Natal:
a
celebração de uma contradição
A
Hospitalidade de Abraão, ou a Trindade segundo Andrei Rubliov: não é
problemático ou absurdo acreditar em contradições lógicas das doutrinas
centrais do cristianismo.
Aparentemente os cristãos acreditam em
doutrinas logicamente inconsistentes e contraditórias. Por exemplo, no Natal os
cristãos celebram a encarnação. Mas será essa uma doutrina consistente do ponto
de vista lógico? Parece que não, pois ao celebrarem o Natal os cristãos
proclamam que Jesus Cristo é essencialmente o Deus omnipotente e omnisciente
que, como todos os humanos, exemplifica essencialmente a natureza humana com as
suas inúmeras limitações, incluindo o poder e conhecimento imperfeito, a
compreensão imperfeita, etc. Assim, a contradição é vívida: no Natal os
cristãos estão a celebrar que Jesus Cristo é simultaneamente omnipotente e não
omnipotente, omnisciente e não omnisciente. Pode-se mostrar essa contradição ou
inconsistência lógica de forma explícita ao resumirmos a doutrina da encarnação
no seguinte conjunto de proposições:
1. Tudo o que é Deus é
omnipotente.
2. Nenhum humano é
omnipotente.
3. Jesus Cristo é Deus e
humano.
O problema é que esse conjunto de
proposições é logicamente inconsistente, dado que essas três proposições não
podem ser simultaneamente verdadeiras. Pelo contrário, se aceitarmos duas delas
como verdadeiras, a outra terá de ser falsa. Por exemplo, se aceitarmos as duas
primeiras proposições, temos de negar a terceira de forma a termos um conjunto
consistente. Aliás, se tivermos como premissas 1 e 2, podemos concluir
validamente que não é verdade que Jesus Cristo é Deus e humano e, dessa forma,
a doutrina da encarnação é falsa. Ou seja, é uma consequência lógica de 1 e 2 a
falsidade da doutrina da encarnação. A derivação da contradição é simples: se
algo ser divino implica ser omnipotente (como se afirma na proposição 1) e se
algo ser humano implica que não se seja omnipotente (como se afirma na
proposição 2), segue-se logicamente pela proposição 3 que Jesus Cristo é
simultaneamente omnipotente e não omnipotente, sendo assim a doutrina da
encarnação contraditória. O mesmo problema surge com outra doutrina central que
os cristãos acreditam: a doutrina da trindade. As proposições centrais da doutrina
da trindade são, entre outras, as seguintes:
4. Há um só Deus.
5. O Pai é Deus.
6. O Filho é Deus.
7. O Pai não é o Filho.
Bastam estas quatro proposições para se
derivar uma contradição lógica e, dessa forma, para se provar logicamente que
essa doutrina é inconsistente. Há várias formas de se provar logicamente a
contradição. Por exemplo, pela proposição 6 podemos derivar, com a regra lógica
da simetria, que “Deus é Filho”. E com esta última proposição justamente com a
proposição 5, pela regra lógica da transitividade, podemos derivar que “O Pai é
o Filho”. Ora, pela conjunção desta última proposição que acabamos de derivar
com a proposição 7 pode-se derivar logicamente que “O Pai não é o Filho e o Pai
é o Filho” (que é uma contradição). Como a partir da doutrina da trindade se
originou uma contradição, essa doutrina é inconsistente.
Se as doutrinas centrais do cristianismo,
como a encarnação e a trindade, são logicamente inconsistentes (tal como se
provou nos parágrafos acima), significa isso que são irracionais, falsas,
absurdas e que devem ser abandonadas? O filósofo católico Jc Beall no
livro The Contradictory Christ (Oxford University Press,
2021) avança com uma solução original para estes problemas lógicos que as
doutrinas cristãs enfrentam. Ao passo que grande parte dos filósofos cristãos
que analisam estes problemas (tal como Peter Geach, Eleonore Stump e Peter van
Inwagen) procuram mostrar que as contradições e inconsistências lógicas nestas
doutrinas são meramente aparentes e não genuínas, Jc Beall aceita simplesmente
que essas doutrinas cristãs são genuinamente contraditórias, mas não há
qualquer problema com isso. Tal como refere Jc Beall explicitamente na página 3
desse seu novo livro: “os pensadores cristãos devem aceitar a contradição de
Cristo. Cristo é um ser contraditório”; ou seja, algumas afirmações são
simultaneamente verdadeiras e falsas sobre Cristo. Por exemplo, é verdade que
Jesus Cristo é omnipotente (dado que ele é divino), mas simultaneamente é falso
que Jesus Cristo é omnipotente (dado que ele é humano). O mesmo sucede
aplicando os predicados de “impassível,” “imutável,” “imaterial,”
“omnisciente,” etc.
Mas por que razão não é problemático ou
absurdo acreditar em contradições lógicas como essas? Porque, seguindo o
argumento de Jc Beall, a lógica não é neutra, dependendo da própria realidade
ou metafísica. Ora, se algumas entidades na nossa metafísica são elas mesmas
contraditórias, então a própria lógica terá de ser capaz de modelar esses casos
(reconhecendo, assim, que algumas frases são simultaneamente verdadeiras e
falsas). Numa tal situação a lógica clássica (com o seu princípio da
não-contradição, lei do terceiro excluído, ou princípio da bivalência) não será
plausível; mas continuamos a dispor de lógicas não-clássicas e paraconsistentes
para lidar com esses casos em que na própria realidade há entidades que
exemplificam propriedades contraditórias. Essa é uma possibilidade lógica que
não pode ser ignorada pelos filósofos nem teólogos.
É verdade que do ponto de vista lógico, e
como princípio metodológico, não devemos buscar contradições, mas devemos estar
abertos aos raros casos que as motivam. Ora, a proposta de Jc Beall é que o
papel único de Jesus Cristo na mundividência cristã motiva um relato
contraditório, uma lógica não-clássica paraconsistente, em que não é
problemático nem absurdo afirmar e acreditar simultaneamente que “é verdade que
Jesus Cristo é omnipotente” e “é falso que Jesus Cristo é omnipotente”. Isso
pode parecer chocante e, de certa forma, misterioso, mas o próprio cristianismo
sempre evidenciou o papel de Jesus Cristo e do Natal para ser exatamente assim:
chocante e misterioso.
Domingos Faria | 25 Dez 2022
Domingos Faria é professor auxiliar no
Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
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