Conto de Natal
2017
Mãe de Natal
Gosto de ser Mulher!
Adoro, sobretudo, ser Mãe!
Reconheço porém, todo o emaranhado de
sentires e existires nesta caminhada ingreme, neste percurso sinuoso de
potenciar, quase que recorrentemente, momentos de elevada e delicada ternura
com pedaços de tempo de um sofrimento amargamente atroz!
De que são feitos os sonhos de Mulher?
Pergunto-me, demasiadas vezes, em
alpendres que me protegem dos cinzentos e frios dias que antecedem e precedem os
dias de Natal, se o imaginário comporta tanto desejo, se o pensamento suporta
tanto orgulho desmedido, se a alma colorida não deixará extravasar tanto mar de
possibilidades inventadas e docemente esperançadas!
Os dias de uma mulher envolvem
secretos e indizíveis medos, mágoas escurecidas pelo tempo, enormes lembranças
de momentos idos e, talvez, não vividos, loucuras efémeras, vagueza de
felicidades, momentâneos lampejos do inefável!
Em choros de violência ensurdecida
pela ameaça intimidatória, gritamos a prepotência que revolta e enfraquece a
nossa dignidade de Pessoa, envolvidas em corpo rosáceo de Mulheres!
Dentro de uma Mulher cabem todas as
mudanças antecipadas, esperanças de utopia, desprazeres indesejados,
inseguranças recorrentes…desenlaces incompreendidos!
Junho de Verão!
Naquele mês estivemos, por razões de
serviço na escola, mais juntas, mais necessariamente próximas em diálogos de
vida e família que aliava sorrisos e inquietudes demasiadamente angulosas!
Flor era uma delícia de Mulher!
De atitude aberta ao mundo, de voz
encantadoramente doce e serena, a todos cativava pelo seu caracter acetinadamente
maternal ou, apenas, de pessoa invulgar e, improvavelmente, boa! Nela sempre
vislumbrei a incomensurabilidade da ligação à família, aos filhos, o seu amor
estonteante por todos aqueles que a rodeavam!
Flor, sem o saber, fazia-me muita,
mesmo muita falta…mas naquele dia teve de ir embora e agora rareavam os
encontros dialogados, embora a distancia onde vivíamos fosse a pouco mais que
uma centena de metros, se tanto!
Muito comedida na sua vida
profissional e familiar, era com enorme orgulho que, de vez em quando a via de
mão dada com Pedrinha, a neta que já iniciara, em si mesma, o prolongamento dos
coloridos laços dos seus filhos. Pedrinha era a imagem ternurenta do papá. De
carita redonda e olhos verde azeitona, sorria com desenvoltura e no seu
vocabulário rico e educação esmerada, cumprimentava-me e falava dos seus gostos
de menina de infância já convertida em interrogação de sentido(s) de e para a
vida!
Lembro bem…
naquela quarta feira, o telemóvel
tocou e Pedrinha antecipou um sorriso desmedido para ouvir a voz daquele de
quem tanto gostava mas que as circunstâncias não deixavam aproximar mais que
uns exíguos quatro minutos de partilha de voz inebriadas de amor e muita, muita
saudade. Afastei-me um pouco para não hipotecar a privacidade dos afectos que,
em meu entender, não têm que ser minimamente vulgarizados, sob pena de
resultarem numa mediocridade pouco consentânea com lugares da infância!
Antes, porém, de sair da sala onde nos
encontrávamos, disse a Pedrinha:
-Diga-lhe que lhe envio um abraço… e
aí senti o retorno de um afecto verdadeiramente distante.
Como lembra o filósofo espanhol Ortega y Gasset “Nós somos nós e as nossas circunstâncias”, cada vida cada
ser, tem de desdobrar-se, ao longo da existência num conjunto de condicionantes
que nos recebem e um reportório de possibilidades que, de forma arriscada mas
não menos exuberante, teremos de enfrentar. Cada vida é em si mesma
problemática e problematizante, grávida de sentidos futuros, inventando o seu
próprio futuro.
Porém, para
Flor o pretérito da sua vida e de Pedrinha era assustadoramente saudoso!
Fora um dia de
Outubro que lhes sobressaltara a existência…
Novembro
continuara dramaticamente tenebroso e inseguro!
Flor não queria
mediatismos, exigia respeito e privacidade mas o mundo estará sempre sedento de
“circo”, de notícias, de mediatismos que vendem e a ela não lhe concediam o
sempre almejado recato que irremediavelmente a caracterizava!
Um dos seus
fora privado de liberdade!
Não podia
acreditar. Como podia ser…a vida que é e que podia ser estava ameaçada,
brutalmente endurecida, fatalmente retalhada pela ausência forçada do seu amor
incondicional – o seu filho Mar.
Daí para a frente restavam-lhe as visitas, os
sorrisos, a força que se tem de partilhar mesmo quando escasseia, o encontro
entre Flor, Pedrinha e o Mar!
Eram tempos
espinhosos para todos, mas Flor nunca desistia. Quinzenalmente fazia o caminho ansiosamente
longo para, através de um vidro, poder olhar, falar, sorrir, talvez colocar a
sua mão sobre a mão do seu filho Mar que nem mesmo o vidro do interdito evitava
que sentisse o brilho do seu grande amor!
Ninguém elege o
seu mundo, nem sei bem se há destino e como conciliar esta possibilidade com o
livre-arbítrio! Sei que perante as circunstâncias e a decisão há que,
incansavelmente, assumirmo-nos como projecto que não se pode equiparar, de
forma alguma, à mecânica.
Agora Flor,
Pedrinha e Mar estavam disparados em existências amargamente distantes mas
nunca descansadas e muito menos desistidas! Ambos estariam dispostos e forçados
a exercitar a liberdade dos afectos nos momentos em que a interdição pudesse
permitir!
De que são feitos os sonhos de uma
Mãe?
Outono de Novembro!
Início do mês que traz consigo o
enfrentamento, os testemunhos, a prova, o “circo mediático”, tribunal,
recordação, amor incondicional de mãe!
Chove!
Acordo pela manhã e o meu pensamento
desliza, imediatamente, para Flor e Pedrinha. Como estarão? Que ansiedades
vivem? Que amarguras sentem? Que situações e decisões antecipam? Sim, porque
ali está Mar- o amor incondicional de Flor, o papá querido de Pedrinha, um ser
que nos faz reflectir acerca da fronteira ténue entre o comportamento
quotidiano vulgarmente apelidado de “normal” e um outro que, muitas vezes
poderemos não conseguir explicar, mesmo que para o senso comum o inexplicável
seja sempre, imediata e superficialmente, entendível!
Hoje queria estar contigo, Flor!
Minha querida Mãe sem Natal!
Para te dizer que separar-se de um
filho é uma dor infinita, para te abraçar e partilhar o sentir de mãe que nos
transforma em seres de uma resistência insuperável!
Para te dizer que acredito, acredito
mesmo que um dia esse vidro que vos separa se vai estilhaçar para que e,
irremediavelmente, tu, o Mar e a Pedrinha possam sentir-se no calor do vosso
grande amor!
Para quando o Mar azul e as Pedrinhas
brincando na areia?
Para quando a Mãe de Natal?
Nota
Biográfica
Rosa
Sousa ou LOLA como é tratada pelos familiares e alunos, nasceu em 1957, no
Porto. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto desde Julho de 1981, é mestre em Filosofia da Educação pela mesma universidade
desde Abril de 2004. Professora de Filosofia na Escola Secundária de Arouca é
autora de dois blogues: "
Lola e a Filosofia", dirigido ao apoio dos alunos e "O Mar e a
Filosofia" onde revela
um carácter mais pessoal, intimista e apaixonante. Neste ano letivo está
a desenvolver um projeto de “Filosofia para crianças” com alunos dos 1° ano,
uma experiência que pretende continuar no sentido de contribuir para o
desenvolvimento de um pensamento livre e autónomo! Curiosa, exigente, tolerante,
atenta, interessada, cuidada, inconformada, comprometida e empenhada
adora ler, escrever, viajar, conversar, ouvir musica...e demora-se com a obra
de Kant e com o colorido silêncio do MAR!
O Abraço é a manifestação de afecto
que mais a encanta e no qual gostaria de parar o tempo!
Lola
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