Senhora da Mó - Arouca |
Racionalismo
cartesiano
1. Mostre que relação se estabelece entre exercício da dúvida e procura da
verdade em Descartes.
R: Descartes procura um conhecimento certo e seguro sobre o qual possa
construir de forma ordenada e correcta um conjunto de conhecimentos a que se
chama sistema do saber. Esse conhecimento fundacional terá de ser indubitável,
ou seja, de tal modo distinto e claro – evidente – que dele não se possa
duvidar. Será uma crença básica, um conhecimento verdadeiro que a si mesmo se
justifique pela sua clareza intrínseca. Como encontrar um tal conhecimento
primeiro e inabalável? Submetendo todos os conhecimentos que constituam crenças
básicas do saber tradicional ao exame da dúvida. Como vai ser aplicada a
dúvida? Seguindo a regra do método que manda considerar falso o que não for
indubitável. Assim a dúvida é metódica – segue uma regra do método – e
hiperbólica – o que parecer, por pouco que seja, duvidoso será considerado
falso. Esta forma de exercer a dúvida deve-se ao facto de Descartes visar
separar absolutamente o verdadeiro do falso. Entre verdadeiro e falso não há
meio-termo. Verdadeiro é igual a absolutamente verdadeiro – indubitável – e
provavelmente verdadeiro é igual a falso. Se algum conhecimento superar o teste
da dúvida, será um conhecimento que não suscitará a mínima dúvida – em última
análise, será o conhecimento de uma verdade que é condição de possibilidade do
exercício da própria dúvida. O primeiro conhecimento que superar a dúvida será
a crença básica do sistema cartesiano – o Cogito –, a verdade da qual dependerá
a descoberta de outras verdades, mas que não se deduz de nenhuma outra.
2. O que significa dizer que a dúvida é hiperbólica? Por que razão Descartes
decide aplicar a dúvida de forma hiperbólica?
R: A dúvida é hiperbólica porque, em termos gerais, se baseia no
princípio metodológico de que falso é igual a aparentemente duvidoso. O que
parece duvidoso não é provavelmente verdadeiro, mas sim falso. Entre verdade e
falsidade não há meio-termo, ou seja, não há compromisso possível.
Em termos mais específicos, a dúvida é hiperbólica porque ordena
que:
1 – Se considere falso o que for minimamente duvidoso.
2 – Se considere sempre enganador o que algumas vezes engana.
Descartes decide aplicar a dúvida hiperbólica para ficar seguro de que,
quando descobrir uma crença que lhe resista, essa crença seja absolutamente
verdadeira. A função da dúvida é separar o verdadeiro do falso abrindo o
caminho para uma verdade indubitável a partir da qual se reconstruirá um
sistema de conhecimentos verdadeiros e bem organizados.
3.
O que distingue o primeiro e segundo níveis da aplicação da dúvida?
R: No primeiro nível de aplicação da dúvida, o argumento dos erros
perceptivos, Descartes põe em causa as informações dos sentidos sobre as
propriedades e qualidades dos objectos sensíveis que existem no mundo. No
segundo nível de aplicação da dúvida, o argumento da impossibilidade de
encontrar um critério que nitidamente distinga sonho de realidade põe em causa
a própria existência do mundo físico. Em ambos os casos, mostra-se que não se
pode confiar na experiência sensível ou, pelo menos, que não podemos obter
conhecimentos seguros acerca da existência do mundo e das propriedades das
coisas que nele existem se nos fiarmos somente nos nossos sentidos. A palavra
de ordem em relação aos sentidos é esta: não podemos saber quando nos estão a
enganar e por isso devemos deles desconfiar completamente. Vê-se aqui que
Descartes rejeita completamente uma concepção empirista do conhecimento.
4.
Por que razão recorre Descartes ao argumento do Deus enganador?
R: Um argumento como o dos erros perceptivos não é de modo algum adequado
para por em causa crenças a priori – cuja verdade não pode ser
justificada pela experiência – como é o caso das verdades matemáticas. Por
outro lado, o argumento do sonho não é suficientemente convincente para me
convencer de que 2 + 2 = 4 pode ser uma crença falsa. Esses argumentos incidem
em crenças de tipo empírico, ao passo que as matemáticas pertencem à ordem dos
objectos inteligíveis, não empíricos. Trata-se de abalar a confiança no
funcionamento do nosso entendimento e não é recorrendo a erros e ilusões que
têm a ver com os nossos sentidos que o conseguiremos fazer de modo
satisfatório. As matemáticas – produtos do nosso entendimento considerados
exemplares – não vão passar no teste da dúvida devido a uma hipótese «muito
metafísica» que consiste em suspeitar que Deus seja enganador e malicioso a
ponto de perverter o nosso entendimento levando-o a tomar o falso por
verdadeiro.
5. Por que razão não se pode afirmar que Descartes é um céptico? Consegue
contudo Descartes suplantar completamente o argumento céptico de que o
conhecimento não é possível?
R: Descartes não é nem nunca foi um céptico. O cepticismo é precisamente
o seu adversário. Contra o argumento céptico da regressão infinita da
justificação das nossas crenças, Descartes vai argumentar mostrando que há
crenças básicas – que se sustentam a si próprias. Essas crenças são a
existência do sujeito pensante, a distinção real entre alma e corpo e a
existência de Deus.
Será que Descartes supera o desafio céptico? Todo o problema reside no
papel que atribui a Deus – podemos perguntar se esta importância atribuída a
Deus tem a ver com razões epistemológicas ou releva de motivações pessoais e
sociais, tais como não ser incomodado pela censura religiosa e fazer de conta
que a sua filosofia é uma declaração de guerra ao ateísmo. Deus é que garante
que não me engano quando penso clara e distintamente. Esta garantia não se
estende ao Cogito – verdade que nada pode pôr em causa e que se auto-justifica
absolutamente. Ou seja, o primeiro princípio do sistema do saber não precisa da
garantia epistemológica conferida pela veracidade divina.
São os resultados das operações do sujeito pensante – da razão – que, no
entender de Descartes, precisam da garantia de que Deus não engana. Se concebo
clara e distintamente que o triângulo é um polígono de três lados e que 45 + 3
= 48, por mais evidente que isto me pareça, preciso de ter a certeza de que Deus
existe como ser perfeito ou não enganador. As ideias claras e distintas,
excepto a da minha existência como condição do acto de duvidar. Ora, é aqui que
começam, segundo vários críticos, os problemas. Em primeiro lugar, a prova da
existência de Deus parte da ideia clara e distinta de perfeição. Pretende-se o
quê? Provar a existência de um ser que garanta a veracidade das ideias claras e
distintas que o sujeito pensante forma. Mas isto é um argumento circular:
prova-se o que se quer concluir mediante a própria conclusão.
No fundo, o argumento é este:
Sei que Deus existe porque concebo muito clara e distintamente a sua
existência.
O que me garante que essa ideia clara e distinta é verdadeira?
O facto de Deus existir e não ser enganador.
Em suma, Deus garante a clareza e distinção da ideia de perfeito e a
clareza e distinção dessa ideia serve para provar que Deus existe.
Os problemas não ficam por aqui: Por que razão tem de ser Deus a causa da
ideia de perfeito? É o sujeito pensante que a descobre. Será que é impossível
ser ele a sua causa?
Por outro lado, podemos perguntar se a desconfiança que se abateu sobre o
entendimento ou razão dada hipótese do Deus enganador se desvanece quase
miraculosamente, entregando-se a uma razão que ainda duvida que 2 + 2 somem realmente
4 a tarefa de provar a existência de um ser supremo.
Se estas críticas tiverem fundamento, então temos de concluir que
Descartes não ultrapassou completamente o cepticismo ou que lançou a primeira
pedra do seu projecto de constituição de um sistema do saber sólido e seguro,
mas não passou realmente daí.
6. Em que consiste a prova da existência de Deus pela ideia de perfeito?
Qual o seu objectivo? Considera-a uma prova convincente? Caso não seja uma
prova convincente, que problemas decorrem daí para o projecto cartesiano de
garantir que o nosso conhecimento claro e distinto é absolutamente seguro.
R: Eis a prova:
1 – Sei que sou imperfeito. Duvidar de tanta coisa é sinal de
imperfeição.
2 – Mas como sei que duvidar é sinal de imperfeição? Porque tenho
consciência do que é ser perfeito, ou seja, tenho no meu pensamento a ideia do
que é ser perfeito.
3 – A ideia de ser perfeito é, assim, uma ideia clara e distinta.
4 – Se está no meu pensamento, se sou eu que a descubro, será que sou eu
o seu autor? Não. A causa da ideia de um ser perfeito não pode ser causada por
um ser imperfeito.
5 – Por que razão não pode a ideia de um ser perfeito ser causada por um
ser imperfeito? Porque seria absurdo que o efeito – a ideia de perfeito –
tivesse mais realidade e perfeição do que a causa – nesta hipótese o sujeito
pensante.
6 – Só um ser perfeito pode ser causa da ideia de perfeito.
7 – Esse ser perfeito é Deus.
8 – A ideia de perfeito existe. O que existe tem de ter uma causa. Não
pode, neste caso, ser o sujeito pensante. Logo, Deus tem de existir.
O objectivo da prova é garantir a objectividade das ideias claras e
distintas, em especial das ideias matemáticas que tinham sucumbido diante da
suspeita de que Deus podia enganar. Provando a existência de Deus como ser
perfeito ou não enganador – não é por acaso que a prova parte da ideia de
perfeito –, Descartes afirma que a partir de agora o que concebo como evidente
(claro e distinto) é verdadeiro não só no momento em que a evidencia está
presente na minha consciência como também quando não estou a pensar nela.
A prova é, sem dúvida, bem urdida e imaginativa, o que é apanágio de
Descartes. Contudo, algumas sombras se podem projectar sobre ela.
Deus vai garantir a verdade das crenças claras e distintas. Por outras
palavras e dado o que aconteceu no 3.º nível de aplicação da dúvida, para ter a
certeza de que as minhas ideias claras e distintas são verdadeiras, tenho de
saber se um Deus perfeito ou não enganador existe. Mas a prova baseia-se na
ideia clara e distinta de perfeição. Se, antes de completar a prova, a
existência de Deus não está provada, então essa ideia clara e distinta de
perfeição pode ser uma ilusão ou ser falsa. Assim, uma premissa frágil não pode
conduzir a uma conclusão sólida. Se só Deus pode garantir que não me engano
quando penso clara e distintamente, como pode Descartes garantir que não se
engana quando concebe Deus como um ser perfeito? E recorrer à tradição para
homologar essa ideia não parece adequado, dado que tudo está sob suspeita,
excepto o Cogito.
Admitindo que estas críticas não são satisfatórias, podemos dizer também
o seguinte: Deus vai garantir a verdade das crenças claras e distintas. Mas
como só Deus pode garantir a verdade dessas ideias claras e distintas, ao
partir de uma ideia como a de perfeição e ao considerá-la clara e
distinta, eu estou a pressupor como já existente aquilo cuja existência vou
demonstrar.
Os problemas não ficam por aqui: Por que razão tem de ser Deus a causa da
ideia de perfeito? É o sujeito pensante que a descobre. Será que é impossível
ser ele a sua causa?
Por outro lado, podemos perguntar se a desconfiança que se abateu sobre o
entendimento ou razão dada hipótese do Deus enganador se desvanece quase
miraculosamente, entregando-se a uma razão que ainda duvida que 2 + 2 somem
realmente 4 a tarefa de provar a existência de um ser supremo.
Se estas críticas tiverem fundamento, então temos de concluir que
Descartes não ultrapassou completamente o cepticismo ou que lançou a primeira
pedra do seu projecto de constituição de um sistema do saber sólido e seguro,
mas não passou realmente daí.
7. Descreva sucintamente como Descartes parte da dúvida e atinge uma verdade
indubitável.
R: Só a dúvida separa o verdadeiro do falso. Vou duvidar para encontrar
um conhecimento absolutamente verdadeiro que sirva de fundamento a todos os
outros, um princípio primeiro e absoluto. Como quero encontrar um conhecimento
desse tipo, não vou fazer a mínima concessão. Considerarei falso o que por
pouco que seja me pareça duvidoso. Se houver uma razão para duvidar de uma
crença, deixarei de lhe dar qualquer crédito. Como não vou percorrer o vasto
conjunto das minhas crenças de uma ponta à outra, basta que submeta a exame as
crenças fundamentais em que se baseia o saber dos meus contemporâneos.
Nenhuma dessas crenças resiste. A crença de que o conhecimento começa com
a experiência não pode ser fundamento de nada porque os sentidos são
enganadores e os erros perceptivos muito frequentes. A crença imediata na
existência do mundo físico é abalada pela suspeita desencadeada pela enorme
dificuldade em distinguir o que é real do que é imaginário. E a crença na
capacidade intelectual da minha razão/entendimento é abalada pela suspeita de
que posso ter sido criado por um ser que virou todo o meu intelecto do avesso e
me faz confundir o verdadeiro com o falso sem eu disso me aperceber.
Feitas as contas, nada parece poder servir de alicerce ao sistema do
saber. O sujeito que exerceu o acto de duvidar pôs em causa todo o tipo de
objectos – sensíveis e inteligíveis – e ficou sem certeza alguma. Mas no
momento em que parece render-se ao cepticismo, Descartes reflecte e vê que quem
duvida é iludido e enganado, tem pelo menos que existir. Isso é indubitável.
Assim se chega à primeira verdade fundamental: um sujeito que duvida de tudo,
mas que não pode duvidar de que existe. Essa existência é a condição sem a qual
não se pode exercer o acto de duvidar. A partir daqui, Descartes terá uma base
firme – puramente racional – para descobrir novas verdades sobre si e sobre a realidade
em geral.
8. O projecto cartesiano é o de dar um fundamento metafísico – absoluto – ao
conhecimento humano. Quais são os três princípios metafísicos fundamentais do
sistema do saber? Qual é o mais importante?
R: Dar um fundamento metafísico ao saber significa dar-lhe um fundamento
absoluto, isto é, que não se baseia na experiência.
Ao descobrir o Cogito, Descartes pensa ter descoberto tal fundamento
metafísico porque o Cogito – Penso logo existo – é uma verdade absoluta e
radical. Imediatamente a seguir, descobre a natureza ou essência do sujeito
pensante – é uma razão pura, uma alma que, não precisando do corpo para
existir, se distingue radicalmente deste. O corpo é algo que, no momento da
descoberta da primeira verdade, não sabemos se existe ou não. Estas duas
verdades metafísicas são alicerces do novo saber que Descartes pretende
constituir de forma ordenada e dedutiva. A primeira derrota o cepticismo e
afirma-se como modelo e critério de verdade, ao mesmo tempo que nos vai dirigir
para novos conhecimentos. A segunda é importante porque separa o material do
espiritual lançando as bases de uma ciência da natureza que vai conceber o
mundo físico como realidade puramente extensa (Uma máquina dotada de extensão e
movimento) e por isso plenamente inteligível, afastando qualquer referência a
uma visão teleológica e finalista própria do aristotelismo.
Mas como o sujeito pensante não consegue por si garantir a verdade e
objectividade das ideias claras e distintas que forma sobre os objectos do
mundo, Descartes julga necessário recorrer à garantia divina e por isso se
empenha em provar a existência de um ser perfeito que afaste de vez a suposição
muito frágil, mas suficientemente inquietante, do Deus enganador. Só assim a
objectividade e imutabilidade dos saberes (o que é verdadeiro será sempre
verdadeiro) alcançados pelo sujeito racional se estabelece e justifica. Por
outras palavras, é o sujeito ou a razão que conhece, mas a garantia de que eles
não são subjectivos e variáveis só pode ser dada por Deus. Este é a verdadeira
raiz da árvore do saber.
O que há de curioso nesta posição é que todo o percurso cartesiano da
dúvida ao Cogito é determinado pela exigência de autonomia da razão em relação
à experiência e à tradição, pela vontade de devolver a razão à posse de si
mesma, libertando-a de dependências externas. Mas não é assim que a história
acaba. O próprio Descartes declara surpreendentemente que «O ateu não pode ser
geómetra». Descartes libertou a razão da dependência em relação à experiência
como racionalista convicto que era, mas tornou-a dependente de Deus, tese para
nós surpreendente, mas também novidade para os seus contemporâneos. Que haja
razões extrafilosóficas para esta atitude não cabe nesta introdução ao
pensamento cartesiano.
9. O que distingue o racionalismo cartesiano do
racionalismo kantiano?
R: São vários os aspectos que diferenciam a gnosiologia kantiana da
cartesiana:
1 – A atitude em relação à experiência.
Kant considera que todo o conhecimento começa com a experiência e não
pode ultrapassar os dados da experiência. Descartes considera que a
experiência, dados os erros dos sentidos, não pode ser fonte credível de
conhecimentos. O conhecimento começa com a razão e atinge realidades
metafísicas desde que aquela se apoie na veracidade divina.
Kant considera que o conhecimento objectivo não deriva da experiência,
mas sim de formas a priori do sujeito cognoscente. Descartes
está de acordo, mas não concebe o fundamento dessa objectividade como Kant.
2 – A atitude em relação à razão.
Descartes entende que só há conhecimento certo e seguro da realidade se a
razão se libertar da dependência em relação à experiência, ou seja, aos
sentidos. Kant não admite que haja um conhecimento puramente racional. A razão
pura nada conhece. É precisamente para criticar esta pretensão do racionalismo
tradicional do qual Descartes é um dos expoentes que Kant escreve uma obra cujo
título é sintomático: Crítica da Razão Pura.
3 – A atitude em relação aos limites do conhecimento.
Descartes afirma que a razão apoiada na veracidade divina e nas ideias
inatas pode conhecer a realidade na sua totalidade, ou melhor dizendo, os
princípios gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que
podem ser conhecidas.
Para Kant, a razão, em sentido lato, está limitada ao que a sensibilidade
pode dar para conhecer. Os objectos da intuição sensível marcam os limites do
que se pode conhecer. Deus, alma e mundo são simples ideias a que não
corresponde qualquer dado sensível. São pensamentos sem conteúdo.
4 - A atitude em relação à possibilidade do conhecimento.
R: Em Descartes, o conhecimento objectivo não é possível sem uma garantia
metafísica. Sem Deus e a sua veracidade, todo o conhecimento é incerto e
inseguro. Para Descartes, a metafísica é a raiz da árvore do saber.
Para Kant, o conhecimento objectivo é possível sem uma garantia
metafísica. O conhecimento objectivo deriva do sujeito humano e das
formas a priori com que está equipado.
Descartes nunca julgou possível garantir, fazer
repousar a certeza unicamente sobre o espírito humano. Daí a ambiguidade em falar
do Cogito como primeiro princípio do sistema do saber e a necessidade
imperiosa de, reconhecida a imperfeição deste, fundar o saber em Deus, ser
perfeito e verídico.
O fundamento
e o valor da
ciência encontram-se, para Descartes, fora do espírito humano (Deus), ao
passo que em
Kant se dá o contrário. A ciência humana não necessita de garantia divina. O
problema do
conhecimento do mundo não é colocado para lá das forças do homem. O homem pode fazer ciência,
mesmo que seja ateu. Quer Deus exista quer não exista, a ciência em nada é
afectada. Ela só depende do homem.
5 – A atitude acerca da relação entre ciência e metafísica.
Como para Kant a metafísica não pode ser uma ciência – não podemos
conhecer realidades que não podemos espacializar e temporalizar, ou seja, não
podemos conhecer realidades metafísicas –, não faz sentido falar de dar um
fundamento ou garantia metafísica à ciência. Se a metafísica não é uma ciência,
como pode ser fundamento da ciência?
Contrariamente a Descartes, que se apoia numa nova
metafísica, em novos princípios ou alicerces para construir o edifício
científico, Kant verifica e justifica que não é possível fundar a ciência,
conhecimento que progride, sobre a metafísica, disciplina onde reina a luta interminável entre teses
opostas e, portanto, saber confuso, que não progride. Como fundar a ciência
sobre a metafísica se sabemos, através da análise transcendental das fontes,
valor e limites
do conhecimento humano, que a metafísica não tem valor científico? Não faria
sentido
construir sobre algo inexistente uma física e uma matemática que são ciências
existentes de
facto.
Se a propósito de Kant e
Descartes se fala de fundamentação da ciência, temos de distinguir o tipo de
fundamentação:
a) Em Descartes temos uma fundamentação
metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas
sobretudo Deus, que é o verdadeiro
pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir).
b) Em Kant temos uma fundamentação
transcendental e não transcendente do conhecimento científico, isto é, uma análise das
condições a priori de possibilidade do conhecimento científico que não remete para lá
das faculdades humanas intervenientes
na constituição da ciência (entendimento e sensibilidade e de algum modo a razão). A fundamentação da ciência
esgota-se na análise das funções das faculdades que constituem o nosso poder de conhecer. Não há necessidade
de referência a uma garantia
metafísica, no sentido tradicional do termo.
6 – A atitude em relação a Deus.
Em Kant, Deus é uma ideia da razão e
nada mais. Não podemos saber se Deus existe. Deus é uma realidade metafísica cuja existência não podemos demonstrar.
A ideia de Deus (tal como as outras ideias) é uma forma ou
estrutura de uma faculdade do sujeito: a razão. É portanto uma estrutura ou
forma do sujeito e não algo que transcende este. Deus é transcendente; a ideia
de Deus é uma estrutura transcendental do
sujeito.
Se é transcendental, a ideia de Deus é condição de
possibilidade a priori de algo. De quê? Não do conhecimento, mas sim do progresso
do conhecimento. A ideia de Deus é um ideal porque representa um ser que supomos omnisciente, que não só supomos criador de tudo,
mas também conhecedor de tudo. Agir como se fosse possível conhecer tudo
absoluta e definitivamente, ter a chave que explica o mistério de todas as
coisas, é agir segundo a ideia de Deus. É essa a regra que a razão dá ao
entendimento para que este nunca perca a sua dinâmica cognitiva. Assim, a
razão é condição de possibilidade do progresso do conhecimento científico.
Em Descartes, Deus é a garantia da verdade das ideias claras e distintas.
Podemos demonstrar a sua existência. É uma ideia a que corresponde uma
realidade efectiva. E essa realidade efectiva é que torna objectivos os nossos
conhecimentos.
Pedro Mota
Escola de Filosofia
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Lola
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