O racionalismo de Descartes
1. Vida e obra
René
Descartes nasceu em 31 de março de 1596, na pequena cidade de La Haye,
atualmente Descartes, em França. Em 1606 entrou para o colégio jesuíta de La
Flèche, onde estudou gramática, retórica, dialética, matemática e filosofia
escolástica, dominante na época, e que consistia num misto dos ensinamentos da
Bíblia e da filosofia e ciência de Aristóteles. Depois de sair de La Flèche, em
1614, frequentou a Universidade de Poitiers, onde, em 1616, obteve a
licenciatura em Direito. Querendo ver o mundo, a partir de 1618, viajou alguns
anos pela Europa como soldado. Durante este período, fez as suas primeiras
investigações sobre matemática e física e, em 1619, enquanto retido pelo
Inverno, na Alemanha, teve a visão de uma ciência ou método universal e, na
noite de 10 de novembro, três sonhos sucessivos convenceram-no da aprovação
divina para o seu projeto. Sabendo que era ainda demasiado jovem e imaturo para
poder levar a cabo este projeto, decide esperar alguns anos e dedica-se a
viajar (Alemanha, Suíça, Itália) e a resolver problemas matemáticos e físicos
de caráter prático, até que, em 1628, redige as Regras para a Direção do
Espírito, obra sobre o método, que ficará inacabada e só será
publicada depois da sua morte. Em 1629 abandona definitivamente a França e instala-se
na Holanda, onde vive até 1649. Aí dedica-se principalmente à física e escreve
o Tratado do
Mundo, em que defende uma conceção mecanicista da realidade, mas
que retira de publicação ao saber da condenação de Galileu pela Inquisição, em
1633, por defender a teoria heliocêntrica de Copérnico. Em 1637, publica em
francês três ensaios, Dióptrica,
Meteóricos e Geometria, em que expõe o essencial da sua física e do
que é agora conhecido como geometria analítica, uma descoberta sua, que faz
acompanhar pelo Discurso
do Método, uma espécie de prefácio em que explica o seu percurso
intelectual e o método que está na origem das teorias apresentadas nos ensaios
que constituem a obra. Quatro anos mais tarde, em 1641, publica em latim a sua
obra-prima filosófica, as Meditações
sobre Filosofia Primeira, em que expõe os fundamentos metafísicos
da sua física e da sua biologia. A obra circulou primeiro em manuscrito entre
vários filósofos e cientistas da época, que escreveram objeções a que Descartes
depois respondeu. Em 1644 publica os Princípios
da Filosofia, obra que é uma espécie de súmula da sua filosofia e
da sua ciência, e que ele pretendia ver substituir os compêndios sobre
Aristóteles nas escolas. A última obra publicada durante a sua vida foi o Tratado das Paixões da Alma,
que saiu em 1649, e é o fruto da troca de correspondência com a princesa Isabel
da Boémia acerca das relações entre a alma e o corpo. Nesse mesmo ano Descartes
troca a Holanda pela Suécia a instâncias da rainha Cristina, que queria
aprender a sua filosofia. As lições de filosofia da rainha decorriam, no
entanto, às 5 da manhã e Descartes, de saúde frágil e habituado a passar as
manhãs na cama, não suportou o rigoroso inverno sueco, contraiu pneumonia e
morreu a 11 de fevereiro de 1650.
2. O projeto de Descartes
2.1
Contexto histórico
O
interesse do Renascimento pela cultura clássica tornou acessível aos europeus o
pensamento não-aristotélico da Antiguidade. As ideias de Platão e das
principais escolas filosóficas do período helenístico — o estoicismo, o
epicurismo e o ceticismo —, que durante séculos tinham permanecido mais ou
menos esquecidas ou ignoradas, devido à enorme influência de Aristóteles sobre
o pensamento medieval, tornaram-se conhecidas e discutidas nos centros cultos
da Europa, e tiveram um profundo impacto sobre o pensamento europeu dos séculos
XVI e XVII. O mesmo aconteceu com o pensamento de Pirro de Élis, que se tornou
conhecido através das obras de Sexto Empírico e esteve na origem do
ressurgimento do ceticismo. De igual modo, as ideias de Epicuro, apresentadas
por Lucrécio, no poema Rerum
Natura, tornaram-se populares nesta época e estiveram na base do
reaparecimento de conceções mecanicistas e atomistas da matéria e do mundo.1
Estes
dois factores provocaram o enfraquecimento da conceção medieval do mundo, que
era ainda dominante nas principais universidades da Europa, e levaram Descartes
a pensar que esta conceção era completamente inadequada.
2.2 A
rejeição do pensamento aristotélico-medieval
Quais
as razões de Descartes para rejeitar a forma medieval de compreender e explicar
o mundo?
Em
primeiro lugar, Descartes achava as teorias dos filósofos medievais duvidosas e
incertas, isto é, que, uma vez que não tinham o grau de certeza que ele
considerava necessário para que fossem conhecimento, era possível duvidar da
sua verdade. Segundo ele, isto seria a uma consequência da teoria do conhecimento
que as suportava, que tinha também as suas raízes no pensamento de Aristóteles,
e afirmava que todo o conhecimento tem origem na experiência.2 Ao
contrário daquilo que pensavam os medievais, Descartes não pensava que a
experiência pudesse garantir a verdade das nossas crenças e, portanto, julgava
que a experiência não constitui uma base sólida e segura para o conhecimento.
Em
segundo lugar, Descartes discordava completamente da metafísica tradicional.
Como a maioria das pessoas da época, ele aceitava as crenças essenciais do
Cristianismo — a existência de Deus e a imortalidade da alma —, mas recusava o
essencial da metafísica de Aristóteles e dos medievais, que dependia de vários
tipos de causas e de um infindável número de substâncias e de distinções
conceptuais, de que Descartes não via nem a necessidade nem a utilidade.3 Embora
não recuse a noção de substância, ele vai aceitar apenas dois tipos de
substâncias e eliminar a maior parte do aparato conceptual medieval.
Por
último, Descartes recusa também a ciência medieval, em particular, a física,
que é, no essencial, uma vez mais, a de Aristóteles. Esta física recorria a
diferentes tipos de causas para explicar os objetos. Uma estátua, por exemplo,
tem uma causa formal (a forma da estátua), uma causa material (a matéria de que
é feita), uma causa eficiente (o artista), e uma causa final (o propósito ou
finalidade com que é feita), que em última instância determina o que ela é. A
física de Aristóteles é, por este motivo, uma física finalista: tudo o que
acontece é explicado pelo seu propósito ou finalidade. Descartes recusa esta
explicação por intermédio de causas finais e substitui-a por uma física
mecanicista, que, tal como a física atual, aceita apenas a causa eficiente e
explica os fenómenos a partir de um número muito reduzido de leis da natureza.
Podemos
sintetizar as principais diferenças entre o pensamento medieval e o de
Descartes no quadro seguinte:
PENSAMENTO
MEDIEVAL
|
DESCARTES
|
|
Filosofia
do conhecimento
|
O
conhecimento (mesmo o matemático) tem origem nos sentidos.
|
O
conhecimento tem origem na razão e é constituído por verdades indubitáveis.
|
Metafísica
|
A
realidade é constituída por um grande número de substâncias.
|
A
realidade é constituída por um pequeno número de substâncias.
|
Ciência
|
Qualitativa
e finalista. Os acontecimentos são explicados com base em vários tipos de
causas.
|
Quantitativa
e mecanicista. Usa apenas a causa eficiente e um pequeno número de leis da
natureza para explicar os objetos físicos e os seres vivos.
|
2.3 A
filosofia como uma árvore
O que
acabámos de ver levou Descartes a estabelecer como objetivo substituir a
conceção aristotélico-medieval do mundo — empirista, finalista e geocêntrica —
por uma nova conceção do mundo — racionalista, mecanicista e heliocêntrica.
Para concretizar este objetivo, ele formula um conjunto de teorias de caráter
científico sobre o mundo, o homem e os animais, que depois procura fundamentar
com uma teoria do conhecimento e uma metafísica radicalmente diferentes das
medievais. Esta conceção do saber, em que as diferentes ciências são
justificadas pela metafísica, é bem ilustrada pela famosa metáfora da árvore:
[A] Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica,
o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências
que, se reduzem a três principais: a Medicina, a Mecânica e a Moral. (…)
Ora, como não é das raízes nem do tronco das árvores que se
colhe os frutos, mas apenas das extremidades dos ramos, a principal utilidade
da Filosofia depende daquelas suas partes que são aprendidas em último lugar. (Princípios de Filosofia,
p. 22.)
Assim,
para ele, a metafísica constitui o fundamento último de todo o conhecimento. É
da metafísica que se deduzem os princípios fundamentais da física, da qual
derivam, por sua vez, todas as outras ciências. Note-se, no entanto, que a
utilidade da Filosofia está nas ciências cujos conhecimentos têm uma aplicação
prática. A metafísica e a filosofia do conhecimento podem fornecer os
fundamentos indubitáveis do conhecimento, mas a importância da filosofia está
nos conhecimentos que permitem melhorar a forma como os seres humanos vivem.
2.4
Conhecimento e fundacionalismo
Descartes
pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e mostrar que existe
conhecimento. Para o fazer, ele vai defender duas teses fundamentais.
A
primeira é a tese de que só as crenças de cuja verdade não é possível duvidar
são conhecimento. Por exemplo, a afirmação «Ou o Porto ou o Sporting, ou o
Benfica ganham a Liga na próxima época» não constitui conhecimento. Embora a
probabilidade de esta afirmação ser verdadeira seja muito elevada — uma vez que
são geralmente estes clubes que ganham a Liga —, é sempre possível que seja
falsa. E se é sempre possível que seja falsa, não podemos estar absolutamente
seguros da sua verdade, e, portanto, não constitui um conhecimento.4 E,
obviamente, afirmações falsas também não constituem conhecimento. Só as
afirmações cuja verdade é indubitável são conhecimento.
A
segunda tese que Descartes vai defender é o fundacionalismo. A ideia base do
fundacionalismo é a de que justificamos as nossas crenças apelando a outras
crenças que são mais básicas, até chegarmos a crenças tão básicas que não seja
possível ou razoável procurar justificá-las através de outras crenças. Assim,
de acordo com o fundacionalismo há dois tipos de crenças, as básicas, ou
fundacionais, e as não-básicas, ou não-fundacionais. As crenças
não-fundacionais são crenças que, para que sejam consideradas conhecimento, têm
de ser justificadas por outras crenças. As crenças fundacionais, evidentemente,
são as crenças que justificam as crenças não-fundacionais. Para o
fundacionalismo, o conhecimento é como um edifício de crenças, em que as
crenças mais básicas suportam as outras, da mesma forma que os andares
inferiores de um edifício suportam os outros.5
Embora
haja várias formas de fundacionalismo, o de Descartes tem uma característica
que é essencial para o seu projeto de justificação das ciências, a saber, as
crenças básicas são autoevidentes, isto é, são verdades indubitáveis. Assim,
todas as crenças que sejam delas derivadas corretamente, ou que sejam
corretamente justificadas por seu intermédio, são também verdades indubitáveis
e, por isso, conhecimento. Dito isto, é fácil perceber qual a resposta de
Descartes ao argumento da regressão infinita dos céticos: o conhecimento
existe, porque é possível evitar a regressão infinita, uma vez que há crenças
que, por serem autoevidentes não precisam que outras crenças as justifiquem, e
podem justificar as crenças que precisam de justificação. É fácil também
perceber a estratégia de Descartes para provar que existe conhecimento: partir
de princípios indubitáveis e raciocinar de modo a que tudo o que seja derivado
desses princípios seja também indubitável. A estratégia de Descartes vai,
portanto, consistir em colocar na base do seu sistema verdades absolutamente
indubitáveis e, a partir delas, deduzir todas as outras verdades, de modo a
garantir que sejam também indubitáveis. Partindo de verdades indubitáveis,
Descartes pretende dar uma base completamente sólida ao conhecimento —
evitando, assim, o defeito que apontou ao saber medieval —, e, ao mesmo tempo,
eliminar a objeção dos céticos, pois essas verdades não precisam de ser justificadas
e justificam todas as outras que seja possível deduzir delas por processos de
raciocínio corretos. Esta estratégia de Descartes é claramente inspirada na
Matemática e, em particular, na geometria de Euclides (c. 300 a. C.). Na obra
Elementos, Euclides, a partir de cinco axiomas básicos, considerados
autoevidentes, prova um grande número de propriedades das figuras e dos sólidos
geométricos. Como Lars-Göran Johansson diz:
A contribuição de Euclides foi mostrar que as matemáticas do seu
tempo (e outras mais) poderiam ser logicamente deduzidas de um pequeno número
de axiomas, isto é, de afirmações que eram obviamente verdadeiras e não exigiam
justificação adicional. As matemáticas tornaram-se uma ciência dedutiva: a
partir de premissas seguras (axiomas) inferia-se conhecimento novo usando
regras lógicas precisas. Isto é o mesmo que dizer que uma prova matemática
confere certeza. Euclides foi tão bem sucedido com o seu método
axiomático-dedutivo que durante um longo período de tempo este método foi
considerado o arquétipo de como a ciência deveria proceder. (…)
As matemáticas axiomáticas de Euclides conduziram a um ideal, o
ideal da ciência axiomática, que pode ser caracterizado do seguinte modo:
- A
ciência visa atingir conhecimento certo, não meras crenças ou opiniões.
- Começa
estabelecendo axiomas, isto é, verdades tão óbvias que não requerem
justificação adicional.
- A
seguir deduz destes axiomas novas verdades usando métodos lógicos
precisos.
(Lars-Göran Johansson, Philosophy of Science for
Scientists, Cham: Springer, 2016, p. 9.)
O
projeto filosófico de Descartes segue de perto este modelo. Para o concretizar,
ele precisa de encontrar uma ou mais crenças capazes de desempenhar um papel
similar ao que os axiomas desempenham na geometria de Euclides. O próximo passo
de Descartes vai ser, portanto, encontrar essas verdades indubitáveis.
3. A
dúvida metódica
3.1
Começar de novo desde os primeiros fundamentos
Como
vai Descartes proceder para encontrar as verdades indubitáveis de que necessita
para justificar as suas teorias científicas?
Temos
muitas crenças, umas triviais, outras importantes, umas verdadeiras, outras
falsas e estamos habituados a rever e a abandonar as nossas crenças à medida
que descobrimos que são por alguma razão insatisfatórias. Talvez já tenhamos
acreditado que o Sol se move no céu de este para oeste todos os dias, mas
quando nos mostraram que isso não corresponde à realidade abandonámos essa
crença. Fizemos o mesmo com muitas outras crenças. E estamos dispostos a voltar
a fazê-lo se, e quando, soubermos que uma crença é falsa. Esta forma de
proceder é apropriada aos nossos objetivos. Estamos, em geral, satisfeitos com
as nossas opiniões, porque elas permitem-nos responder adequadamente à maior
parte das solicitações do dia a dia e, por isso, só as revemos em caso de
estrita necessidade.
Esta
estratégia, no entanto, não serve o propósito de Descartes de fundar as
ciências em bases completamente sólidas e seguras. Para realizar este objetivo,
ele precisa de encontrar verdades absolutamente indubitáveis a partir das quais
possa, ordenadamente, deduzir outras verdades, que, por isso, ficamos a saber
serem também indubitáveis. Ora, para encontrar estas verdades, pensa Descartes,
é necessário investigar metodicamente todas as crenças, começando pelas mais
básicas ou fundamentais, usando como princípio só aceitar como verdadeiras as
opiniões de que não haja a mínima razão para duvidar. Só deste modo, é possível
eliminar as opiniões que se revelem incapazes de resistir à dúvida, quer porque
sejam falsas quer porque a sua verdade não é indubitável.
Descartes
não pensa, portanto, que todas as nossas opiniões sejam falsas. Ele admite que
muitas das nossas crenças de que é possível duvidar sejam verdadeiras. Mas como
o seu objetivo é encontrar verdades indubitáveis, qualquer opinião da qual haja
razões para duvidar, por insignificantes que sejam, pode ser abandonada como se
fosse falsa. Também não pensa que seja necessário percorrer todas as opiniões
uma a uma e mostrar que são duvidosas ou falsas, o que seria, evidentemente,
impossível de fazer. Ele pensa que basta atacar os fundamentos ou princípios
dos quais as nossas opiniões derivam para pôr em questão todas essas opiniões.
Se esses princípios se revelarem duvidosos ou falsos, então é óbvio que todas
as opiniões que deles dependem são também duvidosas ou falsas.6 As
crenças que se revelem capazes de superar este teste indubitabilidade — isto é,
das quais seja absolutamente impossível duvidar — constituem as bases sólidas
nas quais todo o conhecimento vai ser fundado. É nisto que consiste o método
cartesiano da dúvida.
3.2
Primeiro nível da dúvida: o argumento das ilusões dos sentidos
A
maioria das pessoas pensa que o conhecimento tem origem nos sentidos e que os
sentidos são absolutamente fiáveis. Os filósofos costumam chamar a este ponto
de vista muito popular realismo de senso comum.7 O
realismo de senso comum é constituído por duas teses fundamentais:
a) a realidade existe de forma contínua e independente de nós;
b) conhecemos a realidade tal como ela é diretamente pelos
sentidos.
O
realismo de senso comum corresponde ao nosso ponto de vista de todos os dias.
De uma maneira geral, raciocinamos e agimos assumindo que existe um mundo
composto por objetos físicos, que os nossos sentidos nos mostram exatamente
como são. Se vemos um amigo nosso vestido com umas calças de ganga e uma
camisola vermelha não duvidamos de que o nosso amigo tenha, de facto, umas
calças de ganga e uma camisola vermelha vestidas. A teoria do conhecimento
medieval, como já vimos, está de acordo com esta crença de senso comum, segundo
a qual os sentidos são fiáveis e, portanto, uma fonte adequada de conhecimento.
Dado isto, é natural que Descartes comece a investigação sistemática das nossas
crenças pelas que têm origem nos sentidos e que o primeiro argumento a que
recorre, o argumento das ilusões dos sentidos, tanto vá pôr em questão o
realismo de senso comum como a tradição filosófica vigente. Nas Meditações
sobre a Filosofia Primeira, Descartes apresenta este argumento do modo
seguinte:
Porém, descobri que eles [os sentidos] por vezes nos enganam, e
é de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos
enganaram. (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, p. 107.)
O
argumento das ilusões dos sentidos tem por objetivo duvidar da fiabilidade dos
sentidos, isto é, pôr em causa que os sentidos são fiáveis e que nos mostrem os
objetos físicos como eles efetivamente são, e, como nos mostra o texto de
Descartes, consiste em afirmar que os sentidos enganam-nos, para daí concluir
que os sentidos não são fiáveis. Descartes dá exemplos deste tipo de enganos:
Com efeito, algumas vezes, mostravam-se de perto como quadradas
torres que de longe me parecem redondas, e enormes estátuas que se elevam nos seus
terraços não me pareciam grandes, vistas do rés-do-chão. (Meditações sobre a Filosofia
Primeira, p. 205.)
Nestes
e em outros casos semelhantes, os sentidos dão-nos informações contraditórias.
A conclusão a tirar destes casos, pensa Descartes, é que nenhuma crença com
origem nos sentidos é indubitável, uma vez que, mesmo quando os sentidos não
nos enganam, o facto de às vezes nos enganarem impede-nos de ter a certeza da
sua verdade. Por outras palavras, os sentidos não são uma fonte de conhecimento
acerca da natureza dos objectos físicos, porque nenhuma crença com origem nos
sentidos, mesmo quando verdadeira, está infalivelmente justificada.
3.3
Segundo nível da dúvida: o argumento dos sonhos
O
argumento das ilusões dos sentidos levanta dúvidas quanto à fiabilidade das
nossas perceções em algumas ocasiões especiais. Mas, na maior parte das
situações, podemos nós objetar, temos absoluta certeza da verdade das
informações que os sentidos nos fornecem. Posso eu duvidar de que estou agora
no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no computador? Percebe-se
que duvidemos das sensações que nos mostram as torres como redondas ou as
estátuas como pequenas, pois temos muitas outras sensações que estão em
conflito com elas. Mas isso não acontece, nem parece poder acontecer, agora que
inequivocamente percepciono as estantes e os livros, a secretária e o
computador, e todos os objetos que constituem o meu escritório. Como poderia
duvidar de que estou no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no
computador quando os meus diferentes sentidos inequivocamente o confirmam? A
resposta a esta objeção, que põe em causa a eficácia do argumento das ilusões
dos sentidos, é o argumento dos sonhos.
Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso
noturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o
roupão vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e
despido! Mas agora, observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta
cabeça que movo não está a dormir, voluntária e conscientemente estendo esta
mão e sinto-a; o que acontece quando se dorme não parece tão distinto. Como se
não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos
semelhantes! Por isso, se reflito mais atentamente, vejo com clareza que
vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros […]. (Meditações sobre a Filosofia
Primeira, p. 108.)
Já
todos sonhámos que algo está a acontecer, para depois descobrirmos tratar-se
apenas de um sonho. As imagens mentais que temos em certos sonhos são tão
idênticas às com origem nos objetos que somos levados a pensar que aquilo que
estamos a sonhar é real. Só quando acordamos é que, retrospetivamente,
percebemos ter-se tratado apenas de um sonho. Descartes pensa que esta
semelhança entre as perceções sonhadas e as reais mostra que, com base nos
sentidos, não é possível distinguir de forma absolutamente segura o sono da
vigília e, consequentemente, estarmos certos de que as perceções que estamos
agora a ter representam adequadamente à realidade.
Este
argumento de Descartes tem sido tão mal entendido que é conveniente tentar
explicá-lo bem. A principal dificuldade talvez seja que tendemos a pensar
imediatamente que temos a certeza de estar agora acordados e que nunca nos
ocorreu, quando acordados, que pudéssemos estar a dormir e a sonhar. Mas será
que temos mesmo a certeza? Podemos estar convencidos de que agora estamos
acordados, mas estarmos convencidos de que algo é verdade e termos a certeza de
que é verdade são duas coisas diferentes. Aquilo que o argumento de Descartes
pretende mostrar é que os nossos pensamentos em alguns sonhos são tão
semelhantes aos pensamentos que temos quando acordados, que, se compararmos
apenas esses pensamentos uns com os outros, não podemos ter a certeza absoluta
de que uns são sonhos e os outros são reais. E se não podemos ter a certeza
absoluta de que os nossos pensamentos atuais são reais, então não podemos dizer
que sabemos ou conhecemos, porque, como já vimos, para Descartes, só aquilo de
que estamos absolutamente certos é saber ou conhecimento.
Imaginemos
que alguém nos apresenta duas imagens exatamente iguais da Ponte 25 de Abril,
em Lisboa, e nos diz que uma foi tirada com uma câmera fotográfica e a outra
produzida com um software extremamente poderoso, capaz de originar imagens em
tudo semelhantes às melhores fotografias das melhores câmeras. Ao olharmos
atentamente para as duas imagens vemos que nada as distingue, que são em tudo
iguais. Podemos estar absolutamente seguros de qual é a fotografia? Não, mesmo
que alguém nos tenha fortemente convencido de que uma delas é a fotografia. O
mesmo se passa, pensa Descartes, com as nossas perceções que representam a
realidade e com o conteúdo de alguns dos nossos sonhos. São tão idênticos que
mesmo quando estamos firmemente convencidos de que umas representam a realidade
e as outras não, não podemos estar absolutamente seguros disso.
Por
consequência, mesmo quando acredito firmemente estar sentado à secretária e a
escrever no computador, não posso estar absolutamente seguro de que é isso de
facto o que está a acontecer. É, portanto, logicamente possível que esteja a
dormir e a sonhar, e que nada daquilo em que acredito naquele momento esteja
realmente a acontecer. Claro que é muito improvável e não acreditamos por um
momento que seja verdade. Isso, no entanto, não afeta o argumento de Descartes,
que depende apenas da possibilidade de algo ser verdade, não de que o seja
efetivamente. Se é logicamente possível que eu esteja a dormir e a sonhar,
então não é uma verdade indubitável que esteja sentado à secretária e a
escrever no computador.
O
argumento das ilusões dos sentidos põe em causa a nossa confiança nos sentidos,
porque estes às vezes enganam-nos. No entanto, o próprio Descartes reconhece
que isso acontece apenas em alguns casos muito especiais e que, portanto, o
argumento das ilusões dos sentidos não é suficiente para mostrar que os
sentidos não são a origem de verdades indubitáveis. O argumento dos sonhos
responde a esta dificuldade, levando a dúvida mais longe ao chamar a atenção
para que não existe nenhum critério que permita distinguir com absoluta certeza
quando estamos acordados de quando estamos a sonhar, o mesmo é dizer, as nossas
perceções reais das nossas perceções ilusórias dos sonhos. É óbvio que para
efeitos práticos do dia a dia a distinção que fazemos entre sonho e vigília é
adequada. Mas agora pretendemos saber se pela experiência podemos chegar a
verdades indubitáveis e, para isso, nenhuma dúvida pode subsistir. Ora, se não
posso estar completamente certo de que não estou a dormir e a sonhar, também
não posso estar seguro da verdade de nenhuma crença com origem na experiência
e, portanto, a experiência não é nunca uma fonte de verdades indubitáveis.
3.4
Terceiro nível da dúvida: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno
O
argumento das ilusões dos sentidos e o argumento dos sonhos levam o mais longe
possível as dúvidas acerca das nossas opiniões com origem nos sentidos. Se Descartes
tivesse apenas por objetivo mostrar que nenhuma crença com origem nos sentidos
é uma verdade indubitável, não precisaria de recorrer a nenhum outro argumento.
Uma vez admitida a possibilidade de estarmos a sonhar, todas as nossas crenças
com origem nos sentidos podem ser ilusórias. Mas Descartes não quer apenas
mostrar que os sentidos não são uma fonte de verdades indubitáveis; ele quer
também estender a dúvida às crenças com origem na razão, que são, para muitas
pessoas, a fonte de verdades indubitáveis. O exemplo mais óbvio de crenças com
origem na razão é o das Matemáticas. A verdade de proposições, como, por
exemplo, 2 + 2 = 4, não é determinada através da experiência e, portanto, estas
proposições não são postas em questão pelo argumento dos sonhos. Como o próprio
Descartes diz, quer estejamos acordados quer estejamos a dormir, dois mais três
são sempre cinco e um quadrado tem sempre apenas quatro lados. Assim, para
duvidar das proposições da Matemática, e em particular, da Aritmética e da Geometria,
Descartes vai recorrer a um outro argumento: o argumento do Deus enganador ou
do génio maligno.
Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo
a qual existe um Deus que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas
quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem
céu, nem corpos extensos, nem figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no
entanto, tudo isto me parecesse existir tal como agora? E mais ainda, assim
como concluo que os outros se enganam algumas vezes naquilo que pensam saber
com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as vezes que somasse
dois e três ou contasse os lados de um quadrado. (Meditações sobre a Filosofia Primeira,
pp. 110–111.)
Descartes
coloca agora a possibilidade de um Deus que é ao mesmo tempo criador, sumamente
poderoso e enganador. Um Deus assim pode ter-nos criado de forma a que nos
enganemos sempre que raciocinemos mesmo em relação àquilo que nos parece
completamente evidente.
Descartes
usa este argumento com dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, estender a
dúvida à existência das realidades físicas exteriores, uma vez que um Deus
sumamente poderoso e enganador tem a capacidade de fazer com que toda a
existência seja uma espécie de sonho ou criação nossa; e, em segundo lugar e
principalmente, mostrar que as proposições com origem na razão, como as da
Matemática, não são verdades indubitáveis, uma vez que Deus pode ter-nos criado
de modo a que nos enganemos sempre que façamos uma operação matemática simples.
Este é
um argumento muito forte, uma vez que consiste em colocar a hipótese da
existência de um deus, ou génio maligno, capaz de fazer o que quer que seja. É
evidente que Descartes nunca acreditou que um deus com estas caraterísticas
pudesse existir, mas, uma vez mais, a mera possibilidade é tudo aquilo de que
necessita. Se não podemos mostrar que a hipótese do Deus enganador é falsa,
então não podemos estar absolutamente certos da verdade de nenhuma das nossas
opiniões, seja das que têm origem na experiência, como a existência do mundo,
seja das que têm origem na razão, como as verdades da Aritmética e da
Geometria.
DÚVIDA
METÓDICA
|
|
Níveis de
dúvida
|
Resumo dos
argumentos
|
Argumento
das ilusões dos sentidos
|
"Os
sentidos enganam-nos algumas vezes.
Logo, os sentidos não são fiáveis." |
Argumento
dos sonhos
|
"Não
é possível distinguir com clareza o sono da vigília.
Logo, os sentidos e a experiência não podem ser a fonte de verdades indubitáveis." |
Argumento
do Deus enganador
|
"Podemos
ter sido criados por um Deus enganador de modo a acreditar convictamente que
aquilo que é falso é verdade.
Logo, temos razões para duvidar da existência da realidade física e das verdades da Matemática." |
3.5
Caracterização da dúvida
A
duvida metódica corresponde à parte negativa, ou destrutiva, do pensamento de
Descartes. Esta parte tem um papel absolutamente essencial no seu projeto.
Segundo Descartes, a dúvida tem três vantagens principais:
- libertar-nos
dos preconceitos;
- desviar
o espírito dos sentidos;
- impedir-nos
de duvidar do que reconhecemos ser verdadeiro.
Descartes
pensava que em criança adquirimos muitos preconceitos — como, por exemplo, que
os sentidos nos permitem conhecer a realidade tal como ela é — que, se não forem
corrigidos, manter-se-ão na idade adulta. A dúvida metódica liberta-nos desses
preconceitos, ao mostrar que, ao contrário do que pensamos, os sentidos não são
um fundamento adequado para as nossas crenças.
Um
segundo benefício que Descartes atribui à dúvida metódica é o de afastar a
mente dos sentidos. Se refletirmos um pouco nos três argumentos que constituem
o essencial da dúvida, perceberemos que eles têm, de facto, este efeito ao
apresentarem razões cada vez mais fortes para que duvidemos da verdade das
perceções sensoriais. Isto está de acordo com a posição filosófica de Descartes
que desvaloriza o papel dos sentidos em favor da razão.
Por
último, diz Descartes, a dúvida prepara-nos para reconhecer a verdade. A
dúvida, ao libertar-nos dos preconceitos e ao afastar-nos dos sentidos, cria as
condições para que o espírito descubra em si próprio as verdades indubitáveis
que não foi capaz de encontrar fora de si, na realidade que o rodeia.
Deste
modo, a dúvida metódica prepara o caminho para a parte construtiva da filosofia
de Descartes, em que os seus aparentes resultados céticos, como veremos, são
superados. Dada a sua relevância no pensamento de Descartes é frequente
dizer-se que a dúvida é:
- metódica,
porque procede de forma organizada e sistemática à investigação das nossas
crenças, baseada no princípio que só é verdadeiro aquilo de que não houver
nenhuma razão para duvidar;
- hiperbólica,
ou exagerada, porque considera como falso aquilo de que há razões para
duvidar e inventa razões para duvidar, como os argumentos dos sonhos e do
Deus enganador;
- radical,
porque põe em causa os princípios ou fundamentos do pensamento tradicional
(os sentidos e a razão) e incide, em princípio, sobre todas as nossas
crenças;
- provisória,
porque não é um fim em si mesmo, como a dúvida cética, mas um meio para
alcançar a primeira certeza.
4. O
cogito
4.1
Eu penso, logo existo
Como
acabámos de ver, a dúvida põe em questão as crenças que têm por base seja os
sentidos seja a razão. Nem a razão nem os sentidos, portanto, são capazes de
fornecer verdades indubitáveis. A conclusão a tirar parece ser óbvia: o
conhecimento não é possível. O projeto de investigação das nossas crenças,
aparentemente, em vez de descobrir verdades indubitáveis que fundem as nossas
convicções acerca do mundo e garantam a sua verdade, mergulha-nos no mais
profundo ceticismo. Descartes — parece daí resultar — não é apenas um cético,
mas o mais extremo e radical dos céticos.
Mas é
Descartes, de facto, um cético? Não. O objetivo dos céticos é mostrar que não
existe conhecimento. O objetivo de Descartes é o oposto: provar que existe
conhecimento, isto é, crenças de cuja verdade estamos completamente seguros. O
ceticismo é, portanto, apenas aparente, o resultado provisório da estratégia de
Descartes para mostrar que existem verdades indubitáveis. Descartes descreve a
forma como chega à primeira verdade deste tipo a partir da dúvida do seguinte
modo:
[N]otei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso,
era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que
esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as
extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que
a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.
(Discurso do Método,
pp. 50–51.)
O
raciocínio de Descartes é o seguinte: mesmo que tudo aquilo em que acredita
seja duvidoso ou falso, como a dúvida sugere, há pelo menos uma coisa que tem
de ser verdadeira para que possa duvidar, a saber, a sua própria existência e,
portanto, a sua existência é uma verdade indubitável. Isto é, Descartes está
convencido de que o pensamento não pode existir por si só, e como o pensamento
existe — uma vez que a dúvida é uma forma de pensamento —, tem de existir necessariamente
uma entidade em que o pensamento ocorra. Essa entidade é o «eu», cuja
existência é, portanto, uma verdade indubitável. É por isso que Descartes pode
afirmar «Eu penso, logo, existo». Descartes não é, portanto, um cético. Ao
contrário dos céticos, que, como vimos anteriormente, constroem argumentos com
o objetivo de mostrar que não é possível justificar racionalmente nenhuma das
nossas crenças, Descartes usa a dúvida com o objetivo contrário, isto é, como
um meio para certeza. Ao levar a dúvida ao extremo, tornando-a hiperbólica, a
impossibilidade da dúvida torna-se evidente, pois no próprio ato da dúvida
descobrimos a verdade indubitável da nossa existência. Esta descoberta vai ser
usada por Descartes como o ponto de partida do seu projeto filosófico-científico.
4.2
Sou uma substância pensante
O que
é este «eu» que a dúvida mostrou que existe? A resposta de Descartes é que o eu
é uma coisa pensante (res
cogitans). Esta resposta, no entanto, implica uma nova questão: o
que é uma coisa pensante?
Em primeiro
lugar, uma coisa pensante é uma substância, isto é, algo que pode existir de
per si, que não depende de qualquer outra coisa para existir. Em sentido
estrito, apenas Deus é uma substância, pois apenas Deus não depende de nenhuma
outra coisa para existir. Mas, Descartes usa também o termo «substância» para
referir aquilo que é independente de tudo exceto de Deus. O eu que pensa, ou
como muitas vezes também é designado, o cogito é uma substância neste sentido
secundário da palavra.
Em
segundo lugar, dizer que o eu é uma substância pensante é dizer que tem como
propriedade essencial ser pensamento. O que é, então, o cogito? Uma entidade
que é puro pensamento. É por isso que Descartes lhe chama também algumas vezes
espírito, alma, intelecto, ou razão.
Há uma
terceira substância, para além de Deus e da alma, a saber, a matéria (res extensa) ou o
corpo, cuja propriedade essencial é a extensão. Normalmente pensamos nos corpos
como tendo caraterísticas que percebemos pelos sentidos: uma certa cor, uma
certa sensação táctil, um certo odor, etc. Contudo, para Descartes, isso não
constitui verdadeiramente propriedades dos corpos. Segundo ele, os corpos não
têm nem cor, nem odor, nem sabor, nem nenhuma das outras coisas que percebemos
pela perceção. Isto é particularmente claro no caso da audição. Percebemos
sons, mas os físicos ensinam-nos que os sons não existem, apenas a vibração das
moléculas que compõem a matéria. Assim, Descartes, como outros pensadores do
seu tempo, distingue entre propriedades primárias e propriedades secundárias
dos objetos.8 As
qualidades secundárias, como as cores, os odores, os sabores, etc., não são
propriedades reais dos objetos, mas o resultado da interação da nossa mente com
os objetos. As qualidades primárias, tamanho, forma e movimento, são
propriedades que pertencem realmente aos objetos. Descartes pensa que estas
propriedades podem ser reduzidas a uma única, a extensão, e considera-a a
propriedade essencial da matéria.
4.3 O
que é o pensamento?
Vimos
acima que, segundo Descartes, o eu é pensamento. Em que consiste o pensamento?
Descartes responde a essa questão nas Meditações:
Mas o que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto
dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que compreende, que afirma, que nega,
que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. (Meditações sobre a Filosofia
Primeira, p. 124.)
Como
vemos, Descartes inclui coisas muito diferentes no pensamento. A inclusão das
sensações entre os constituintes do pensamento pode parecer estranho, dado que
Descartes, através da dúvida metódica, rejeitou como duvidoso ou falso tudo o
que tem origem nos sentidos. Mas o que Descartes está aqui a incluir no
pensamento não é o acontecimento físico de ver, ouvir, etc., que se passa nos
nossos órgãos sensoriais, mas aquilo que ocorre na nossa mente e cuja origem
costumamos atribuir a esses órgãos e aos objetos físicos. Quer existam ou não
objetos físicos — coisa que, neste momento, não sabemos devido ao argumento do
Deus enganador —, temos «imagens» mentais que associamos a esses objetos, como
acontece quando sonhamos. São essas imagens mentais que Descartes inclui no
pensamento. Outra forma de expressar a mesma ideia é dizer que o pensamento é
tudo aquilo de que temos consciência, isto é, tudo aquilo que sabemos estar a
ocorrer no momento no nosso eu.
4.4
Sou diferente do meu corpo
Ao
refletirmos sobre aquilo que somos, pensa Descartes, constatamos ainda que não
é possível duvidar da nossa existência enquanto pensamento embora seja possível
duvidar da existência do nosso corpo. Daqui Descartes tira duas conclusões
importantes:
- a
alma e o corpo são substâncias completamente distintas
- a
alma é mais fácil de conhecer do que o corpo
O seu
raciocínio, que apresenta no Discurso do Método, é o seguinte:
Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia
supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer
lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não
existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade
das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu
existia; (…) compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é
unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende
de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou
o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do
que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.
(Discurso do Método,
pp. 51–52.)
Apesar
de diferentes, o pensamento e o corpo encontram-se juntos no ser humano. No
entanto, como são completamente incompatíveis (uma vez que um é puro pensamento
e o outro pura extensão), Descartes tem grandes dificuldades em explicar como
se articulam (por exemplo, como os acontecimentos no nosso corpo dão origem a
acontecimentos na alma e vice-versa). Esta conceção do homem — e do universo —
como composto por duas substâncias completamente distintas é conhecida como o
dualismo de Descartes e está na origem do problema mente-corpo, estudado em
filosofia da mente.9
4.5
Aquilo que conheço com clareza e distinção é indubitavelmente verdadeiro
O que
faz do «Eu penso, logo existo» uma verdade indubitável, e, por isso, um
conhecimento, é a clareza e distinção com que é aprendido pela nossa mente.
Isto fornece a Descartes o critério para determinar quando uma qualquer
proposição é uma verdade indubitável: a clareza e distinção. Mas, em que
condições é uma ideia clara e distinta? A resposta de Descartes é a de que uma
ideia é clara quando a razão, sem qualquer participação dos sentidos, nos
mostra que ela é verdadeira sem a mínima possibilidade de erro; e é distinta
quando não se confunde com nenhuma outra ideia.
A
clareza e distinção fornecem a Descartes o critério para determinar quando uma
ideia constitui um conhecimento. Qualquer ideia que a mente perceba com clareza
e distinção é indubitável. O cogito pode a partir de agora — e isto é de imensa
importância para todo o projeto de Descartes — analisar os seus pensamentos e
determinar aqueles que são claros e distintos. São essas ideias claras e
distintas que vão constituir os fundamentos — as crenças fundacionais — a
partir dos quais Descartes vai deduzir a sua nova ciência, que é assim também
indubitável e, portanto, inquestionavelmente conhecimento.
4.6
Intuição e dedução
As
ideias claras e distintas são conhecidas por intuição. O que pode ser
corretamente derivado daquilo que conhecemos por intuição é conhecido por
dedução.10 Assim,
Descartes atribui duas funções cognitivas principais à mente, a intuição e a
dedução, a que correspondem duas formas de conhecimento, o conhecimento
intuitivo e o conhecimento dedutivo. Temos um conhecimento por intuição quando
a nossa razão percebe imediatamente, sem qualquer raciocínio e sem qualquer
dúvida que algo é verdade. Conhecemos por intuição verdades autoevidentes,
como, por exemplo, «Eu existo» ou «um triângulo tem apenas três lados» e «duas
coisas iguais a uma terceira são iguais». Conhecemos algo por dedução quando a
partir de proposições que conhecemos por intuição inferimos uma outra
proposição que é também de certeza absoluta verdadeira, como, por exemplo,
quando a partir da definição de triângulo inferimos que a soma dos três ângulos
de um triângulo é igual a dois ângulos retos.
Operações da mente
|
Explicação
|
Exemplos
|
Intuição
|
A
mente, diretamente e sem qualquer raciocínio, percebe claramente e
distintamente algo como verdadeiro.
|
Eu
existo; eu penso; um triângulo tem apenas três lados.
|
Dedução
|
A
mente infere outras verdades a partir das que conhece por intuição.
|
Tudo
o que deduzimos das verdades conhecidas por intuição, como, por exemplo, que
os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, que se deduz da
definição de triângulo.
|
4.7 O
cogito é uma verdade de razão
O «Eu
penso, logo existo» é, uma verdade a que chegamos pela razão. É a razão, e não
os sentidos, que nos revelam a nossa própria existência como uma verdade
indubitável. Como o cogito é o modelo que permite reconhecer outras verdades
indubitáveis — tudo o que conhecemos com clareza e distinção —, que são a base
a partir da qual o conhecimento se vai desenvolver, o conhecimento tem origem
na razão e não nos sentidos. Isto faz de Descartes um racionalista, e constitui
outro ponto em que rompe com o pensamento tradicional que, como já vimos, fazia
dos sentidos a origem do conhecimento.11
Mas, o
que carateriza o racionalismo de Descartes? Em primeiro lugar, o facto de o
conhecimento ter origem na razão e não nos sentidos; a razão, ao contrário dos
sentidos, fornece-nos verdades indubitáveis, como o cogito, que conhecemos por
intuição. Em segundo lugar, o facto de o verdadeiro conhecimento ser o racional
e não o empírico. E, por último, o facto de sermos capazes de chegar a partir
dessas verdades, por dedução, a outras verdades que são igualmente
indubitáveis.
Podemos
resumir as características do cogito que acabámos de ver no quadro seguinte:
Primeira
verdade indubitável
|
A
primeira crença que resiste à dúvida: para que eu possa duvidar tenho de
existir.
|
Ponto de
partida do saber
|
Como
primeira verdade indubitável, vai ser a partir dela que a reconstrução do
saber se vai fazer.
|
Substância
pensante
|
Existe
por si próprio e tem como propriedade essencial o pensamento (duvidar,
compreender, afirmar, negar, querer, imaginar, sentir).
|
Distinto do
corpo e melhor conhecido do que ele
|
Posso
ter a certeza da minha existência enquanto alma, mas posso duvidar da
existência do meu corpo.
|
Claro e
distinto
|
Conhecido
sem possibilidade de erro pela razão e que não se confunde com nenhuma outra
coisa.
|
Critério de
verdade
|
Todas
as crenças que, como o eu penso, logo existo, são claras e distintas são
verdades indubitáveis.
|
Conhecido por
intuição
|
Conhecido
imediatamente como verdadeiro pela razão, sem o recurso a inferências ou
raciocínios.
|
5.
Deus
A
descoberta do cogito permite a Descartes fundar em bases sólidas o que foi
posto em causa pela dúvida metódica e, por extensão, a sua ciência mecanicista.
Mas, em si mesmo, o cogito não constitui um grande avanço. Tudo o que Descartes
provou até agora foi que uma substância que consiste unicamente no pensamento
existe. Tanto quanto sabemos nesta altura, é perfeitamente possível que para
além do cogito e dos seus pensamentos nada mais exista, uma posição hipotética
a que os filósofos chamam solipsismo.12 Para
avançar e superar o solipsismo, Descartes precisa de provar que existem outras
entidades para além do cogito.
A sua
estratégia para atingir este fim vai ter três partes. Na primeira, Descartes
vai provar que Deus existe. Descartes precisa de o fazer não apenas para
afastar o solipsismo mas sobretudo para poder provar que aquilo que conhecemos
com clareza e distinção é verdade. Na segunda, vai mostrar que dessa existência
se segue a fiabilidade da razão e, portanto, que aquilo que conhecemos clara e
distintamente é indubitável. Por último, Descartes vai mostrar que o mundo
físico existe. Comecemos pela primeira.
5.1 O
argumento da perfeição ou da marca
A
maior parte dos argumentos tradicionais para provar a existência de Deus são a
posteriori. Partem de um facto acerca do mundo e pretendem provar que Deus
existe. Descartes, no entanto, não pode usar esta estratégia, porque a
existência do mundo físico foi posta em suspenso pela dúvida metódica. Por
isso, para provar a existência de Deus, o cogito tem de recorrer apenas às
ideias que encontra em si próprio. Ora, o cogito encontra em si muitas ideias,
como, por exemplo, aquelas cuja origem normalmente atribuímos a objetos
exteriores. Mas também encontra em si outras ideias como a ideia de Deus ou de
perfeição, isto é, de
[…] uma certa substância infinita, independente, sumamente
inteligente, omnipotente, e pela qual foram criados quer eu mesmo, quer tudo o
resto que existe. (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, pp. 151–152.)
Como
tudo tem uma causa, a ideia de Deus também tem uma causa. A estratégia de
Descartes para provar a existência de Deus vai, portanto, consistir em
determinar qual a causa desta ideia de Deus, que o cogito descobre em si.
Costumamos atribuir a origem das nossas ideias aos objetos físicos com os quais
contactamos. Contudo, como vimos, é logicamente possível que essas ideias
tenham origem no próprio cogito, uma vez que tanto quanto sabemos, o cogito
pode criar as ideias que temos dos objetos físicos. É isso que acontece nos
sonhos. Outras ideias são fruto da nossa imaginação, como acontece com as
ideias de unicórnio e de dragão. Poderá a ideia de Deus ter também origem no
cogito?
A
resposta de Descartes é não. Porque, segundo ele, tem de haver tanta realidade
na causa de uma ideia quanto na própria ideia. A ideia de Deus é a ideia de um
ser perfeito. Se o cogito fosse a causa da ideia de ser perfeito, não seria
possível explicar as perfeições que Deus tem e que o cogito não tem, uma vez
que, sendo imperfeito, tem menos realidade que a ideia de Deus. Seria, por
isso, o mesmo que dizer que essas perfeições não têm causa, o que é absurdo.
Portanto, ao contrário das outras ideias que o cogito encontra em si, a ideia
de Deus não pode ser criada pelo cogito. Qual pode, então, ser a causa dessa
ideia? Apenas algo que tenha tanta realidade quanto a ideia de Deus. Ora, só
Deus tem a realidade necessária para ser a causa da ideia de Deus. A causa da
ideia de Deus é, portanto, o próprio Deus e, por isso, Deus existe.
Podemos
apresentar o argumento de Descartes do seguinte modo:
- O
cogito tem em si a ideia de Deus.
- A
ideia de Deus tem de ter uma causa.
- Tem
de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto na própria ideia.
- Se
a ideia de Deus tivesse origem no cogito, haveria menos realidade na causa
do que no efeito.
- O
cogito não pode ser a causa da ideia de Deus.
- Logo,
Deus é a causa da ideia de Deus.
Descartes
pensa que cada uma das premissas deste argumento é uma verdade clara e distinta
e que, portanto, demonstrou — no sentido matemático, isto é, indubitavelmente —
que Deus existe. O primeiro passo do cogito para fora de si próprio está assim
dado. O cogito não está sozinho. A análise que fez das suas ideias revelou a
existência indubitável de Deus.
5.2
Ideias inatas, adventícias e factícias
A
ideia de Deus é aquilo a que Descartes chama uma ideia inata, e, como todas as
ideias inatas, foi colocada em nós por Deus, pelo que é como a marca do criador
na sua obra. As ideias inatas são ideias com as quais já nascemos e que a mente
descobre por si própria, não tendo, portanto, origem na experiência, como são o
caso, além da ideia de Deus, do cogito, das verdades autoevidentes da
Aritmética e da Geometria e, de uma maneira geral, de muitas ideias que
conhecemos por intuição e que são claras e distintas. Além das ideias inatas,
existem também as ideias adventícias, que têm origem nas sensações, como as ideias
de casa, árvore, etc., e as ideias factícias, ou forjadas, que são as que a
nossa imaginação cria a partir das ideias adventícias.13
TIPOS
DE IDEIAS
|
||
Inatas
|
Colocadas
por Deus em nós e com as quais já nascemos.
|
Deus,
cogito, substância, corpo ou matéria, triângulo.
|
Adventícias
|
As
que têm origem nos nossos sentidos.
|
Sol,
Lua, árvore, livro.
|
Factícias
|
As
que têm origem na imaginação.
|
Centauro,
quimera, ciclope.
|
6.
Erro, verdade e mundo
6.1
Deus não é enganador
O que
sabe neste momento o cogito? Sabe duas coisas: que existe e que Deus existe. O
solipsismo não tem, portanto, razão de ser, uma vez que o cogito não é tudo o
que existe. Este conhecimento, no entanto, não permite ainda recuperar as
crenças que a dúvida metódica pôs em suspenso — as verdades da Matemática e a
crença no mundo exterior —, mas permite definitivamente afirmar que a hipótese
de um Deus enganador não tem razão de ser. Descartes está finalmente em
condições de afastar o mais poderoso dos argumentos que constituem a dúvida
metódica e, por isso, ele escreve:
[R]econheço que é impossível que ele me engane alguma vez,
porque em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora
poder enganar pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou poder,
querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o
que, por isso, não pertence a Deus. (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, p. 166.)
Em
resumo, Deus não é enganador, porque enganar é uma imperfeição e Deus é
perfeito. Não podemos, contudo, concluir daqui imediatamente que as nossas
crenças fundamentais acerca do mundo são verdadeiras, uma vez que, tanto quanto
sabemos, o nosso próprio espírito pode ser a sua causa. No entanto, como
veremos, a estratégia de Descartes para provar a verdade destas crenças vai
passar por explorar as consequências de Deus ser perfeito e, por isso, não ser
enganador.
6.2 O
erro
Para
já, porém, temos de lidar com outro problema. Se Deus é perfeito — e, portanto,
não é enganador — e fomos criados por Deus, como se explica o erro, isto é,
como se explica que façamos juízos falsos? Como se explica que o erro seja
possível num universo criado por um Deus, que é sumamente bom, sábio e poderoso?14
Descartes
explica o erro distinguindo dois tipos de pensamentos, os que dependem do
entendimento e os que dependem da vontade ou livre-arbítrio. Embora aquilo que
conhecemos pelo entendimento seja indubitavelmente verdade, o nosso
entendimento é limitado, pois há muita coisa que é incapaz de compreender, ao
contrário do intelecto divino, que compreende tudo. Por outro lado, a nossa
vontade tem uma capacidade infinita e pode escolher afirmar ou negar algo que o
nosso entendimento não compreende completamente e levar-nos assim ao erro:
Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente de que,
como a vontade tem um campo mais lato que o entendimento, não a contenho dentro
dos mesmos limites, mas também a estendo às coisas que não compreendo: por ser
indiferente a elas, a vontade deflete facilmente do bom e do bem e, deste modo,
não só erro como também peco. (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, pp. 173.)
Os
erros resultam desta assimetria entre o nosso entendimento e a nossa vontade.
Os erros acontecem quando a vontade afirma ou nega uma proposição que o
entendimento não compreende completamente e resultam, assim, do nosso
livre-arbítrio. Isto explica, por um lado, por que erramos e, por outro, mostra
que Deus, embora nos tenha criado, não é o responsável por esses erros.
6.3
Deus como garantia de verdade
Podemos
evitar fazer juízos que são falsos? Podemos evitar o erro? Sim, se evitarmos
fazer juízos sobre o que percebemos apenas de forma obscura e confusa — sobre
aquilo de que haja dúvidas da sua verdade, como, por exemplo, o que conhecemos
pelos sentidos —, e usarmos corretamente o nosso entendimento e a nossa
vontade. Podemos evitar o erro se limitarmos os nossos juízos àquilo que
conhecemos com clareza e distinção. Mas o que garante que aquilo que conhecemos
com clareza e distinção é verdade? A resposta de Descartes é Deus. Como Deus é
perfeito, isto é, não é enganador, podemos confiar nas faculdades racionais com
que Ele nos dotou e na verdade daquilo que conhecemos por intermédio dessas
faculdades quando corretamente aplicadas. Deus é, assim, a garantia de que
aquilo que conhecemos clara e distintamente é verdade, porque é a garantia da
nossa razão:
[A]quilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são
inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente,
só é certo porque Deus é ou existe. (Discurso
do Método, p. 59.)
Para
mostrar que as proposições da Matemática, apesar da sua evidência, não são
indubitáveis, a dúvida metódica, e em particular o argumento do Deus enganador,
pôs em questão a fiabilidade da nossa razão: podemos ter sido criados por um
Deus enganador, com uma razão tal que nos enganemos mesmo acerca das verdades
mais simples e evidentes. O facto de Deus não ser enganador mostra que esta
hipótese é falsa e, portanto, que podemos confiar na nossa razão desde que a
usemos corretamente, isto é, desde que só façamos juízos sobre aquilo que
conhecemos com clareza e distinção. Assim, embora a primeira verdade indubitável
a que chegamos seja o cogito, a crença em Deus é a crença mais básica e
fundamental, porque é Deus a garantia última da nossa existência e do nosso
conhecimento.
Em
resumo, Deus garante a fiabilidade das nossas faculdades racionais, quando bem
utilizadas, e não há, razões para duvidarmos das verdades simples e evidentes
da Aritmética e da Geometria. Mas, podemos dizer o mesmo das outras crenças, em
particular da nossa crença na existência do mundo físico, que a dúvida também
pôs em suspenso?
6.4 O
mundo
Descartes
pensa que é possível provar que a crença na existência do mundo é verdadeira.
Para o fazer, ele usa um procedimento semelhante ao que utilizou para provar a
existência de Deus: constatar que temos certas ideias e perguntar quais as suas
causas. Ele raciocina do seguinte modo:
O
cogito tem em si ideias que associa com objetos físicos. Qual é a causa dessas
ideias? Uma resposta possível a esta pergunta é que estas ideias têm origem no
cogito. Mas, diz Descartes, o cogito não pode ser a causa destas ideias, porque
elas são produzidas sem a sua cooperação e frequentemente contra a sua vontade
(temos perceções de objetos físicos mesmo quando não queremos). No entanto,
temos uma grande propensão para acreditar que a causa das ideias que temos, por
exemplo, de uma certa casa ou árvore, é uma dada casa ou árvore, que existe
exterior e independentemente de nós. Ora, se as causas destas ideias não fossem
estes corpos físicos, Deus seria enganador, dado que nos teria criado com a
propensão a crer que estas nossas ideias têm como causa os objetos físicos e
não seria isso o que aconteceria. Mas, como já vimos, Deus é perfeito e, por
isso, não pode ser enganador. Portanto, termos esta propensão pode apenas
significar que são os corpos físicos a causa destas ideias e, consequentemente,
que os corpos físicos existem:
Ora, não sendo Deus enganador, é absolutamente manifesto que ele
não introduz em mim essas ideias, nem imediatamente por si próprio, nem também
por meio de outra criatura […] Porque, não me tendo Deus dado absolutamente
nenhuma faculdade para conhecer isto, mas, pelo contrário, uma grande propensão
para crer que elas são emitidas pelas coisas corpóreas, não vejo por que se
possa compreender que ele não é enganador, se estas ideias fossem emitidas por
outras que não as coisas corpóreas. E, portanto, as coisas corpóreas existem. (Meditações sobre a Filosofia
Primeira, pp. 209.)
Em
resumo, Deus é o nosso criador e não é enganador. Temos uma grande propensão
para atribuir a objetos físicos a causa das nossas ideias de objetos físicos.
Portanto, os objetos físicos são a causa dessas ideias e, claro, existem
objetos físicos.
Descartes
conseguiu, assim, recuperar todas as crenças que a dúvida colocou em suspenso.
E embora os nossos sentidos não sejam nunca de inteira confiança, é possível
provar a verdade das nossas crenças mais fundamentais se, em vez de darmos
primazia aos sentidos, como normalmente fazemos, nos guiarmos pela razão.
Poderemos
pensar que ganhámos muito pouco ao fazermos este trajeto. Afinal, já
acreditávamos que as proposições das Matemáticas são verdadeiras e que o mundo
exterior existe. Contudo, há uma diferença substancial entre a posição em que
nos encontrávamos no começo e a atual. Na altura, acreditávamos que essas
crenças eram verdadeiras, mas não sabíamos efetivamente que o eram. Agora, com
a garantia divina, não apenas acreditamos mas sabemos que as nossas crenças são
verdadeiras. Passámos da mera crença para o conhecimento e isso, para
Descartes, é uma diferença substancial porque passámos a ter a certeza da
verdade daquilo em que acreditamos.
7.
Críticas
Ao
iniciarmos o estudo de Descartes, vimos que o seu objetivo era formular uma
teoria do conhecimento que só aceitasse como tal as crenças que fossem
indubitáveis. Se Descartes, como pretende, tiver sido bem sucedido, ele provou
que as proposições fundamentais da metafísica — o cogito, Deus e o mundo — são
verdades indubitáveis, e está agora em condições de deduzir delas os princípios
fundamentais da sua física mecanicista.
Mas
terá Descartes sido bem sucedido? Desde o início, os seus críticos chamaram a
atenção para dificuldades importantes no seu pensamento. A mais famosa é, sem
dúvida, o chamado Círculo Cartesiano. As outras objeções são de David Hume.
7.1 O
Círculo Cartesiano
Esta
objeção foi formulada pela primeira vez por Antoine Arnauld (1612–1694), um
teólogo e filósofo francês, contemporâneo de Descartes, nas objeções que
escreveu às Meditações sobre a Filosofia Primeira:
Resta-me apenas uma dificuldade, que é a de saber como o autor
se pode defender de cometer um círculo, quando diz que estamos certos de que as
coisas que concebemos claramente e distintamente são verdadeiras apenas porque
Deus é ou existe.
Porque não podemos estar certos de que Deus existe a não ser
porque nós concebemos isso muito claramente e muito distintamente; portanto,
antes de estarmos certos da existência de Deus, devemos estar certos de que as
coisas que concebemos claramente e distintamente são todas verdadeiras.
(Antoine Arnauld, “Quatrièmes objections” in René Descartes, Descartes: Oeuvres et lettres,
Paris: Gallimard, 1992, p. 435 (trad. Álvaro Nunes).)
A
objeção de Arnauld pode ser expressa em poucas palavras: Descartes afirma que
Deus é a garantia da verdade do que conhecemos com clareza e distinção, mas ao
mesmo tempo usa a clareza e distinção para provar a existência de Deus (uma vez
que as premissas da sua prova da existência de Deus são por ele consideradas
claras e distintas). Descartes, deste modo, raciocina em círculo e, portanto,
comete uma falácia da petição de princípio.
Se
esta objeção for correta, como muitos pensam, o seu efeito para a filosofia de
Descartes é devastador. Ao contrário do que afirma, Descartes não provou a
existência de Deus nem a verdade do que percebemos clara e distintamente e,
portanto, não tem nenhum fundamento absolutamente certo para o conhecimento. O
seu projeto cai pela base.
7.2 A
dúvida metódica é impossível
Como
vimos, o projeto filosófico de Descartes começa pela dúvida. No entanto, para
que a dúvida seja eficaz, o seu alcance deve ser universal e estender-se tanto
às nossas crenças como às nossas faculdades racionais.15
Hume
apresenta duas objeções a este projeto. Em primeiro lugar, diz ele, este
ceticismo extremo é impossível. Agir de acordo com os requisitos da dúvida
metódica está para além daquilo que os seres humanos são capazes. A dúvida
metódica é, portanto, pura e simplesmente impraticável. Em segundo lugar, mesmo
que a dúvida fosse praticável, não seria possível ir para além dela sem usar as
faculdades racionais que a dúvida põe em questão. Isto é, se a dúvida fosse
praticável, seria inultrapassável, uma vez que qualquer tentativa de a superar
implicaria o uso das próprias faculdades a que a dúvida se aplica. Hume conclui
daqui que o projeto de Descartes não é de todo exequível.
7.3
Não temos provas da existência do eu
A
crença na existência do cogito ou «eu penso» é fundamental ao projeto de
Descartes. É pela análise do eu, enquanto puro pensamento, que Descartes prova
a existência de Deus e recupera como verdades das quais está absolutamente
certo — e não como meras crenças — tudo o que a dúvida metódica pôs em questão.
Ele pensa ter provado sem margem para dúvidas, como condição de possibilidade
da própria dúvida, que o eu existe. Hume está também aqui em completo desacordo
com Descartes. Hume pensa que não temos, nem podemos ter, nenhuma ideia de eu.
Segundo ele, todas as nossas ideias têm origem em impressões. Contudo, não
temos nenhuma impressão que possa estar no origem da ideia de eu. Tudo o que
encontramos quando olhamos para nós próprios é uma sucessão de perceções
particulares, de calor de frio, de prazer e dor e nunca uma perceção do eu.
Para Hume, portanto, o eu, tal como o entendemos, não existe. De facto, ele
pensa que, de acordo com a experiência, tudo o que podemos dizer é que a mente,
ou eu, é uma espécie de feixe ou coleção de perceções. Se Hume tiver razão, o
cogito é apenas uma ficção e, portanto, não pode ter o papel absolutamente
essencial que Descartes lhe atribui na sua filosofia.
7.4
Não é possível provar a existência do mundo
O
último passo da filosofia de Descartes consistiu em provar a existência do
mundo exterior e ele julga tê-lo feito ao argumentar que as ideias cuja causa
atribuímos a objetos físicos têm, de facto, essa causa. No entanto, Hume nega
que seja possível provar a existência do mundo exterior. Ele aceita, como
Descartes, a distinção entre a realidade e as nossas perceções, isto é, entre o
objeto físico e a sua representação mental, mas defende que só temos
experiência direta das representações na nossa mente, não dos objetos físicos,
suas supostas causas, e, que, portanto, não é possível ter experiência da
relação causal entre as nossas representações mentais e os objetos que
supostamente elas copiam e representam. Deste modo, não temos qualquer razão
para afirmar que os objetos físicos são a causa das nossas perceções e,
portanto, que existem objetos físicos. Mesmo que admitamos a possibilidade da
dúvida metódica e a existência do cogito, se não for possível provar a
existência do mundo físico, a filosofia e a ciência de Descartes estão
condenadas ao fracasso.
Se
aceitarmos estas críticas, o projeto de Descartes está em sérias dificuldades.
Um dos interesses da filosofia de Descartes está no facto de constituir uma
tentativa de construir uma teoria do conhecimento com base no pressuposto de
que uma crença tem de poder ser justificada de forma indubitável para ser
conhecimento. O seu fracasso é também o fracasso desta conceção de
conhecimento. Mas, não sendo possível ter conhecimento, não será possível
termos crenças racionalmente justificadas, isto é, crenças verdadeiras
racionalmente justificadas, embora não de forma indubitável? Os filósofos
empiristas britânicos tendem a pensar que sim. John Locke (1632–1704), por
exemplo, restringe aquilo que podemos conhecer a número muito limitado de
crenças — a nossa existência, a existência de Deus e alguns princípios
fundamentais da ética, mas pensa que é possível com base na experiência
justificar as nossas crenças de forma provável. Terá Locke razão?
Bibliografia
de apoio
- Almeida,
Aires, Dicionário
Escolar de Filosofia, Lisboa: Plátano Editora, 2003 (Versão
online: http://criticanarede.com/dicionario.html).
- Alquié,
Ferdinand, A
Filosofia de Descartes, Lisboa: Editorial Presença, 1993.
- Blackburn,
Simon, Pense:
Uma Breve Introdução à Filosofia, Lisboa: Gradiva, 2001, Cap.
1.
- Cottingham,
John, A
Filosofia de Descartes, Lisboa: Edições 70, 1989.
- Descartes,
René, Discurso
do Método, Lisboa: Edições 70, 2013.
- Descartes,
René, As
Paixões da Alma, Lisboa: Fim do Século Edições, 2009.
- Descartes,
René, Meditações
sobre a Filosofia Primeira, Coimbra: Livraria Almedina, 1992.
- Descartes,
René, Princípios
de Filosofia, Lisboa: Edições 70, 2006.
- Descartes,
René, Regras
para a Direcção do Espírito, Lisboa: Edições 70, 1989.
- Kenny,
Anthony, História
Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa: Temas e Debates, 1999,
Cap. 11.
- Scruton,
Roger, Breve
História da Filosofia Moderna, Lisboa: Guerra e Paz, 2010,
Cap. 3.
Notas
1. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a
entrada «mecanicismo». ↩︎
2. Os medievais
expressavam esta ideia com o adágio «nada existe no intelecto que não esteja
primeiro nos sentidos». ↩︎
3. Forma substancial
e acidental, potência e ato, etc. ↩︎
4. Algo pode ser
improvável e possível. Pode ser muito improvável que lhe saia o Euromilhões,
mas não é impossível. Caso contrário, não jogaria. ↩︎
5. Naturalmente, a
designação desta teoria é muito posterior a Descartes. ↩︎
6. A metáfora da
casa é aqui particularmente apropriada. Tal como numa casa basta derrubar as
fundações para que tudo o resto caia. Também no conhecimento humano, afirma Descartes,
basta destruir os princípios de que tudo o resto deriva. ↩︎
7. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a
entrada «realismo ingénuo». ↩︎
8. Em rigor,
Descartes não usa estas designações, mas a distinção aparece em várias das suas
obras. Ver no Dicionário
Escolar de Filosofia a entrada «qualidades primárias e secundárias». ↩︎
9. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a
entrada «dualismo/monismo». ↩︎
10. Hoje, em vez de
«corretamente derivado», diríamos «validamente deduzido». De acordo com a
lógica dedutiva podemos estar seguros da verdade da conclusão de um raciocínio
se esta for validamente deduzida de premissas verdadeiras. Na verdade, o que
Descartes está a fazer é a estabelecer que apenas os raciocínios dedutivos — ao
contrário dos indutivos — fornecem verdades indubitáveis e, portanto,
conhecimentos. As premissas verdadeiras de Descartes são, obviamente, aquilo
que conhecemos por intuição, as ideias claras e distintas. Deste modo,
Descartes identifica o conhecimento com demonstração; isto é, é conhecimento
aquilo que podemos deduzir por processos dedutivos válidos de proposições que
são indubitáveis e indisputáveis. ↩︎
11. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a
entrada «racionalismo». ↩︎
12. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a
entrada «solipsismo». ↩︎
13. Estes tipos de
ideias correspondem às faculdades da razão, sensação e imaginação. ↩︎
14. Este problema tem
semelhanças evidentes com o chamado problema do mal: como se explica o mal num
universo criado por Deus, que é sumamente bom, sábio e poderoso? ↩︎
15. Recordemos que o
argumento do Deus enganador é dirigido às nossas faculdades racionais: Deus
pode ter-nos feito com faculdades tais que nos enganemos mesmo nas operações
mais simples. ↩︎
Álvaro Nunes
Critica na rede
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