domingo, 17 de dezembro de 2017

Conto de Natal



Conto de Natal
2017

Mãe de Natal



Gosto de ser Mulher!
Adoro, sobretudo, ser Mãe!
Reconheço porém, todo o emaranhado de sentires e existires nesta caminhada ingreme, neste percurso sinuoso de potenciar, quase que recorrentemente, momentos de elevada e delicada ternura com pedaços de tempo de um sofrimento amargamente atroz!

De que são feitos os sonhos de Mulher?
Pergunto-me, demasiadas vezes, em alpendres que me protegem dos cinzentos e frios dias que antecedem e precedem os dias de Natal, se o imaginário comporta tanto desejo, se o pensamento suporta tanto orgulho desmedido, se a alma colorida não deixará extravasar tanto mar de possibilidades inventadas e docemente esperançadas!
Os dias de uma mulher envolvem secretos e indizíveis medos, mágoas escurecidas pelo tempo, enormes lembranças de momentos idos e, talvez, não vividos, loucuras efémeras, vagueza de felicidades, momentâneos lampejos do inefável!
Em choros de violência ensurdecida pela ameaça intimidatória, gritamos a prepotência que revolta e enfraquece a nossa dignidade de Pessoa, envolvidas em corpo rosáceo de Mulheres!
Dentro de uma Mulher cabem todas as mudanças antecipadas, esperanças de utopia, desprazeres indesejados, inseguranças recorrentes…desenlaces incompreendidos!
Junho de Verão!
Naquele mês estivemos, por razões de serviço na escola, mais juntas, mais necessariamente próximas em diálogos de vida e família que aliava sorrisos e inquietudes demasiadamente angulosas!
Flor era uma delícia de Mulher!
De atitude aberta ao mundo, de voz encantadoramente doce e serena, a todos cativava pelo seu caracter acetinadamente maternal ou, apenas, de pessoa invulgar e, improvavelmente, boa! Nela sempre vislumbrei a incomensurabilidade da ligação à família, aos filhos, o seu amor estonteante por todos aqueles que a rodeavam!
Flor, sem o saber, fazia-me muita, mesmo muita falta…mas naquele dia teve de ir embora e agora rareavam os encontros dialogados, embora a distancia onde vivíamos fosse a pouco mais que uma centena de metros, se tanto!
Muito comedida na sua vida profissional e familiar, era com enorme orgulho que, de vez em quando a via de mão dada com Pedrinha, a neta que já iniciara, em si mesma, o prolongamento dos coloridos laços dos seus filhos. Pedrinha era a imagem ternurenta do papá. De carita redonda e olhos verde azeitona, sorria com desenvoltura e no seu vocabulário rico e educação esmerada, cumprimentava-me e falava dos seus gostos de menina de infância já convertida em interrogação de sentido(s) de e para a vida!
Lembro bem…
naquela quarta feira, o telemóvel tocou e Pedrinha antecipou um sorriso desmedido para ouvir a voz daquele de quem tanto gostava mas que as circunstâncias não deixavam aproximar mais que uns exíguos quatro minutos de partilha de voz inebriadas de amor e muita, muita saudade. Afastei-me um pouco para não hipotecar a privacidade dos afectos que, em meu entender, não têm que ser minimamente vulgarizados, sob pena de resultarem numa mediocridade pouco consentânea com  lugares da infância!






Antes, porém, de sair da sala onde nos encontrávamos, disse a Pedrinha:
-Diga-lhe que lhe envio um abraço… e aí senti o retorno de um afecto verdadeiramente distante.
Como lembra o filósofo espanhol Ortega y Gasset “Nós somos nós e as nossas circunstâncias”, cada vida cada ser, tem de desdobrar-se, ao longo da existência num conjunto de condicionantes que nos recebem e um reportório de possibilidades que, de forma arriscada mas não menos exuberante, teremos de enfrentar. Cada vida é em si mesma problemática e problematizante, grávida de sentidos futuros, inventando o seu próprio futuro.
Porém, para Flor o pretérito da sua vida e de Pedrinha era assustadoramente saudoso!
Fora um dia de Outubro que lhes sobressaltara a existência…
Novembro continuara dramaticamente tenebroso e inseguro!
Flor não queria mediatismos, exigia respeito e privacidade mas o mundo estará sempre sedento de “circo”, de notícias, de mediatismos que vendem e a ela não lhe concediam o sempre almejado recato que irremediavelmente a caracterizava!
Um dos seus fora privado de liberdade!
Não podia acreditar. Como podia ser…a vida que é e que podia ser estava ameaçada, brutalmente endurecida, fatalmente retalhada pela ausência forçada do seu amor incondicional – o seu filho Mar.
 Daí para a frente restavam-lhe as visitas, os sorrisos, a força que se tem de partilhar mesmo quando escasseia, o encontro entre Flor, Pedrinha e o Mar!
Eram tempos espinhosos para todos, mas Flor nunca desistia. Quinzenalmente fazia o caminho ansiosamente longo para, através de um vidro, poder olhar, falar, sorrir, talvez colocar a sua mão sobre a mão do seu filho Mar que nem mesmo o vidro do interdito evitava que sentisse o brilho do seu grande amor!
Ninguém elege o seu mundo, nem sei bem se há destino e como conciliar esta possibilidade com o livre-arbítrio! Sei que perante as circunstâncias e a decisão há que, incansavelmente, assumirmo-nos como projecto que não se pode equiparar, de forma alguma, à mecânica.
Agora Flor, Pedrinha e Mar estavam disparados em existências amargamente distantes mas nunca descansadas e muito menos desistidas! Ambos estariam dispostos e forçados a exercitar a liberdade dos afectos nos momentos em que a interdição pudesse permitir!
                                                                                                                                                    
De que são feitos os sonhos de uma Mãe?
Outono de Novembro!
Início do mês que traz consigo o enfrentamento, os testemunhos, a prova, o “circo mediático”, tribunal, recordação, amor incondicional de mãe!
Chove!
Acordo pela manhã e o meu pensamento desliza, imediatamente, para Flor e Pedrinha. Como estarão? Que ansiedades vivem? Que amarguras sentem? Que situações e decisões antecipam? Sim, porque ali está Mar- o amor incondicional de Flor, o papá querido de Pedrinha, um ser que nos faz reflectir acerca da fronteira ténue entre o comportamento quotidiano vulgarmente apelidado de “normal” e um outro que, muitas vezes poderemos não conseguir explicar, mesmo que para o senso comum o inexplicável seja sempre, imediata e superficialmente, entendível!
Hoje queria estar contigo, Flor!
Minha querida Mãe sem Natal!
Para te dizer que separar-se de um filho é uma dor infinita, para te abraçar e partilhar o sentir de mãe que nos transforma em seres de uma resistência insuperável!

Para te dizer que acredito, acredito mesmo que um dia esse vidro que vos separa se vai estilhaçar para que e, irremediavelmente, tu, o Mar e a Pedrinha possam sentir-se no calor do vosso grande amor!
Para quando o Mar azul e as Pedrinhas brincando na areia?
Para quando a Mãe de Natal?


Nota Biográfica

Rosa Sousa ou LOLA como é tratada pelos familiares e alunos, nasceu em 1957, no Porto. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto desde Julho de 1981, é mestre em Filosofia da Educação pela mesma universidade desde Abril de 2004. Professora de Filosofia na Escola Secundária de Arouca é autora de dois blogues: " Lola e a Filosofia", dirigido ao apoio dos alunos e "O Mar e a Filosofia" onde revela um carácter mais pessoal,  intimista e apaixonante. Neste ano letivo está a desenvolver um projeto de “Filosofia para crianças” com alunos dos 1° ano, uma experiência que pretende  continuar no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um pensamento livre e autónomo! Curiosa, exigente, tolerante, atenta, interessada, cuidada,  inconformada, comprometida e empenhada adora ler, escrever, viajar, conversar, ouvir musica...e demora-se com a obra de Kant e com o colorido silêncio do MAR! 
O Abraço é a manifestação de afecto que mais a encanta e no qual gostaria de parar o tempo!



                                            Lola

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