Um paradoxo sobre direitos
morais
Para colocar uma questão que nos
leva a uma das clivagens centrais na ética filosófica, preciso só de seis
dessas pessoas. Seria aceitável matar intencionalmente uma delas, sem o seu
consentimento, se isso fosse necessário para salvar as outras cinco?
Pensemos em pessoas. Não em pessoas díspares, mas em pessoas que
se assemelham numa série de aspetos importantes: todas elas são inocentes, têm
a mesma idade, as mesmas relações familiares, o mesmo desejo de continuar a
viver, o mesmo a perder com a morte. Como são novas e os seus exames médicos
nada indiciam de preocupante, todas têm muito a perder com a morte. Caso
morram, farão a mesma falta aos que lhes eram mais próximos e ao mundo em
geral.
Para colocar uma questão que nos leva a uma das clivagens centrais
na ética filosófica, preciso só de seis dessas pessoas. Seria aceitável matar intencionalmente
uma delas, sem o seu consentimento, se isso fosse necessário para salvar as
outras cinco?
Os chamados consequencialistas, se pertencerem à
estirpe mais pura da corrente, darão uma resposta afirmativa. Em seu entender,
devemos fazer sempre aquilo que resulte nas melhores consequências, vistas as
coisas de uma perspetiva imparcial. Não havendo melhor alternativa, dirão,
seria imperioso — e não meramente aceitável — matar a pessoa em causa para
salvar as outras cinco.
Os deontologistas discordam. Embora
costumem pensar que geralmente é boa ideia fazer aquilo que resulte no maior
bem, julgam que a beneficência está limitada por certos direitos
morais, como o direito à vida. Se a escolha fosse entre salvar uma pessoa ou
salvar cinco, sem violar os direitos de ninguém, o melhor seria salvar as
cinco. No entanto, violar o direito à vida de uma pessoa para salvar cinco está
fora de questão. Para alguns deontologistas, este direito é absoluto. Para
muitos outros, poderá ser justificadamente violado em algumas circunstâncias
possíveis — por exemplo, para salvar centenas, milhares ou milhões de vidas —,
mas não para evitar que apenas cinco pessoas morram.
É fácil simpatizar com a perspetiva deontológica. É tentador
considerar monstruosa a posição dos consequencialistas. Todavia, está última
está livre da avalanche de complicações que atingem a primeira. Uma das mais
espinhosas tornou-se conhecida por paradoxo da deontologia. Quem a
identificou foi Robert
Nozick, um deontologista. Para trazê-la à luz, imaginemos uma situação
ligeiramente diferente da inicial. Se não matarmos uma pessoa —
intencionalmente e sem o seu consentimento, subentenda-se daqui em diante —,
cinco pessoas morrerão, mas não de uma forma “natural”, isto é, de doença ou
por causa de um acidente. Não, essas cinco pessoas morrerão porque outro
agente as matará. Podemos supor que esse facínora nos faz a
proposta seguinte: se nós não matarmos uma pessoa, ele matará cinco pessoas,
deixando a primeira em paz; se a matarmos, as outras cinco serão poupadas.
E agora, seria aceitável matar uma pessoa para salvar cinco? O
deontologista insistirá que não. Ele dirá que o direito à vida é uma restrição
relativa ao agente. É uma restrição porque restringe o que é
admissível fazer na prossecução dos nossos objetivos, mesmo dos mais louváveis,
como a promoção imparcial do bem. E essa restrição é relativa ao agente porque
impõe a cada um de nós, um agente moral, o dever de nós
mesmos não matarmos inocentes, independentemente do que os
outros agentes morais fizerem.
É esta relatividade ao agente que se afigura paradoxal. Afinal, se
matar pessoas inocentes é um ato especialmente grave, de tal forma que seria
errado matarmos um inocente para salvar cinco de uma morte “natural”, parece
que se justificará minimizar a ocorrência de atos deste tipo, isto é, parece que
será racional nós mesmos matarmos um inocente se isso for necessário para
evitar que outro ou outros agentes matem vários inocentes. Mais
contundentemente: se é tão importante que o direito à vida não seja violado,
certamente será preferível violarmos este direito uma vez para evitar que
outros o violem várias vezes. Contudo, o deontologista julga o contrário — e
isto expõe-no à acusação de irracionalidade.
Como responder à acusação? Nozick propõe uma resposta de
inspiração kantiana. As pessoas são fins, diz-nos, e não meros meios, pelo que
não podem ser sacrificadas ou usadas para se atingir outros fins sem o seu
consentimento.
Não creio que esta resposta resolva o paradoxo. Admitamos que as
pessoas não são “meros meios”, pelo que sacrificá-las sem o seu consentimento é
especialmente mau. Se aceitarmos a proposta do facínora, sacrificaremos uma
pessoa sem o seu consentimento — é verdade. Mas também é verdade que, se não a
aceitarmos, cinco pessoas serão sacrificadas,
tratadas como “meros meios” com igual gravidade, o que será muito pior. Nesse
caso, por que razão deveríamos declinar a proposta?
Numa linha de pensamento semelhante, afirma-se que as pessoas —
agentes dotados de racionalidade, consciência de si, autonomia — têm um
estatuto moral superior ao dos meros animais. Em virtude desse estatuto, as
pessoas gozam de uma certa inviolabilidade. As restrições
deontológicas, relativas ao agente, refletem essa inviolabilidade.
Temos de admitir que, reconhecidas restrições deontológicas, as
pessoas gozarão de uma certa inviolabilidade: não mataremos uma pessoa nem para
evitar que outro agente mate cinco. Contudo, há que olhar para a outra face da
moeda. Ao mesmo tempo que torna as pessoas mais invioláveis, ou mesmo
absolutamente invioláveis, a restrição contra matar também as torna menos salváveis:
não salvaremos as cinco pessoas que caíram nas mãos do facínora. Ou seja, seria
aceitável salvar cinco galinhas matando uma, mas salvar cinco pessoas matando
uma, isso já não pode ser. As galinhas ficam a ganhar! Tornando as pessoas
menos salváveis do que os animais, como poderemos dizer que as restrições
deontológicas refletem o estatuto moral superior das primeiras?
O direito à vida é apenas uma das restrições relativas ao agente
que os deontologistas habitualmente aceitam. Outros exemplos dessas restrições
são o direito à integridade física e psicológica, o direito de não ser enganado
e os direitos de propriedade. Para o deontologista, as pessoas têm estes
direitos, que lhes conferem um “escudo moral” muito resistente. Em virtude
destes direitos negativos, que consistem em razões
relativas ao agente para não agir de certas formas, à
partida será errado torturar, corromper ou roubar — e isto mesmo que torturar
reduza a tortura, que corromper reduza a corrupção e que roubar reduza o roubo.
Mas porquê?
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