terça-feira, 1 de outubro de 2013

Lógica e Poesia



Análise lógica do poema “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, de Alberto Caeiro
Fevereiro 3, 2009 por RikSaintspace

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
O poema começa mal, com uma contradição. Mas, pensa o leitor benévolo, talvez a intenção seja introduzir uma grande ideia, “grande” no sentido de “contra-intuitiva”, que pareça um paradoxo mas afinal não o seja. Vejamos.
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,
Surge neste verso uma tentativa de explicar o paradoxo anterior, como se um paradoxo se pudesse tornar verdadeiro com uma explicação. Podia ser ao menos uma explicação subtil, que confundisse o leitor exigindo-lhe criatividade para desvendar a falácia; mas não é porque compara conceitos demasiado distintos: beleza e rio.
Ele afirma que o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela sua aldeia porque não é esse rio. Mas e se fosse, seria mais belo que ele próprio?
Talvez o poeta queira mostrar, no fundo e sem jeito, que não há comparação entre o Tejo e o rio que corre pela sua aldeia. Mas então, pergunto eu, porque é que os compara ao longo de quase todo o poema?
O Tejo tem grande navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
Depreende-se daqui que o poeta pensa que todas as pessoas, sem excepção, sabem que o Tejo termina no mar (que não é um mar e sim um oceano), mas que poucas sabem que todos os rios terminam em mares e oceanos.  O poeta julga que o destino do rio da sua aldeia é secreto, um conhecimento a que só ele e uns poucos têm acesso, apesar de haver uma regra geral que se lhe pode aplicar para obter esse conhecimento e que é aprendida na terceira classe.
É um delírio poético, poder-se-ia dizer… Mas o que é que o poema tem que conduza a algum delírio, se ainda não fez até aqui senão constatar o óbvio depois de ter lançado um paradoxo, também ele fácil de desmanchar?
E donde ele vem.
É da nascente. Para se achar a nascente de um rio, basta segui-lo no sentido contrário ao da água. Para o poeta isso é ainda um segredo bem guardado. É possível que acredite que os livros da primária não fazem parte de um plano nacional de educação, sendo exclusivamente distribuídos na sua aldeia. Talvez pense que é um imperativo político, ou um desígnio divino, que aquela aldeia apenas possua os segredos profundos da escola primária. Ou talvez não passe de um caso de demência. Vejamos como prossegue:
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Mais um engano grosseiro: um rio pouco conhecido não pertence a menos gente do que um mais conhecido. Todos os rios, neste país, pertencem ao Estado Português – ou pelo menos a parte deles que atravessa o território nacional.
E mais livre que o Tejo não será, já que está sujeito às mesmas leis físicas, como todos os outros rios existentes no mundo. Contudo o verso parece sugerir uma atrocidade geral: que as coisas que pertencem a menos gente são, por isso, mais livres. Mas como é que, digamos, uma árvore é mais livre se pertencer a um proprietário do que uma que pertence a dez? Tem mais liberdade para fazer o quê exactamente? Decidir quantos frutos é que quer gerar por ano? Erguer as raizes e ir ao shopping? A mesma questão se aplica aos rios ou a outra coisa qualquer. O que é um rio mais livre? É um rio que pode decidir correr para a nascente ou subir montanhas?
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
Partindo destes versos coloquei a questão a um aluno avançado, já na quarta classe, e ele sabiamente respondeu: “se todos os rios vão dar ao oceano, e se além do oceano há a América e a fortuna, então o rio da aldeia desse palerma também vai lá dar, se tiver água suficiente para chegar a algum lado”. Assim é.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Tendo começado com uma incoerência, para o poeta é lógico terminar com outra. Depois de 20 versos que orbitam em torno do rio da sua aldeia, decide concluir que o dito curso de água não faz pensar em nada. Absolutamente nada – nem mesmo neste poema, que forçosamente terá sido escrito a pensar noutro rio qualquer.
Outra possibilidade é o autor estar a afirmar que todo o poema foi escrito sem pensar. Mas se foi escrito sem pensar porque haveremos de acreditar no verso que indica que foi escrito sem pensar?
As agressões à lógica vão-se revelando como matrioshkas. Mas não é apenas a lógica que sai atingida deste aglomerado incoerente de palavras; atente-se na amarga generalização aqui implícita: “não faz pensar em nada”. O poeta não escreve “não me faz pensar em nada”, ou seja, generaliza a torpeza mental a todos os seres pensantes, nos quais o leitor estará incluído. O que ele diz, de forma pouco subtil, é que nenhuma pessoa tem capacidade para pensar em alguma coisa relacionada com o rio da sua aldeia – nenhuma pessoa excepto ele mesmo, que não sem arrogância e presunção prova que o consegue escrevendo estes versos transbordantes de atropelos à lógica e generalizações hostis.
Alberto Caeiro é um artista cuja agressividade e narcisismo só são superados pela ausência de raciocínio lógico. Criado nos pastos, transporta a sua rudeza selvagem para uma poesia de índole violenta e absurda coberta por uma capa (rota) de falsa e bucólica inocência. É neste sentido um grande poeta. Os seus versos são como enxadas atiradas à cabeça dos intelectuais citadinos que, com os óculos partidos, sorriem sem dentes por sentir a paz que imaginam existir no espírito simples mas universal de Caeiro, algures entre as ovelhas e as estrelas, numa qualquer província ao ar livre mais quente e saudável do que os seus quartos sombrios.


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