terça-feira, 3 de outubro de 2017

Princípios Lógicos




Princípios Lógicos

Sobre nosso conhecimento dos princípios gerais

Vimos no capítulo precedente que o princípio da indução, enquanto necessário para a validade de todos os argumentos baseados na experiência, não é, por sua vez, suscetível de ser provado por meio da experiência e, contudo, todos acreditam nele sem hesitação, pelo menos em todas suas aplicações concretas. O princípio da indução não é o único que possui estas características. Existem vários outros princípios que não podem ser provados ou refutados por meio da experiência, mas são usados em argumentos que partem do que é experimentado.

Alguns destes princípios têm inclusive maior evidência que o princípio da indução, e o conhecimento deles tem o mesmo grau de certeza que o conhecimento da existência dos dados dos sentidos. Eles constituem os meios de fazer inferências a partir do que é dado na sensação; e se o que inferimos é verdadeiro, é exatamente tão necessário que nossos princípios de inferência sejam verdadeiros como é necessário que nossos dados sejam verdadeiros. Os princípios de inferência são suscetíveis de serem negligenciados por causa do seu carácter óbvio – a suposição que envolvem é aceita sem que compreendamos que se trata de uma suposição. Mas é muito importante compreender o uso dos princípios de inferência se quisermos obter uma correta teoria do conhecimento; pois o conhecimento que temos deles suscita interessantes e difíceis problemas.

Em todo nosso conhecimento de princípios gerais, o que realmente acontece é que primeiro de tudo compreendemos alguma aplicação particular do princípio, e então compreendemos que a particularidade é irrelevante e que existe uma generalidade que pode ser afirmada com a mesma legitimidade. Isso naturalmente nos é familiar em matérias tais como o ensino da aritmética: aprendemos primeiro que “dois mais dois são quatro” no caso particular de dois pares, e logo em algum outro caso particular, e assim por diante, até que finalmente seja possível ver que é verdade para quaisquer dois pares. A mesma coisa acontece com os princípios lógicos. Suponhamos que dois homens estejam discutindo sobre em que dia do mês estamos. Um deles diz: “Pelo menos você admitirá que se ontem era dia 15, hoje deve ser o dia 16”. “Sim”, diz o outro, “Admito isso”. “E você sabe”, continua o primeiro, “que ontem era dia 15, porque você jantou com o Jones, e sua agenda lhe revelará que era dia 15”. “Sim”, diz o segundo; “portanto hoje é dia 16”.

Ora, não é difícil seguir semelhante raciocínio; e se admitirmos que suas premissas são verdadeiras de fato, ninguém poderá negar que a conclusão deve também ser verdadeira. Mas sua verdade depende de um exemplo de um princípio lógico geral. Este princípio lógico é o seguinte: “suponhamos conhecido que se isso é verdadeiro, então aquilo também é verdadeiro. Se supusermos também conhecido que isso é verdadeiro, então se segue que aquilo também é verdadeiro”. Quando é o caso que se isso é verdadeiro, aquilo também é verdadeiro, diremos que isso “implica” aquilo, que aquilo “se segue” disso. Assim nosso princípio estabelece que se isso implica aquilo, e isso é verdadeiro, então aquilo também é verdadeiro. Em outras palavras, “qualquer coisa implicada por uma proposição verdadeira, é verdadeira”, ou “tudo o que se segue de uma proposição verdadeira é verdadeiro”.

Este princípio está realmente implícito – pelo menos exemplos concretos dele estão implícitos – em todas as demonstrações. Sempre que algo em que acreditamos é usado para provar algo diferente, no qual consequentemente acreditamos, este princípio é relevante. Se alguém pergunta: “Por que deveria aceitar os resultados de argumentos válidos baseados em premissas verdadeiras?” somente podemos responder apelando para nosso princípio. Na realidade, é impossível duvidar da verdade do princípio, e sua evidência é tão grande que à primeira vista parece quase trivial. Tais princípios, entretanto, não são triviais para o filósofo, pois eles mostram que podemos ter conhecimento indubitável que não é de maneira alguma derivado dos objetos dos sentidos.

O princípio mencionado é simplesmente um de vários princípios lógicos evidentes por si. Deve-se aceitar pelo menos alguns destes princípios para que qualquer argumento ou prova se torne possível. Quando se aceita alguns deles, outros podem ser provados, embora estes outros, na medida em que são simples, são exactamente tão óbvios como os princípios supostos. Sem qualquer razão verdadeiramente satisfatória, três destes princípios têm sido seleccionados pela tradição com o nome de “Leis do Pensamento”.

            Eles são os seguintes:

(1) A lei de identidade: “Tudo o que é, é”.

(2) A lei de contradição: “Nada pode, ao mesmo tempo, ser e não ser”.

(3) A lei do terceiro excluído: “Tudo deve ser ou não ser”.


 Estas três leis são exemplos de princípios lógicos evidentes por si, mas não são realmente mais fundamentais ou mais evidentes que vários outros princípios similares. Por exemplo, o princípio que acabamos de considerar, que afirma que o que se segue de uma premissa verdadeira é verdadeiro. A denominação “lei do pensamento” é também imprecisa, pois o que é importante não é o fato de que pensamos de acordo com estas leis, mas o fato de que as coisas ocorram de acordo com elas; em outras palavras, o fato de que quando pensamos de acordo com elas pensamos de modo verdadeiro. Mas este é um problema importante, ao qual retornaremos mais tarde.

 Além dos princípios lógicos que nos permitem demonstrar, a partir de uma premissa dada, que algo é certamente verdadeiro, existem outros princípios lógicos que nos permitem demonstrar, a partir de uma premissa dada, que existe uma maior ou menor probabilidade que algo é verdadeiro. Um exemplo destes princípios – talvez o mais importante – é o princípio indutivo, que consideramos no capítulo anterior.

 Uma das maiores controvérsias da história da filosofia é a controvérsia entre as duas escolas denominadas respectivamente “empirista” e “racionalista”. Os empiristas – representados especialmente pelos filósofos britânicos, Locke, Berkeley e Hume – mantinham que todo nosso conhecimento deriva da experiência; os racionalistas – representados pelos filósofos continentais do século XVII, especialmente por Descartes e Leibniz – mantinham que, além do que conhecemos por meio da experiência, existem certas “idéias inatas” ou “princípios inatos”, que conhecemos independentemente da experiência. Atualmente é possível decidir com alguma segurança sobre a verdade ou falsidade destas escolas opostas. Deve-se admitir, por razões já expostas, que os princípios lógicos nos são conhecidos, e que por sua vez não podem ser provados pela experiência, visto que todas as provas os pressupõem. Portanto, neste ponto, que era o mais importante da controvérsia, os racionalistas tinham razão.

Por outro lado, mesmo que parte de nosso conhecimento seja logicamente independente da experiência (no sentido de que a experiência não pode prová-lo) é, não obstante, suscitado e causado pela experiência. É por ocasião das experiências particulares que nos tornamos conscientes das leis gerais que exemplificam suas conexões. Seria certamente absurdo supor que existem princípios inatos no sentido de que os bebes nasçam com o conhecimento de tudo o que os homens sabem e de que não podem ser deduzidos do que é experimentado. Por esta razão a palavra “inato” já não é mais empregada para descrever nosso conhecimento dos princípios lógicos. A frase “a priori” é menos susceptível de objecções, e é mais usual nos autores modernos. Assim, embora admitindo que todo conhecimento seja suscitado e causado pela experiência, sustentaremos, não obstante, que algum conhecimento é a priori, no sentido de que a experiência que nos faz pensar nele não é suficiente para prová-lo, mas que simplesmente dirige nossa atenção de modo a vermos sua verdade sem necessitar qualquer prova da experiência.

Existe outro ponto muito importante, no qual os empiristas tinham razão contra os racionalistas. Nada pode ser conhecido como existente a não ser por meio da experiência. Ou seja, se quisermos provar que alguma coisa da qual não temos uma experiência direta existe, devemos ter entre nossas premissas a existência de uma ou mais coisas das quais temos experiência direta. Nossa crença de que o Imperador da China existe, por exemplo, baseia-se nos testemunhos, e os testemunhos consistem, em última análise, de dados dos sentidos vistos ou ouvidos ao ler ou falar a seu respeito. Os racionalistas acreditam que, a partir da consideração geral em relação ao que deve ser, eles poderiam deduzir a existência disto ou daquilo no mundo real. Em relação a esta crença parece que estavam equivocados. Todo o conhecimento que podemos adquirir a priori sobre a existência parece ser hipotético: diz-nos que se uma coisa existe, outra deve existir, ou, de modo mais geral, que se uma proposição é verdadeira, outra também deve ser verdadeira. Isso é exemplificado pelos princípios dos quais já tratamos, como: “se isto é verdadeiro, e isto implica aquilo, então aquilo é verdadeiro”, ou “se isto e aquilo foram frequentemente encontrados em conexão, provavelmente estarão conectados na próxima vez em que encontrarmos um deles”. Assim, o alcance e poder dos princípios a priori é estritamente limitado. Todo conhecimento de que alguma coisa existe deve depender em parte da experiência. Quando alguma coisa é conhecida de um modo imediato, sua existência é conhecida só por meio da experiência; quando se prova que alguma coisa existe, sem que seja imediatamente conhecida, tanto a experiência como princípios a priori devem ser requeridos para a prova. O conhecimento é denominado de empírico quando se funda completa ou parcialmente na experiência. Assim, todo conhecimento que afirma a existência é empírico, e o conhecimento exclusivamente a priori sobre a existência é hipotético; nos dá conexões entre as coisas que existem ou podem existir, mas não nos dá a existência real.

O conhecimento a priori não é todo do tipo lógico que até aqui consideramos. O exemplo mais importante de conhecimento a priori não lógico é, talvez, o conhecimento relativo aos valores éticos. Não me refiro aos juízos em relação ao que é útil ou em relação ao que é virtuoso, pois estes juízos requerem premissas empíricas; estou me referindo aos juízos em relação à desejabilidade intrínseca das coisas. Se alguma coisa é útil, deve ser útil porque ela assegura algum fim, e, se quisermos ir às últimas consequências, o fim deve ser valioso em si mesmo, e não somente porque é útil para algum fim ulterior. Assim, todos os juízos em relação ao que é útil dependem de juízos em relação ao que é valioso em si me

Julgamos, por exemplo, que a felicidade é mais desejável que a miséria, o conhecimento mais que a ignorância, a benevolência mais que o ódio, e assim por diante. Estes juízos devem ser, pelo menos em parte, imediatos e a priori. Como os juízos a priori antes mencionados, eles podem ser suscitados pela experiência e, de fato, é preciso que sejam; pois não parece possível julgar se alguma coisa é intrinsecamente valiosa a menos que tenhamos experimentado alguma coisa do mesmo tipo. Mas é absolutamente óbvio que não podem ser provados por meio da experiência; pois o fato de que uma coisa exista ou não exista, não pode provar que é bom ou mau que exista. A investigação deste tipo de problemas pertence à ética, à qual cabe estabelecer a impossibilidade de deduzir o que deve ser do que é. No presente momento é apenas importante compreender que o conhecimento em relação ao que é intrinsecamente valioso é a priori no mesmo sentido em que a lógica é a priori, ou seja, no sentido de que a verdade de tal conhecimento não pode ser provada nem refutada por meio da experiência.

Toda a matemática pura é a priori, como a lógica. Isso foi energicamente negado pelos filósofos empíricos que mantiveram que a experiência é a fonte de nosso conhecimento da aritmética assim como de nosso conhecimento da geografia. Eles mantiveram que por meio da experiência repetida de ver duas coisas, e logo mais duas outras coisas, e achar que juntas somam quatro coisas, seríamos levados, por meio da indução, à conclusão de que duas coisas mais duas outras coisas sempre somariam quatro coisas. Entretanto, se esta fosse a fonte de nosso conhecimento de que dois mais dois são quatro, para nos persuadir de sua verdade procederíamos de modo diferente de como o fazemos na realidade. De fato, são necessários vários exemplos para nos fazer pensar abstratamente o dois, em vez de duas moedas, dois livros, duas pessoas ou qualquer outra espécie de dois. Mas a partir do momento em que somos capazes de libertar nossos pensamentos de particularidades irrelevantes, somos capazes de ver o princípio geral segundo o qual dois mais dois são quatro; vemos que um exemplo qualquer é típico e que o exame de outros exemplos torna-se desnecessário (*1).

A mesma coisa é exemplificada pela geometria. Se quisermos demonstrar alguma propriedade de todos os triângulos, traçamos um triângulo e raciocinamos sobre ele; mas podemos evitar fazer uso de qualquer propriedade que ele não partilha com todos os demais triângulos e, assim, a partir do nosso caso particular, obtemos um resultado geral. Não sentimos, na verdade, que nossa certeza de que dois mais dois são quatro aumenta com novos exemplos. Pois, desde o momento em que vimos a verdade desta proposição, nossa certeza torna-se tão grande que é incapaz de aumentar ainda mais. Além disso, sentimos certa qualidade de necessidade na proposição “dois mais dois são quatro”, qualidade que está ausente até mesmo das mais atestadas generalizações empíricas. Estas generalizações continuam sempre sendo meros fatos: sentimos que poderia haver um mundo no qual elas seriam falsas, embora no mundo atual ocorra delas serem verdadeiras. Ao contrário, sentimos que em qualquer mundo possível dois mais dois serão quatro: este não é um mero fato, mas uma necessidade à qual deve conformar-se tudo o que é real e possível.

Isso pode se tornar mais claro se considerarmos uma generalização puramente empírica, tal como “Todos os homens são mortais”. É evidente que acreditamos nesta proposição, em primeiro lugar, porque não conhecemos nenhum caso de um homem que tenha vivido além de uma determinada idade e, em segundo lugar, porque parece que há bases fisiológicas para pensar que um organismo como um corpo humano deva, mais cedo ou mais tarde, perder a força. Negligenciando a segunda razão, e considerando simplesmente nossa experiência da mortalidade dos homens, é evidente que não nos contentaríamos com um só exemplo perfeitamente entendido de um homem que morre, ao passo que, no caso de “dois mais dois são quatro”, um exemplo basta, se o considerarmos cuidadosamente, para nos persuadir de que o mesmo deve ocorrer em qualquer outro caso. Assim, se refletirmos, podemos ser forçados a admitir que pode haver alguma dúvida, ainda que ligeira, sobre se todos os homens são mortais. Isso pode se tornar evidente se tentarmos imaginar dois mundos diferentes, em um dos quais existem homens que não são mortais, enquanto no outro dois mais dois são cinco. Quando Swift nos convida a considerar a raça dos Struldbrugs, os quais nunca morrem, é possível o consentimento de nossa imaginação. Mas um mundo onde dois mais dois são cinco parece achar-se num plano completamente diferente. Sentimos que este mundo, se existisse, subverteria todo o edifício de nosso conhecimento e nos reduziria a dúvida total.

O fato é que em simples juízos matemáticos como “dois mais dois são quatro”, e também em muitos juízos da lógica, podemos conhecer a proposição geral sem inferi-la de exemplos, apesar de habitualmente ser necessário algum exemplo para esclarecer o significado da proposição geral. É por isso que existe uma real utilidade no método de dedução, que vai do geral para o geral, ou do geral para o particular, assim como no método de indução, que vai do particular para o particular, ou do particular para o geral. É um velho debate entre os filósofos se a dedução nos dá conhecimento novo. Agora podemos ver que em certos casos, pelo menos, isso acontece. Se já sabemos que dois mais dois sempre são quatro, e se sabemos que Brown e Jones são dois, e também Robinson e Smith, podemos deduzir que Brown e Jones, e Robinson e Smith, são quatro. Este é um conhecimento novo, que não estava contido em nossas premissas, pois a proposição geral, “dois mais dois são quatro”, nunca nos disse que havia pessoas como Brown e Jones, Robinson e Smith, e as premissas particulares não nos diziam que fossem quatro, enquanto que a proposição particular deduzida nos diz ambas estas c

Mas a novidade do conhecimento é muito menos certa se tomarmos a série de exemplos de dedução que sempre se oferece nos livros de lógica, ou seja, “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; portanto, Sócrates é mortal”. Neste caso o que realmente sabemos e que está fora de toda dúvida razoável é que certos homens, A, B, C, eram mortais, dado que, de fato, eles tinham morrido. Se Sócrates é um destes homens, é absurdo proceder de maneira indireta a partir de “todos os homens são mortais” para chegar à conclusão de que provavelmente Sócrates é mortal. Se Sócrates não é um dos homens sobre os quais nossa indução está baseada, é melhor argumentarmos diretamente a partir de nossos A, B, C, até Sócrates, do que dar a volta pela proposição geral, “todos os homens são mortais”. Pois a probabilidade de que Sócrates seja mortal é maior, segundo nossos dados, que a probabilidade de que todos os homens sejam mortais. (Isso é óbvio, pois se todos os homens são mortais, Sócrates também é; mas se Sócrates é mortal, não se segue disso que todos os homens sejam mortais.) Consequentemente, atingiremos a conclusão de que Sócrates é mortal com uma maior probabilidade de certeza se fizermos um raciocínio puramente indutivo do que se partirmos de “todos os homens são mortais” e então usarmos a dedução.

Isso ilustra a diferença entre as proposições gerais conhecidas a priori, como “dois mais dois são quatro”, e generalizações empíricas como “todos os homens são mortais”. Em relação às primeiras, a dedução é o modo correto de argumentar, enquanto que, em relação às segundas, a indução é sempre teoricamente preferível, e assegura uma maior confiança na verdade de nossa conclusão, pois todas as generalizações empíricas são mais incertas que seus casos particulares.

Acabamos de ver, pois, que existem proposições conhecidas a priori, e que entre estas estão as proposições da lógica e da matemática pura, assim como as proposições fundamentais da ética. O problema que irá nos ocupar a seguir é este: Como é possível que exista um conhecimento deste género? E, de modo mais particular, como pode haver conhecimento de proposições gerais nos casos em que não examinamos todos os exemplos, e na realidade nunca os examinaremos todos, porque seu número é infinito? Estes problemas, suscitados pela primeira vez pelo filósofo alemão Kant (1724-1804), são muito difíceis, e historicamente muito importantes.

Nota:
(*1) Cf. A. N. Whitehead, Introduction to Mathematics (Home University Library).

Bertrand Russell. Os problemas da filosofia. 
Trad. Jaimir Conte. Florianópolis: 2005



                                            Lola

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