O MANUEL
O currículo do Professor Sobrinho Simões fala por si. Mas não fala dele; do Manuel. Que todas as manhãs demanda Faculdade, Hospital e Ipatimup, mas também corre para a cozinha edipiana de Arouca; e nos recebe no relvado de Âncora, já embrenhado no volumoso Expresso. Nos últimos anos, várias vezes me pediram que falasse dele, com uma evolução curiosa do discurso – o “por serem amigos” deu lugar ao “por serem como irmãos”.
Esse upgrade ternurento apoia-se, em última instância, em palavras suas, ofereceu-mas num almoço da Confraria das Tripas. Eu limitei-me a dizer uma dessas graçolas com que os homens vestem os momentos de ternura, vista como pouco macha. E contudo, foi uma total surpresa ouvi-lo a céu aberto. Porque ser o Manuel a assumir a profunda cumplicidade que nos une vinha ao arrepio do que são as nossas personalidades - mais recatada na expressão dos afectos a dele; mais histriónica e capaz de episódios de strip tease afectuoso a minha.
Recordei o momento há meses atrás, quando me deu a notícia de que lhe fora diagnosticado um sarcoma, deixando-me em choque, às voltas com pensamento egoísta – “não estou preparado para o perder, nunca vou estar”. Na continuação do telefonema, dei comigo a abençoar em silêncio um aneurisma femoral e a respectiva intervenção. O pânico remetera-os para a prateleira da gripe ou do apêndice inflamado; decretei-o a coberto de qualquer percalço com uma inconsciência apenas justificada pelo wishful thinking do amigo, temperado pela ignorância médica do psiquiatra.
Na véspera da intervenção, um trio reuniu-se em amena cavaqueira no Hospital de S. João – o Manuel, eu e o Rui Mota Cardoso, cuja ausência é a única mágoa que ensombra esta cerimónia, órfã do seu brilho intelectual e acerado senso de humor. Quando saímos, agradeceu a visita, num jeito hesitante de nos abraçar sem o fazer. E lá nos viemo embora, pela enésima vez tentando elaborar uma estratégia eficaz para o convencer a abrandar o ritmo de trabalho. Sem qualquer esperança de astúcia recém-nascida ou epifania laica, de acordo num lamento, meigo, quase orgulhoso – “ele é incorrigível”.
Nunca mencionado em público foi o facto de o nosso trajecto de cinquenta anos, reforçado pelo emaranhar dos herdeiros e respectivas tribos, me parecer de militante optimismo nos tempos da Faculdade de Medicina. Por falta de comparência minha. Passo a explicar porquê. O Manuel era o aluno favorito de meu Pai, para quem a inteligência era um livre-passe vitalício para a sua estima. Recatado nos afectos como o Manuel, em criança e adolescente sempre lhe observei com a maior ambivalência a adoração incondicional por minha Mãe e o Avô presidente. À minha suspeita de ser o vértice menor do triângulo edipiano juntava-se o incómodo pela omnipresença de um homem que seria de profunda ingenuidade declarar morto por ter morrido – o Avô presidente vivia connosco e sobre todos os assuntos debitara sentença inatacável, humor corrosivo ou ternura sem rival.
Para quem crescera nessa insegurança, não foi difícil construir uma sólida inveja do Manuel. Não por ser o mais brilhante de todos nós, também eu venerava a inteligência, ainda hoje “ouvi-lo pensar” é um prazer estético sem preço. Mas por ser gostado. E um dia, meu Pai fez uma declaração surpreendente - o Manuel não teria 20 no exame que se aproximava, a informação sobre o ano lectivo fazia suspeitar de vida a mais e estudo a menos, tratava-se de uma questão de justiça! Rancoroso, lembro-me de murmurar um “veremos” que escandalizou a decisão de meu Pai, irrevogável avant la lettre. O silêncio dele ao jantar tresandava a esquiva, falar de culpa seria um exagero, vivia em alegre comunhão com eventuais pecadilhos. Saí eu à estacada – “então que nota teve o teu menino?”. O súbito reforço do interesse pela sopa dizia tudo, mas ele usou o carimbo das palavras – “vinte”. E antes de me permitir sorriso escarninho, acusação de incoerência ou lamento clandestino de filho ciumento, acrescentou, com brilho nos olhos que não ficaria mal na canção do Sérgio – “falámos do Jean Jacques Servan- Schreiber, ele já leu o livro, o Défi americain.”.
Eu nem ouvira falar da obra… Juntemos-lhe o facto de, anos mais tarde, ser incorporado por engano nas Forças Armadas e aí tropeçar no Manuel, ainda por cima a título voluntário!, pois os seus bamboleantes joelhos o eximiam de todo o serviço. Consequência imediata? A sua majestática média de curso presenteava-o com a vaga no Porto que eu cobiçava, recebi ordem de marcha para Bracara Augusta. E no entanto, nessa altura, a cumplicidade era já evidente, peço-lhes que imaginem uma espécie de Lennon/McCartney sem talento musical.
Numa das primeiras noites nas Caldas da Rainha o Manuel, divinamente aborrecido, chamou-me à sua maneira, só sua!, mais ninguém a utiliza – “Ó Vaz, anda comigo!”. E ei-lo a entrar na messe dos oficiais, perante o horror ultrajado dos ditos cujos, e a perguntar: “arranja-se dois parceiros para um bridge?”. Não fui capaz de lhe querer mal pelo raspanete do capitão, que do alto de um olhar fulminante explicou a importância do respeito pelas hierarquias e a tonalidade anárquica da nossa incursão. Pelo contrário!, sobrevivemos a ela com uma sensação adolescente de liberdade e um esquema de funcionamento que persiste até hoje – ele comanda; eu desempenho o papel de um grilo falante resmungão, propenso ao remoque e de ética duvidosa.
Poderia contar-vos muitos episódios dessa cumplicidade. Uns divertidos, como a sua resposta ao colega que dirigia o Hospital Militar do Porto. Aterrorizado pelo futuro próximo, feito de medicina pura e dura, eu ensaiei protesto que me livrasse das Juntas Médicas – “já sou mais psiquiatra do que clínico geral”. Apenas para ouvir o Manuel subir a parada – “e eu só os sei diagnosticar depois de mortos”. Outros, que desencadearam em mim profunda gratidão, como o extraordinário tacto revelado no lidar com a minha depressão, deixando claro que respeitava o meu afastamento da vida social, mas com porta e braços sempre abertos. Para não falar do que mais tarde me chegou aos ouvidos – perante os que me vaticinavam um futuro crepuscular o Manuel fazia questão de reafirmar a sua confiança na minha completa recuperação.
Mas hoje, porque o dia é muito especial, falarei de um outro momento. As tribos em Vila Praia de Âncora, a ritual futebolada na praia - em que ele era acusado de batota e prepotência pelos próprios filhos! - e o regresso guloso a casa e almoço. Na marginal, um carro não atropelou o seu João por mero acaso. Nessa noite, a minha insónia não faltou à chamada e apercebi-me de que havia luz no andar de baixo. O Manuel estava sozinho. Nunca lhe surpreendera aquela expressão no olhar, não voltei a vê-la depois. Não era só o olhar, mas ele todo, invadido pelo desamparo. Limitou-se a dizer “não consigo dormir”.
Nesse tempo eu ainda não conhecia o poema de Amalia Bautista, que hoje em dia encerra todos os espectáculos com que o Júlio Resende me presenteia. Procurando encontrar o que verdadeiramente conta na vida, ela vai ao cerne da questão, dizendo: “E ao fim são pouquíssimas as coisas que em nossa vida a sério nos importam: poder amar alguém, sermos amados e não morrer depois dos nossos filhos”. O Manuel estivera demasiado perto de sofrer o golpe mais obsceno e anti-natural que a vida nos pode assestar. Não havia nada a dizer. Senti o privilégio que me concedia ao partilhar aquele silêncio comigo. Devia ter adivinhado que éramos já irmãos de afecto, mas não tinha vivido o suficiente.
Aos 68, percebo que o resto do poema assenta como uma luva à nossa relação. Reza assim: “Ao fim são muito poucas as palavras que nos doem a sério e muito poucas as que conseguem alegrar a alma. São também muito poucas as pessoas que tocam nosso coração e menos ainda as que o tocam muito tempo”.
Manuel, obrigado por estes cinquenta anos. Têm sido, para mim, um respeitável privilégio e um descarado gozo. Mesmo sobrevivendo, enroscado no fundo dos meus neurónios, um adolescente ciumento. Que fez questão de nunca ler o Défi americain…
Texto do Prof. Julio Machado Vaz.
Este MANUEL também é um pouco nosso!
De vez em quando, cruzo-me com ele na rua da sua casa de família!
Simplicidade...
Um senhor!
Lola
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