Estatuto do conhecimento científico
Antes de mais....
Depois da reflexão gnosiológica (sobre o conhecimento) feita em que foram abordadas as teorias filosóficas acerca do conhecimento defendidas por Descartes e David Hume, iremos agora focalizar a nossa atenção num tipo de conhecimento particular: o conhecimento científico.
A
disciplina filosófica ou área da filosofia que reflecte sobre o
conhecimento científico tem o nome de Epistemologia ou Filosofia das Ciências.
Afinal de que trata a Filosofia da Ciência? Que problemas aborda?
Os temas:
- Conhecimento vulgar e conhecimento científico
- Características que tornam um conhecimento científico
- Comparar a ciência com o senso comum, a partir dessas características
- Discutir a importância do senso comum para a construção da ciência
- Ciência e construção — validade e verificabilidade das hipóteses
- Ciência e Método - Método indutivo e Método Hipotético-dedutivo.
- A racionalidade científica e a questão da objectividade
Os problemas:
- O que é a ciência (quais a
características do conhecimento científico)?
- O que há de comum e de diferente entre o
conhecimento científico e o conhecimento vulgar (ou senso comum)?
- Há ou não continuidade entre o conhecimento vulgar e conhecimento cientifico?
- Em que consiste o método científico?
- Como se distinguem as teorias científicas das não-científicas?
- Podem as teorias científicas ser verificadas?
- Em que consiste a perspetiva indutivista do método científico
- Quais as objeções à perspetiva indutivista.
- De que modo o falsificacionismo de Popper procura responder às dificuldades levantadas por essas objeções?
- Como se poderá avaliar a resposta de Popper?
- Será a ciência é objetiva?
- Como progride a ciência?
- O problema da objetividade e do progresso da ciência
- Que perspetivas apresentam Popper e Kuhn acerca da objetividade e do progresso da ciência
- Comparar as perspetivas de Popper e de Kuhn.
A. O conhecimento vulgar ou senso comum
- é o primeiro nível de conhecimento que se constitui a partir da apreensão espontânea e imediata do real;
- adquire-se no trato directo com as coisas e com os outros homens,
- não resulta de nenhuma procura sistemática e metódica, nem exige qualquer estudo prévio, como o conhecimento científico.
- é comum a todos os homens e forma as condições materiais e espirituais em que a realidade é fixada como mundo de confiança, intimidade e familiaridade.
- difere, ou pode diferir, de comunidade para comunidade, no espaço e no tempo.
- É um saber que inclui aquelas crenças amplamente partilhadas cuja justificação decorre da experiência colectiva e acumulada dos seres humanos
- O senso comum abrange aquelas coisas que quase toda a gente sabe e que se vão aprendendo, desde muito cedo, de uma forma espontânea.
- Faz parte da consciência de um povo e ser funcional,
- Não proporciona a compreensão dos fenómenos, das coisas e da realidade
- Pode conduzir a uma visão errónea, ilusória, aproximado da realidade.
- O senso comum um conhecimento subjectivo, assistemático, espontâneo, superficial e dogmático.
- Nasce da experiência vivida
- É um saber feito através da experiência
- É um saber espontâneo e sensorial
- É o contacto imediato e directo com o real. Exemplo: Hoje está quente!
- As tradições que passam de geração em geração
- As nossas experiências de vida traduzem-se na forma como vemos o real
- As experiências práticas do quotidiano.
- Conviver
- Integração num grupo social
- Lidar imediata e sensorialmente com o real.
- vulgar
- empírico (provem da experiência)
- aparente
- ingénuo
- imediato
- sensorial
- superficial
- variável (de homem para homem, de cultura para cultura)
- subjectivo (varia de sujeito para sujeito)
- espontâneo
- dogmático (não aceita a crítica)
- acrítico
- assistemático (não organizado)
- directo
- constata/regista o que capta pelos sentidos
- não explica
- heterogéneo
- acumulado (soma "conhecimentos" e não os relaciona)
- é mais um reconhecimento e menos um conhecimento
- constata mas não descobre, não cria nem constrói
- lida com qualidades: quente, frio, alto baixo
- lida com o facto bruto (facto tal qual surge na natureza)
- avulso (responde a cada situação à medida que ela surge)
- faz observações ocasionais: desprovidas de reflexão, organização e sistematização
- não prevê
- não usa instrumentos
- gera ambiguidades
- falível
- faz generalizações falsas
- Intuitivo
- Dependente de preconceitos
- Dado e não construído
- Ilusório
- sincrético
- imperfeito
- falacioso
- não é rigoroso
- limitado
- pragmático
- Orienta a vida quotidiana
- tem um carácter prático
- satisfaz necessidades básicas
- orienta as nossas acções
- permite resolver problemas simples
- o seu grande objectivo é a prática
B. O conhecimento científico
- Resulta de um esforço intelectual sistemático, metódico e controlado pela experiência para explicar, tão profundamente quanto possível, os fenómenos conhecidos.
- Os cientistas testam as teorias, confrontam-nas com a experiência e têm uma disposição geral para as modificar caso, estas, não estejam de acordo com aquilo que observam no mundo.
- Para isso, dispõem de um método próprio assistido por tecnologias e instrumentos
- Usa uma linguagem técnica adequada para representar o objecto do
seu estudo.
- A ciência é um conhecimento objectivo, sistemático, metódico e crítico.
- Crítico
- Rigoroso
- Racional (construção do intelecto humano)
- Autónomo
- Reversível/revisível (as verdades científicas são provisórias podendo ser revistas, aperfeiçoadas ou mesmo, substituídas.
- Metódico (usa técnicas e regras no método científico)
- Construído (através de teorias e instrumentos)
- Homogéneo
- Objectivo – intersubjectivo
- Positivo – operatório (submetido aos factos)
- Sistemático
- Especializado
- Fático (estuda os factos)
- Claro e preciso
- Comunicável (não é privado, é publico)
- Usa linguagem matemática
- Verificável (através da experiência/experimentação)
- Um sistema de ideias ligadas entre si
- Explicativa (explica os factos através de leis científicas)
Um pouco de história da ciência
- A ciência é uma construção que, podemos dizer seguramente, se inicia na Grécia antiga e que nos seus primórdios não se distinguia da filosofia.
- Os fisiólogos (filósofos pré-socráticos) procuraram explicar as coisas pelas suas causas, como afirmou Aristóteles. Nos séculos XVI e XVII, com Galileu, Copérnico, Francis Bacon, Kepler, Giordano Bruno, Newton, a ciência começa um processo de autonomização em relação à filosofia e transforma-se, no que hoje se denomina ciência moderna, num conhecimento que, recorrendo à linguagem matemática, procura formular leis capazes de explicar os fenómenos.
- A matematização do real, a experimentação, a ideia de determinismo, a ideia de causalidade e a lei científica marcam o modelo de racionalidade científica da ciência moderna.
- A ciência ganha um novo impulso com os trabalhos de Einstein, Heisenberg e Bohr. Porém, a teoria da relatividade e a física quântica estão marcadas por um modelo de racionalidade radicalmente diferente da do período moderno.
- O modelo de racionalidade científica da ciência do século XX (ciência pós-moderna) está marcado pelas ideias de probabilidade, incerteza, indeterminismo e relatividade.
- A ciência foi ganhando, desde a sua criação, o estatuto de único conhecimento legítimo e fiável e representa, hoje, o estado mais avançado de evolução do conhecimento.
Objecto e método da Ciência
- Não é consensual que exista apenas um modelo da ciência.
- O objecto das ciências da natureza (ex: Biologia, Química) é diferente do das ciências sociais e humanas (Sociologia, Economia) e do das ciências formais (ex: Matemática, Lógica), como é diferente a metodologia que cada ciência usa para abordar o seu objecto.
- Comte defendia que todas as Ciências deveriam adoptar a metodologia das Ciências da Natureza
- Dilthey propôs a distinção entre Ciências da Natureza e Ciências do Espírito. Às Ciências da Natureza, atribuiu-lhes o objectivo de explicar os fenómenos físicos. Às Ciências do Espírito, atribuiu-lhes a finalidade de compreender os fenómenos sociais e humanos.
- É o rigor da linguagem e do método, ainda que
diversos, que assegura o estatuto de cientificidade das diferentes ciências.
Um dos problemas abordados pela Filosofia da Ciência....
A história da filosofia
dá-nos duas reflexões epistemológicas, radicalmente diferentes,
sobre a "relação" do conhecimento vulgar na produção do conhecimento
científico.
• Karl Popper
admite que o senso comum é um ponto de partida, ainda que inseguro, para a
ciência e para a filosofia. Sendo a crítica o grande instrumento para progredir
do senso comum para um conhecimento mais profundo do real.
A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos
devem partir do senso comum.
Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão
"senso comum" que estou aqui a usar é muito vaga, simplesmente porque
denota uma coisa vaga e mutável - os instintos, ou opiniões de muitas pessoas,
às vezes adequados ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos.
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como o
senso comum? A minha resposta é: porque não pretendemos nem tentamos construir
(...) um sistema seguro sobre esses "alicerces". Qualquer das nossas
muitas suposições de senso comum (...) da qual partamos pode ser contestada e
criticada a qualquer tempo; frequentemente, tal suposição é criticada com êxito
e rejeitada (por exemplo, a teoria de que a Terra é plana). Em tal caso, o
senso comum é modificado pela correcção, ou é transcendido e substituído por
uma teoria que, por menor ou maior período de tempo, pode parecer a certas
pessoas como mais ou menos "maluca" (...). Toda a ciência e toda a
filosofia são senso comum esclarecido. (...)
A minha primeira tese é, pois, que o nosso ponto de partida é o senso comum e
que o nosso grande instrumento para progredir é a crítica.
K. Popper (1975), Conhecimento Objectivo
• Gaston Bachelard,
pelo contrário, considera o senso comum um obstáculo epistemológico, algo que
impede a produção de conhecimento científico e com o qual é necessário fazer um
corte epistemológico.
"A ciência, na sua necessidade de realização
como no seu princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se lhe acontece, num
aspecto particular, legitimar a opinião, é por outras razões que não aquelas
que fundamentam a opinião; de tal maneira que a opinião não tem de direito qualquer
razão. A opinião pensa mal; ela não pensa: ela traduz necessidades em
conhecimentos. Designando os objectos pela sua utilidade, ela interdiz-se de os
conhecer. Nada se pode fundar sobre a opinião: é necessário primeiro
destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a superar. Não bastará, por exemplo,
rectificá-la em pontos particulares, mantendo, como uma espécie de moral
provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico
interdiz-nos de ter uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre
questões que nós não sabemos formular claramente".
G. Bachelard (1996), La Formation de l'Esprit Scientifique, Paris, J. Vrin, p. 14.
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