uma boa ideia inferir que a moeda tem cinquenta por
cento de hipóteses de sair caras. Talvez a moeda esteja viciada, de modo que
sai coroas a maior parte das vezes. Como se vê, o conhecimento de fundo é o
coração da questão quando se trata do raciocínio indutivo.
Assim,
um raciocínio indutivo promissor irá incluir a premissa de que a moeda não
parece viciada. Contudo, mesmo assim a indução seria muito preguiçosa. Uma boa
indução, neste caso, exige que se lance a moeda ao ar pelo menos umas dezenas
de vezes e se registe os resultados, para então se inferir indutivamente que a
probabilidade de sair caras é de cinquenta por cento. Esta é uma exigência
crucial da indução sólida, porque o mundo não é perfeitamente uniforme. Não há
qualquer uniformidade perfeita na natureza; há algumas uniformidades ou
regularidades, mas estas existem contra um pano de fundo de exceções,
irregularidades e não-uniformidades. O raciocínio indutivo intuitivo,
preguiçoso, está quase sempre errado precisamente devido a este aspeto: os
terráqueos tendem a esperar regularidades quando não há regularidades.
Descobrir regularidades é importante, e é uma das principais missões da
ciência, mas as regularidades genuínas são muito difíceis de descobrir. O
simples facto de uma coisa se seguir a outra não é suficiente para inferir que
uma é um efeito da outra, ou sequer que ocorrem regularmente juntas. Desde que
existe Terra, o Sol sempre nasceu, todos os dias, até hoje — mas concluir que
sempre irá nascer sempre no futuro é uma inferência indutiva terrível.
Para
ver claramente a tentação ilógica de pressupor regularidades quando não há boas
razões para o fazer, e para ver ao mesmo tempo como o conhecimento de fundo é crucial,
considere-se o seguinte raciocínio indutivo:
Esta previsão indutiva é na verdade
terrível, mas intuitivamente parece boa. É terrível porque ainda não temos
suficiente conhecimento de fundo. Talvez se trate de bolas de um jogo que tem
sete bolas pretas e uma branca. Nesse caso, a previsão segura é que a próxima
bola será branca, e não preta. Ou talvez se trate de bolas usadas num jogo só
com bolas pretas, caso em que a previsão é que a próxima bola será também
preta. Contudo, sem conhecimento de fundo acerca daquelas bolas e da caixa, não
há simplesmente qualquer boa previsão indutiva a fazer. Acontece apenas que não
sabemos; é daqueles casos em que os sábios fazem silêncio e os tolos concluem
alegremente.
Por
que razão é isto tão crucial para o raciocínio científico, e ao mesmo tempo tão
contraintuitivo? Porque os cérebros humanos são essencialmente péssimas
máquinas previsivas, que se baseiam em padrões óbvios; em contraste, o bom
raciocínio científico, indutivo, tem de pôr de lado os padrões fáceis e
proceder ativamente à experimentação, para tentar descobrir padrões genuínos.
Eis
outro exemplo. Uma pessoa faz a sua vida na cidade onde vive, vai às compras,
vai trabalhar e vai a vários outros sítios da sua cidade. De vez em quando, vê
um corvo preto. E parece-lhe que nunca viu um corvo que não fosse preto. Tem
ela dados suficientes para inferir bem indutivamente que todos os corvos são
pretos?
Claro
que não. Ela irá sentir essa tentação — esta é uma aposta segura. Os cérebros
humanos funcionam dessa maneira. Contudo, ela não tem simplesmente dados
suficientes para inferir indutivamente seja o que for desse género. Que teria
ela de fazer? Isto é crucial para compreender o raciocínio indutivo sólido. Eis
uma lista de três tarefas importantes que ela tem de levar a cabo para
conseguir inferir indutivamente bem seja o que for acerca de corvos:
- Observação sistemática. A observação casual, quotidiana, é quase completamente
irrelevante. Ela tem de observar os corvos sistematicamente, o que
significa ir à procura deles, tentar observar o máximo de corvos que for
praticável, e em tantos sítios diferentes do mundo quanto possível. Isto
significa obviamente que as boas induções exigem cooperação; ela precisa
de uma equipa de cientistas que a ajudem a observar corvos
sistematicamente. Precisa de um programa científico de observação de
corvos. Preferencialmente, espalhados por todo o planeta. Se só conseguir
fundos para fazer observações sistemáticas na Europa, então a hipótese em
estudo dirá respeito apenas aos corvos europeus, e não aos corvos do mundo
inteiro.
- Procura de contraexemplos. Ela precisa de procurar ativamente corvos que não sejam pretos —
e isto é exatamente o oposto do que fazemos intuitivamente. Nas nossas
vidas diárias, em geral, reparamos apenas naqueles casos que parecem
confirmar as nossas expectativas, e rapidamente esquecemos ou nem sequer
reparamos nos casos que são contrários a essas expectativas. O raciocínio
indutivo apropriado, pelo contrário, é muito sensível a contraexemplos,
simplesmente porque isso poupa-nos imenso trabalho. Encontrar um corvo que
não seja preto é suficiente para refutar a hipótese indutiva de que todos
os corvos são pretos.
- Registos fidedignos. A memória humana já se sabe que é muitíssimo falível. Temos
tendência para nos recordarmos de seja o que for que apresenta padrões
expectáveis, e para esquecer o que é contrário a esses padrões. A pressão
das expectativas é tão forte que temos até memórias inteiramente falsas,
só porque a memória falsa está em harmonia com as nossas expectativas.
Talvez aquela pessoa já tenha visto um corvo que não é preto no mês
passado, mas recorda-se dele como mais um corvo preto.
Talvez não seja já uma surpresa insistir
numa quarta condição para que aquela pessoa infira indutivamente bem seja o que
for acerca da cor dos corvos: o conhecimento de fundo. Sabe ela já alguma coisa
de relevante para a indução acerca da cor dos corvos? Sim. A menos que tenha
vivido numa caverna nos últimos milhares de anos em que os terráqueos andam por
aí a matar-se uns aos outros, ela já sabe que a cor dos animais não é, em
geral, uniforme; há sempre exceções. Animais albinos, animais que nascem com
cores ligeiramente diferentes dos seus progenitores, e todo o género de
interferências ambientais na cor de um animal. Bem, sem essas variações, a
teoria da evolução por seleção natural nem sequer dá os primeiros passos. De
modo que, na melhor das hipóteses, a conclusão indutiva seria que quase todos
os corvos são pretos, e não realmente todos. (E, a propósito, os corvos não são
todos pretos, nem sequer quase todos.)
Como
se vê, o conhecimento de fundo acerca do mundo em geral é crucial no raciocínio
indutivo, e irrelevante no dedutivo. É por isso que é informativo dizer que o
raciocínio dedutivo é meramente linguístico, ao contrário do indutivo. E é por
isso que é simplesmente irrelevante que num raciocínio indutivo,
independentemente de quão bom ele seja, se encontra sempre condições de verdade
na qual todas as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. O ponto
principal é antes que num bom raciocínio indutivo é muitíssimo improvável que
as suas premissas sejam todas verdadeiras e a sua conclusão falsa.
Para
concluir esta brevíssima viagem por alguns dos importantes ensinamentos que a
lógica tem a oferecer, vale a pena mencionar duas características sociais do
raciocínio. A primeira já foi sugerida, quando se viu que a observação casual é
quase sempre completamente irrelevante como base do raciocínio indutivo
cogente. Precisamos de observações sistemáticas, ou seja, de um programa
científico de observações. Porém, isto não é o tipo de coisa que uma pessoa
seja capaz de fazer sozinha; é preciso ter observadores fidedignos, com
registos também fidedignos. O bom raciocínio indutivo é profundamente social.
Ora, a dificuldade é que os terráqueos são agentes sociais epistémicos
terríveis. Um bom agente social epistémico, responsável, nunca afirmaria saber
para ganhar pontos, às custas da verdade e da prova apropriada. Porém, isso é
exatamente o que os terráqueos estão concebidos por natureza para fazer: para
mentir e enganar e iludir, a caminho da fama e do poder. E isto só é assim
porque compensa. E compensa porque os terráqueos são, regra geral,
terrivelmente crédulos. É muito mais provável que um ser humano aleatório
aceite uma ideia só porque a maior parte das pessoas que o rodeiam a aceitam,
ou porque as pessoas prestigiadas a aceitam, do que se essa mesmíssima ideia
lhe for apresentada como uma conclusão apropriada de um conjunto de premissas
muito plausíveis.
E
esta é a segunda característica social do raciocínio: para a maior parte das
pessoas, é mais fácil acreditar só porque os outros acreditam do que acreditar
porque alguém lhes apresentou boas provas cuidadosamente. É este aspeto
muitíssimo desafortunado do perfil epistémico humano que é responsável por
tanto sofrimento, ignorância e obscurantismo geral, ao longo dos séculos. Eis
um punhado de exemplos da credulidade humana:
Considere-se por momentos um europeu bem
educado típico de 1600 […] Acredita que as bruxas podem invocar tempestades que
afundam os navios em alto-mar […] Acredita em lobisomens, ainda que não existam
na Inglaterra […] Acredita que os ratos são espontaneamente gerados em
amontoados de palha […]
Acredita que um corpo assassinado irá
sangrar na presença do homicida. Acredita que há um unguento que, se for
esfregado num punhal que causou uma ferida, irá curar a ferida […] Acredita que
é possível transformar metais vis em ouro, apesar de ter dúvidas de que alguém
saiba como isso se faz. Acredita que a natureza abomina o vácuo […] (David
Wootton, The Invention of Science: A New History of the Scientific
Revolution, Capítulo 1, §2)
Não havia uma réstia sequer de provas a
favor de qualquer uma destas crenças, que eram naquele tempo tão comuns. Mas
antes de se fazer pouco daqueles desgraçados pobres de espírito ignorantes, é
uma boa ideia parar uns segundos. Quem pensa que já ultrapassámos esses tempos
das trevas, o melhor é pensar outra vez. A homeopatia, a Terra plana, as
conspirações contra as vacinas e as crenças estatisticamente falsas diariamente
sugeridas pelos meios de comunicação não são assim tão diferentes, para já não
falar de crenças albergadas por motivos religiosos.
Note-se
que em 1600 qualquer pessoa poderia ter provado que aquelas crenças que Wootton
relata eram falsas ou que careciam de prova — bastando em alguns casos fazer
breves experiências. Por que não o fizeram? Há aqui três fatores relevantes.
- O primeiro é que, por natureza, o nosso aparato
racional é terrível. Projetamos padrões que não existem, inferimos
indutivamente sem começar por observar sistematicamente, e somos terríveis
a deduzir. Porque sabemos como evitar que a nossa estupidez leve a melhor
— afinal, é isso que se faz na melhor ciência — este primeiro fator não seria
uma notícia assim tão má, não fossem os outros dois.
- O segundo fator é a natureza social da crença. A
maior parte do que sabemos ou erradamente acreditamos que sabemos vem de
outras pessoas. Cada um de nós é simplesmente incapaz de verificar por si
todas as afirmações e todas as provas. Precisamos de apoiar-nos nos
outros. Eu não tenho maneira alguma direta de provar que o Holocausto
ocorreu. Não tenho sequer acesso direto aos registos históricos
relevantes. Só sei do Holocausto porque leio sobre isso nos livros. De
novo, este fator não seria tão mau se tivéssemos códigos sociais estritos
de conduta epistémica, de maneira que ninguém transmitisse crenças aos
outros sem boas provas. Porém, não temos tais códigos, em geral, ainda que
os tenhamos na maior parte das ciências. O pior, contudo, é o terceiro
fator.
- Os terráqueos têm uma doença infecciosa terrível:
a ansiedade quanto ao estatuto. Querem sair-se bem, querem sentir-se
superiores, querem parecer inteligentes, moralmente superiores e bem
informados. Suponha-se que uma pessoa me diz que uma raiz antiga da
floresta da Amazónia cura tudo, do cancro à depressão, passando pela
disfunção erétil, pela calvície e pelas cáries, mas só nos dentes da
frente. Sinto-me algo humilhado porque a outra pessoa está na posse de uma
informação importante que eu não tinha. De modo que na próxima
oportunidade faço aos outros o que os outros me fizeram a mim: volto a
contar o milagre. Não exatamente por acreditar nele, mas antes porque me
faz sentir superior. Agora reitere-se o processo e temos uma dificuldade
terrível em mãos. No fim, quase toda a gente acredita na mentira, só
porque quase todas as outras pessoas também acreditam. Em 1600 as pessoas
acreditavam naquelas tolices que Wootton relata só porque as outras também
acreditavam, e hoje acontece exatamente o mesmo, mas com outras crenças.
Espreita-nos aqui de longe uma espécie
de ironia cósmica. O conhecimento é meramente instrumental, biologicamente
falando. Algumas pessoas algo estranhas gostam realmente de explorar e de
descobrir e de compreender só pelo gozo de o fazer, mas a maior parte das
pessoas têm outras maneiras de se divertir que não obrigam ao esforço
concertado de que precisamos para saber um pouco de lógica, digamos, ou de
astronomia. Contudo, quando o conhecimento é visto como meramente instrumental
para a sobrevivência, é também visto como meramente instrumental para seja o
que for que nos apetece, mesmo que de facto prejudique a sobrevivência. De modo
que usar o conhecimento fingido é uma triste constante na história da
humanidade — constante que, na maior parte dos casos, matou pessoas, ou fê-las
ficar doentes, pobres e miseráveis. Esta é a ironia cósmica: procurar
determinadamente o conhecimento, em vez de o usar apenas instrumentalmente,
tende a melhorar a vida humana, ao passo que tomá-lo como meramente
instrumental tende a contribuir para piorar as nossas desgraças e tragédias.
O
que nos conduz de novo ao início. Muitas pessoas ao longo dos séculos estudaram
a lógica do raciocínio humano. Este é um tema fascinante em si, e seria bom que
estas linhas o tenham pelo menos sugerido. Mas é também um instrumento de
importância capital para descobrir maneiras de melhorar a condição humana.
Afinal, temos de raciocinar bem para o fazer. E é a lógica, entendida na sua
maior amplitude, que nos ajuda nessa importante tarefa.
Desidério Murcho
(O sublinhado é nosso)
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