Juventude e Filosofia
O que perde a
juventude sem Filosofia em sala de aula
Tornar opcional o ensino de Filosofia
corresponde a tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a
pensar sobre o que os torna verdadeiramente humanos
Obra do artista surrealista belga René Magritte (Foto: Reprodução)
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Na próxima semana o Senado tratará da
Medida Provisória referente à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão
tornar opcional o ensino de Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como
o Senado tem a prerrogativa de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter
alguma clareza no debate, apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos
senhores senadores.
Certamente uma das razões para desobrigar
do ensino de Filosofia é uma razão econômica, embora seja irrisória a
quantidade de dinheiro público que será poupada com o corte de professores e de
aulas dessa disciplina (maior será o dano social à vida dos profissionais e dos
estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se à menção explícita de nomes
de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Outra razão,
enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm ocorrido em nosso país durante
os últimos dois anos, ela parece ser o principal motor para desobrigar do
ensino de Filosofia: trata-se de uma razão sócio-ideológica que diz respeito à
preocupação de setores da sociedade brasileira com a “doutrinação comunista e
ateia” que seria praticada nas aulas de Filosofia.
Dito dessa maneira, tudo parece uma
caricatura. Na realidade, porém, não há nada de caricatural. Essa razão foi
levantada por vários deputados e senadores, além de representantes da sociedade
civil. Professores de Filosofia seriam marxistas, militantes petistas,
anticristãos, adeptos do casamento homossexual, abortistas, anticapitalistas,
contrários à meritocracia e outras coisas mais.
Assim, para além das simpatias e dos
ódios, é necessário e urgente perguntar: esse diagnóstico corresponde à
realidade? Seriam todos os professores de Filosofia comunistas e ateus? Seria
realmente um ganho para a história mental de nosso país tornar opcional o
ensino de Filosofia?
Num momento histórico em que muitas pessoas
redescobrem a importância do pensamento filosófico (quando mesmo grandes
empresas têm valorizado profissionais dotados de conhecimentos filosóficos,
porque são capazes de análises mais globais e de pensamentos mais complexos),
urge perguntar por que o Brasil pretende frear a ampliação da cultura
filosófica em vez de acelerá-la? Aliás, outros países da América Latina também
têm puxado o mesmo freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para
desobrigar do ensino de Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como
o comunismo, a destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da
família etc.
Um parêntese histórico curioso: os
partidos de direita e de centro-direita fazem hoje o que setores da esquerda
fizeram no passado e fazem também atualmente. Refiro-me a todos aqueles de
esquerda que são contra o ensino de Filosofia porque, como dizem, “diante
da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres,
pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”. Hoje os
membros da direita dizem que quem dá as aulas são “marxistas, comunistas,
petistas, ateus, gays, lésbicas e assim por diante”.
Indo ao núcleo dessa preocupação, é
urgente perguntar se esse diagnóstico corresponde à realidade. E
a resposta para essa questão é redondamente negativa.
Tenho conhecimento de causa, não apenas
pelo trabalho na universidade em que leciono, mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me apenas ao ponto
talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o maior número de
professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas religiosas ou agnósticas
(pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e
têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez por motivos sociais (o
crescimento das religiões cristãs evangélicas e de setores do cristianismo
católico, do budismo, das religiões africanas e outras religiões), o fato é que
a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é
uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político,
muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de
serem petistas.
Obviamente, quando faz parte do programa
curricular o estudo de pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los,
inclusive os professores religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância
desses filósofos para a história do pensamento; não se pode querer evitá-los
como se tivéssemos o direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a
verdade histórica. Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se
em um excelente exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a
amadurecer sua fé religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.
Queremos ou não queremos formar cidadãos
livres, responsáveis e construtores de uma sociedade respeitosa e democrática?
Se esse é um dos objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos
estudantes, deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades
“opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual,
levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da
religião, enfim, dos vários aspectos da existência.
O
caso do falso debate entre criacionismo e ciência
Para dar um exemplo mais concreto do bem
que a formação filosófica pode fazer mesmo a pessoas religiosas, evoco aqui uma
experiência que vivi quando lecionei no Ensino Médio (e que constantemente se
repete na universidade): um grupo de estudantes estava muito angustiado depois
de algumas aulas de Biologia, pois haviam estudado a teoria do Big Bang ou do
que se chama em geral de “a grande explosão” que teria ocorrido nos inícios do
Universo, e o professor de Biologia teria afirmado que a teoria do Big Bang provava
a inexistência de Deus.
A ocasião não podia ser melhor para que eu
atuasse como professor de Filosofia. A primeira coisa que propus em aula foi
estudar o modo como se constrói o conhecimento em Biologia e nas ciências em
geral, avaliando sobretudo a base que permite construir conceitos como início, causa, fim, finito, infinito, além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram logo tirar a
conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque perceberam não
apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que “viu” ou
experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito), mas também
que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência nem a
existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou outro,
nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém, estavam
realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente
bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por
todos os que se instruem nas regras desse discurso.
Depois de várias aulas de reflexão, de
leitura de textos de Filosofia da Ciência, de Teoria do Conhecimento e de
Filosofia da Religião, o ganho foi enorme, principalmente porque a conclusão
mais adequada e mais lúcida era a de que a teoria do Big Bang não anula a fé na
criação e que tampouco a fé na criação impede de adotar a teoria do Big Bang.
O dado comum percebido por todos era o de
que o debate “criacionismo versus eternidade ou infinitude do Universo” é um falso
debate, fundamentado no erro de tomar o criador do Universo por uma “parte” do
mesmo Universo (e, por conseguinte, passível de ser provado ou não). Tanto os
estudantes religiosos se apegavam a uma visão demasiado infantil do criador,
como o professor de Biologia também era imaturo ao achar que sua briga era com
aquele criador infantil. O erro conceitual do professor era explícito: ele
tratava o ser divino como uma parte do mundo, querendo submetê-lo às leis da
Física, da Química e da Biologia, em vez de entender que o ser divino, para ser
tratado adequadamente, deve ser visto como transcendente ao mundo e suas leis.O
mesmo erro era cometido pelos estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma
parte do mundo e traíam sua transcendência.
Trocando em miúdos, o Universo pode ter
surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre existido, pode caminhar para
um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas teorias impede pensar que um ser
divino criador está no fundamento do Universo. Nunca será irracional crer que
há um porquê para o dinamismo cósmico, pois provar a irracionalidade dessa
crença exigiria provar o absurdo de seu fundamento mesmo, o ser divino, que,
por definição, não é parte do mundo, não estando, portanto, sujeito a nenhum
tipo de prova. Crer ou não crer são atitudes que envolvem não apenas o
pensamento, mas também o sentimento (especificamente o sentimento religioso, na
linha do que diziam Friedrich Schleiermacher e Rudolf Otto) e a vontade.
Relegar o ensino de Filosofia à categoria
de “opcional” é diminuir ou anular a possibilidade de os estudantes
desenvolverem exercícios desse tipo. É construir uma visão formativa em que os
saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na ilusão de que mais aulas de
Português e Matemática vão realmente fazer os estudantes pensar e exprimir-se
com correção.
Nós, brasileiros de hoje, temos uma grave
responsabilidade pelo tipo de mente que desejamos formar nas crianças e jovens.
São eles que continuarão a construção do Brasil. Queremos um futuro com pessoas
de mente aberta, respeitosa e madura ou de mente fechada, medrosa, imatura e
agressiva? Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio que alguns
estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as melhores
escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos diante
desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um país
desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?
Juvenal Savian Filho
Colaboração para a CULT
Colaboração para a CULT
Juvenal
Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela
Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo
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