Blasfémia
'A blasfêmia é sempre um problema político', afirma filósofa francesa
Em 7 de janeiro
de 2015, quando os irmãos Kouachi dizimaram a Redação do jornal "Charlie
Hebdo", fazia três anos que Anastasia Colosimo estudava a questão da
blasfêmia, das origens até as polêmicas contemporâneas.
Vieram então os
atentados de 13 de novembro, um novo sismo no país.
Em janeiro
deste ano, a pesquisadora publicou o ensaio "Les bûchers de la
liberté" (As fogueiras da liberdade, ed. Stock), recebido com elogio pela
mídia francesa.
Colosimo aponta
"equivocados" debates na França no rastro dos atentados terroristas.
A blasfêmia é um problema teológico-político, e não religioso, defende ela, que
critica uma escalada de leis que enfraquecem a liberdade de expressão no país.
Aos 25 anos, já
ensina teologia política no reputado Instituto de Estudos Políticos de Paris
(SciencesPo). Integrante da chamada "geração Bataclan", atingida
pelos ataques de novembro, Colosimo diz ainda lamentar a reação primeira dos
jovens franceses frente à tragédia.
Leia abaixo os
principais trechos da sua entrevista.
A ensaísta francesa Anastasia Colosimo, professora da SciencesPo, de Paris |
Folha - Você vê incapacidade na compreensão do combate
ideológico que está por trás da acusação de blasfêmia.*
Anastasia Colosimo - A blasfêmia sempre foi um problema político. A comunidade política é uma
comunidade religiosa. Historicamente, o único momento de incerteza foi no
começo do cristianismo. Antes dos grandes impérios monoteístas, o processo de
Sócrates foi de blasfêmia. O de Cristo também.
A partir do momento em que o poder político encontra sua legitimidade numa autoridade espiritual, e que há uma identidade perfeita entre o teológico e o político, a blasfêmia é um problema político.
Então deve-se parar de dizer que é por causa de um retorno do religioso que há um problema de blasfêmia.
A partir do momento em que o poder político encontra sua legitimidade numa autoridade espiritual, e que há uma identidade perfeita entre o teológico e o político, a blasfêmia é um problema político.
Então deve-se parar de dizer que é por causa de um retorno do religioso que há um problema de blasfêmia.
Qual a relação
hoje da blasfêmia com o religioso?
Num contexto ocidental de separação entre igreja e Estado, há o argumento religioso -de que não se deve blasfemar- e o argumento secular, de defesa da liberdade de expressão. Entra-se num combate de direitos humanos, e quer se limitar a liberdade de expressão exatamente em nome do que a define. Restringe-se a liberdade de expressão para a proteção dos sentimentos dos crentes.
É o encontro com a modernidade, diz-se que não tem nada a ver com Deus, mas com "meus" sentimentos. Isso é a estratégia "comunitarista", meio de pressão para comunidades. Foi o que se viu na França pós-atentados.
De um lado, uma certa população muçulmana dizia se sentir ofendida. De outro, políticos e intelectuais que, em vez de criticarem, concordavam com esta atitude. Quando se é crente e se vê uma blasfêmia, é possível sentir-se incomodado, mas não se está sendo ofendido. É preciso parar com esta ideia de ofensa.
Homem lê edição do 'Charlie Hebdo' que relembrou um ano dos ataques ao jornal |
Você vê exagero
na legislação sobre liberdade expressão nas últimas décadas, o que teria
agravado as crispações identitárias.Em 1976, a
Corte Europeia de Direitos Humanos definiu que a liberdade de expressão vale
também para ideias que "ferem, chocam ou inquietam". Mas em 1994
julgou a blasfêmia concebível apenas se for "útil ao debate público".
Deve-se permitir às pessoas que tenham discursos que possam ferir, inquietar e
chocar. Esta é uma resolução sublime da Corte Europeia. Mas depois vem a
resolução Otto-Preminger, uma catástrofe, um texto ainda hoje aplicado pela
Corte. Em resumo, diz que só será protegida a blasfêmia que contribuir ao
debate público. E quem é juiz para saber o que contribui ou não com esse
debate?
Em 1881, surgiu uma lei formidável, que se aplica ainda hoje. Todas as leis de
hoje sobre direito de associação, liberdade de expressão e separação entre
igreja e Estado (1905) vêm do período da Terceira República (1870-1940).
A lei de 1881 é grande porque abole o delito de opinião. Mas, em 1972, veio a lei Pleven, que interdita a provocação ao ódio, à discriminação e à violência em função do pertencimento ou não a uma religião, etnia, raça ou nação. E não se faz diferença entre religião, etnia, raça e nação.
E, neste momento, a questão religiosa não é central no debate público, pensa-se que é um assunto encerrado.
A lei de 1881 é grande porque abole o delito de opinião. Mas, em 1972, veio a lei Pleven, que interdita a provocação ao ódio, à discriminação e à violência em função do pertencimento ou não a uma religião, etnia, raça ou nação. E não se faz diferença entre religião, etnia, raça e nação.
E, neste momento, a questão religiosa não é central no debate público, pensa-se que é um assunto encerrado.
Qual é o perigo
desta lei?
|
Com esta lei vai se dar poder às associações de denunciar judicialmente em nome
das comunidades. Para mim, este é o pecado original. Vai se abrir o caminho
para ações coletivas selvagens, identitárias, comunitaristas.
O processo para mim simbólico é a ação de 2007 contra "Charlie Hebdo"
por causa da publicação das caricaturas de Maomé. Baseadas na lei Pleven, a
União das Organizações Islâmicas da França (UOIF) e a Grande Mesquita de Paris
vão processar o jornal argumentando que se trata de uma provocação ao ódio da
comunidade muçulmana. As duas associações processam em nome de toda a
comunidade muçulmana, um delírio.
A grande maioria dos muçulmanos não estavam nem aí, muitos nem conheciam
"Charlie Hebdo". E se cria uma crispação na sociedade, desde que se
vê um muçulmano, se pergunta: "E você, o que acha das caricaturas?".
E eles acabam se encerrando, há um efeito perverso.
Nos atentados de janeiro de 2015, as pessoas vão questionar os muçulmanos:
"E então, vocês processaram 'Charlie Hebdo', o que pensam disso
agora?". A lei Pleven causou um efeito terrível, que foi uma
comunitarização selvagem.
Como você
analisa a laicidade francesa neste contexto?
Na laicidade francesa o Estado não reconhece as comunidades. Na França temos
esta ideia um pouco atípica de que o Estado se dirige apenas ao cidadão e nunca
a comunidades, o que vai de encontro ao modelo anglo-saxão. Primeiro se é
francês, e depois se pode ser negro, judeu, árabe, tudo o que se quiser. Mas
hoje tudo isso está se desintegrando.
A lei Pleven promoveu o comunitarismo e também uma inflação de leis, todo mundo
quis ter a sua. E veio a lei Gayssot, em 1990, que penaliza o negacionismo. E
muito rapidamente, em 2001, tivemos a lei sobre o genocídio armênio. E também a
Lei Taubira, ainda em 2001, sobre o tráfico de escravos. E a lei de 2005, com
uma enorme controvérsia, sobre a colonização e o papel positivo dos franceses
nas províncias ultramarinas.
Depois vieram, em 2012, os transsexuais, os deficientes físicos. E nos vimos
num tipo de concorrência, em que se é definido antes de tudo por sua condição
de pertencer a uma categoria. É gay, judeu? E como fazer quando se é gay e
judeu? É algo insensato. Houve uma concorrência entre comunidades que é muito
nefasta para o espaço público.
Para mim, estas leis são contraprodutivas, porque em vez de se ter um
verdadeiro discurso sobre o antissemitismo ou sobre o racismo, se prefere
descartar as pessoas da sociedade e enviá-las ao tribunal. O Estado fica apenas
com seu papel de sanção e perde completamente todo seu trabalho de pedagogia.
A laicidade na
França está em questão?
Na França, no espaço público nenhuma religião é representada. Mas a realidade é
complexa. Por que é importante hoje num país laico como a França não ignorar o
fato religioso, mas compreendê-lo e levá-lo a sério? Porque é o que permite
fazer a distinção entre o fato religioso e a loucura identitária ou religiosa.
Temos todos os debates em torno das questões do véu islâmico, das refeições nas
cantinas escolares, do uso das piscinas ou dos motoristas de ônibus públicos
que não querem dirgir após o volante ter sido usado por uma mulher. É preciso
saber arbitrar.
Na França há esta ideia de que a lei prima, mesmo que isso entre em conflito
com a religião de cada um. Não podemos aderir a todas as loucuras das pessoas
em nome da tolerância. Há na França, por exemplo, uma seita das cebolas. São
pessoas que acreditam que Deus se esconde dentro de uma cebola. Elas pensam que
não se pode cortar uma cebola ao meio. O que fazer? Não vamos mais comer
cebolas na França?
Precisamos de medida e de nuance. O que conta é que vivamos todos juntos a
mesma experiência, numa aventura nacional e comum. Hoje há um contexto
internacional do retorno do religioso e do islamismo radical. Não vamos ceder a
isso. Mas não se pode também colocar tudo no plano jurídico, senão é o começo
do fim.
Você pertence a
esta "geração Bataclan", e disse que os atentados para estes jovens
foram uma espécie de "speed dating" com a tragédia. Qual foi a sua
reação?
Eu nasci em 1990, após a queda do muro de Berlim. A minha geração não cresceu
em meio aos grandes ideais e utopias sociais. E também não conhecemos a guerra.
Mesmo quando a França estava em conflito, não se falava de "guerra",
mas de intervenções armadas ou humanitárias. A morte estava longe, minha
geração não viu cadáveres. Estávamos desconectados da grande história.
Os atentados de janeiro foram um encontro com a história. E os ataques de
novembro foram de uma violência alucinante para esta geração, porque ela foi
alvejada em cheio. E de repente todo mundo poderia ser morto, não importa onde,
bebendo no terraço de um bar, o que fazíamos desde sempre.
Mas me chocou esta maneira autocentrada da geração Bataclan em dizer
"estão atacando nosso modo de vida", "vamos resistir ocupando os
terraços dos bares". Quando vi o hashtag "#Je suis terrasse" (Eu
sou terraço), pensei "este país acabou". Achei isso trágico, uma
infantilização delirante. Não se resiste bebendo nos terraços, é a guerra,
temos uma responsabilidade. E de nada serve dizer "mas não fomos nós que
fizemos a guerra na Líbia, no Afeganistão". A questão é que hoje isso é
nossa responsabilidade. Se não fizermos nada, vai acabar mal. É o desafio para
esta geração, o jihadismo, o terrorismo islamista. Mas apesar desta primeira
reação infantil, emocional, acredito que houve um certo despertar.
Seu livro foi
considerado pessimista, mas você se diz também uma cidadã e intelectual
otimista.
Meu livro é pessimista porque acho que vamos ter muita dificuldade em nos
livrarmos destas leis todas. Mas sou otimista no fato de que há na história
grandes experiências políticas. Tudo isso nos leva a questões muito íntimas
sobre o que queremos construir, a maneira como estamos dispostos a aceitar o
outro com suas diferenças. Filosoficamente não sou da escola dos otimistas, mas
mais do lado de Hobbes (1588-1679), de Maquiavel (1469-1527). Tenho uma
hipótese antropológica extremamente pessimista, e ao mesmo tempo isso me
pareceu o único meio de ter uma ontologia otimista. Não é impossível que ocorra
um sobressalto na defesa deste modelo francês e desta aventura que se pode
viver como nação.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/02/1741576-a-blasfemia-e-sempre-um-problema-politico-afirma-filosofa-francesa.shtml
FERNANDO EICHENBERG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
21/02/2016 02h00
Lola
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