Umberto Eco e a Internet
Defensor acérrimo do
livro impresso e crítico do mundo digital, o escritor italiano Umberto Eco
(1932-2016), filósofo, estudioso de estética e semiótica, que morreu nesta
sexta-feira, dia 19, aos 84 anos, manteve-se um ativo pensador da tecnologia e
da comunicação até perto do fim da vida. Ele dizia que a Internet é perigosa
para os ignorantes e útil para os sábios. Porque, argumentava, a rede mundial
de computadores não filtra o conhecimento e congestiona a memória dos usuários.
Recordo algumas das suas ideias retiradas de várias entrevistas à imprensa nos
últimos anos.
“O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não
precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. (…) Acho que os tablets
e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que
para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso
ainda não é possível fazer num tablet.”
“A Internet não seleciona a informação. Há de
tudo por lá. A Wikipédia presta um mau serviço ao internauta. Outro dia
publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e
absurdos. A Internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem
hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de
informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação em demasia
faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com os
animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e
líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos
dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só
citam a sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe
sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o
que for. Hoje, na Internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância.
Ora, isso não é conhecimento.”
“Se você sabe que sites e bancos de dados são
confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos
ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a Internet do que aquele pobre
senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a
televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele
poderia precisar, ainda que informação idiota. A Internet é perigosa para o
ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece –
e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será
dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a Internet para as mais
variadas inutilidades: jogos, conversas online e busca de notícias
irrelevantes.”
“[Há uma solução para o excesso de informação?]
Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na
experimentação quotidiana com a Internet. Fica aí uma sugestão para as
universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem
para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.”
“As redes sociais deram o direito à fala a
legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de
vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a
boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um vencedor do Prémio
Nobel.”
“O problema da Internet é que produz muito
ruído, pois há muita gente a falar ao mesmo tempo. Faz-me lembrar quando na
ópera italiana é necessário imitar o ruído da multidão e o que todos pronunciam
é a palavra ‘rabarbaro’. Porque imita esse som quando todos repetem ‘rabarbaro
rabarbaro rabarbaro’, e o ruído crescente da informação faz correr o risco de
se fazer ‘rabarbaro’ sobre os acontecimentos no mundo.”
“Populismo mediático significa apelar
diretamente à população através dos meios de comunicação. Um político que
domina bem o uso dos meios de comunicação pode moldar os temas políticos fora
do parlamento e, até, eliminar a mediação do parlamento.”
Fontes: “Época” (Brasil), “Diário de Notícias”
(Portugal) e “The New York Times” (Estados Unidos)
Umberto Eco: "No momento em que todos têm direito à palavra na
internet, temo-la dada aos idiotas"
O escritor Umberto Eco está a lançar o seu mais recente livro: 'Número Zero'. Uma crítica violenta ao esquecimento das pessoas e ao mau jornalismo no que respeita à corrupção política e social. No romance conta a história de um jornal que servirá para pressionar, usando escândalos.
A teoria da conspiração é o prato forte do novo
romance de Umberto Eco. Passa-se em 1992 para que a Internet e Berlusconi não
viessem piorar o cenário em que uma redação falsa se prepara para lançar um
jornal também falso. O escritor gosta do que é falso, até diz que sempre foi
fascinado por isso, mas está irritado com a desatenção que os cidadãos prestam
aos escândalos políticos, económicos e sociais.
Diz que a escrita deste romance o reconciliou com
MIlão, onde vive há 30 anos.
Na entrevista que deu ao DN garante que tudo o que conta, salvo a fantasia sobre o corpo de Mussolini, é verdadeiro, teve processos judiciais e já foi publicado: "O pior do que conto no meu romance não é o que se fez de terrível, mas que as pessoas se estejam nas tintas para todos esses acontecimentos. Vejo que tudo entra por uma orelha e sai pela outra das pessoas, como se as coisas terríveis que se passaram há 50 anos não preocupem ninguém e sejam aceites tranquilamente. Acho que ninguém me quer silenciar pois não sou Roberto Saviano, que conta segredos da mafia atuais. Eu conto coisas sobre as quais até a BBC já fez um documentário."
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O romance Número Zero passa-se antes de Berlusconi.
Era uma personagem demasiado perigosa?
Em 1992 parecia que a situação em Itália estava para explodir, daí que fosse o melhor cenário para o que eu pretendia escrever. Tinha havido uma operação Mãos Limpas, mas mesmo com as condenações por corrupção nada mudou. Berlusconi entretanto foi eleito e o que antes era negócios para financiar os partidos foi substituído pelo enriquecimento próprio. Por isso, neste livro apetecia-me falar de uma época mais longínqua, em que as personagens não sabiam o que iria acontecer mas o leitor sim.
Vive frente ao castelo Sforzesco, que entra no livro.
Por ser uma visão diária, ou por outra razão?
Está no livro por ter sido a única documentação que
precisei de investigar - o resto estava todo na internet. Ao encontrar um livro
sobre os lugares secretos de Milão descobri vários locais que desconhecia e
coisas sobre os subterrâneos do castelo que se vê da minha janela. Não sei se é
verdade ou falso, mas diz-se que existem coisas horríveis nas suas galerias e
assim tornou-se o cenário perfeito para a conspiração à volta de Mussolini.
Porque faz de Mussolini uma das grandes provocações do
livro?
É a forma de meter em cena a psicologia do conspirador
a coberto da influência eterna do fascismo.
Enquanto escrevia o livro passou a acreditar em alguma
teoria a que antes não dava importância?
A única teoria falsa no romance é a defendida por
Braggadocio, quanto ao resto é tudo verdade. Talvez em alguns dos casos que
refiro os responsáveis não tenham sido punidos e escaparam à justiça. Como é o
caso do golpe de Estado tentado pelo príncipe Borghese e que falhou. Porque
falhou? Não sei. A história disso tudo foi revelada na imprensa, houve uma
comissão para investigar, mas nada se apurou.
Mas enquanto escrevia nunca se pôs a pensar "e se
fosse verdade"?
Sempre fui fascinado pelo falso.
Em 1967 escreve uma Guerrilha Semiológica contra a
uniformização da cultura mediática...
...Que foi uma coisa muito mal compreendida! A
Guerrilha Semiológica é isto: na discussão sobre a comunicação dos anos 60
pensava-se sempre em como passar a mensagem. A solução era mudar a mentalidade
face à influência da televisão e era preciso que em frente a cada aparelho
estivesse alguém que explicasse. Isso era a Guerrilha Semiológica, que provocou
até conflitos com os militares.
Está satisfeito com o estado da linguagem atual?
Estar interessado na linguagem também quer dizer que
se é um crítico constante da linguagem. Acredito que o italiano permite dizer
tudo o que se quer, mas há uma maioria de pessoas que emprega mal as palavras e
a lista de clichés impressos nos jornais é uma espécie de espelho paralelo ao
estado da linguagem.
Confia no que lê nos jornais?
Eu vejo as notícias na televisão mas nos jornais leio
principalmente a Opinião. Quanto aos enganos que se encontram na imprensa,
percebo que resultam da obrigação de encher muitas páginas. Até porque reparo
que mesmo os jornais muito importantes se enganam.
Lê jornais em papel ou digital?
Por norma em papel. Nisso sou fiel a Hegel, que dizia
que o jornal é a oração quotidiana do homem moderno. Mas não sou contra o
digital, e se estou no estrangeiro utilizo o iPad para ler os jornais italianos.
Acredita que há futuro para a imprensa tradicional?
Não sei, porque também houve um tempo em que se dizia
que a bicicleta iria desaparecer e tal não aconteceu, pois agora vejo toda a
gente a pedalar. Há uma redescoberta contínua de certas práticas consideradas
em perigo, tanto assim que me dizem que o único setor editorial que está em
crescimento é o da literatura infantojuvenil. O que vejo é que as crianças
ainda gostam de folhear os livros e reparo que cá em casa a primeira coisa que
o neto faz é ir ver os livros. Não liga aos jogos ou à televisão, portanto as
novas gerações poderão continuar a ler e a querer tocar nas páginas de papel,
bem como deixar os restos de bolos colados às páginas e reencontrar essas
marcas na velhice, coisa que não se encontra numa pen ou num disco rígido.
Encontra muitas mentiras sobre si na internet?
Sim, principalmente atribuem-me muitas frases célebres
de outros. Ou mesmo situações erradas como a que me atribuíram há uns anos de
que eu dissera que um escritor famoso tinha morrido e até o jornal The New York
Times me ligou para confirmar. Mas nem sempre confirmam se é verdade, o que já
não me incomoda porque acredito na fraqueza da memória das pessoas. Sabemos
sempre que no dia a seguir já nada é notícia.
Considera ser necessário controlar a internet?
Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em
que vivemos, o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já
tenha dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não
teria havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda a gente
teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito à
palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca seriam
lidos noutro sítio.
Alerta para os campos de concentração mas hoje temos
situações trágicas com os imigrantes do Mediterrâneo ou os que fogem da Líbia
ou do Mali e isso não se evita.
Isso é outra questão, a informação banaliza os
acontecimentos. Dou um exemplo: a primeira vez que se viram na televisão
imagens de uma criança negra cheia de fome e com moscas a rodeá-la foi um
momento marcante, só que agora já ninguém lhes liga devido à vulgarização.
Alguém no outro dia proibia a divulgação de imagens dessas crianças negras com
moscas à volta porque a sua repetição era perigosa. As pessoas habituam-se.
Critica a demasiada informação?
O problema da internet é que produz muito ruído, pois
há muita gente a falar ao mesmo tempo. Faz-me lembrar quando na ópera italiana
é necessário imitar o ruído da multidão e o que todos pronunciam é a palavra
rabarbaro. Porque imita esse som quando todos repetem rabarbaro rabarbaro
rabarbaro, e o ruído crescente da informação faz correr o risco de se fazer
rabarbaro sobre os acontecimentos no mundo. Haver muito ruído é o outro grande
problema da informação contemporânea e esse é um dos temas do meu romance: cada
uma das personagens não era problema, mas todos juntos faziam demasiado
barulho. Portanto, deve-se evitar muito ruído informativo.
Repetiu o que Dante disse um dia sobre as bibliotecas
ocuparem o lugar de Deus. Ainda acredita nisso?
Isso está na parte final da Divina Comédia. Via-se
Deus como a biblioteca das bibliotecas e a soma de todos os saberes possíveis.
O que eu disse foi uma formulação metafísica, até porque é impossível ler tudo
o que existe nas bibliotecas.
Já disse que São Tomás de Aquino é responsável por ter
perdido a fé em Deus e na Igreja. É verdade?
Não se deve interpretar desse modo o que disse,
digamos que a minha crise religiosa começa ao mesmo tempo em que me ocupo de
São Tomás. Ou seja, comecei a tese ainda crente e termino-a já não sendo. No
entanto, deixei S. Tomás no seu próprio tempo, tratei-o com muito respeito e
continua a influenciar-me no pensamento. Ele não é responsável por mais nada.
DN
© João Céu e Silva
24 Maio 2015 — 00:00
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