sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Acção Humana

 



A Acção Humana



Porque é que a Filosofia estuda a Acção Humana?

A Filosofia, enquanto Filosofia da Acção, procura aprofundar o conhecimento do que é ser homem, analisando as acções transformadoras do mundo, dos outros e dele próprio.

O conceito acção, quando aplicado à actividade humana, assume uma multiplicidade de sentidos, o que torna difícil a sua  análise. Etimologicamente, a palavra acção deriva do latim agere, que significa fazer ou agir. 

Alguns autores fazem a distinção entre:

  • o que nos acontece (ocorrências, eventos ou fenómenos naturais e acidentais) - escorregar, perder a carteira, um tsunami. 
  • o que fazemos involuntariamente (actos reflexos ou condutas involuntárias)  - sonhar, respirar, fazer a digestão.
  • o que fazemos voluntariamente (acções propriamente ditas) - ir a um concerto, escolher um curso, ler um livro.

 

 O que é a acção Humana?

Uma acção é um  acontecimento ou ocorrência intencionalmente causado ou originado por um agente ou sujeito.

Que relação há entre Acção e Acontecimento?

Uma acção é um acontecimento. Um acontecimento é algo que se verifica num certo momento e num certo lugar. Em linguagem mais técnica, é um evento espácio – temporalmente enquadrado. 

Imaginemos que o João decide ir à praia. 

Tem de ir a uma praia situada num certo lugar – Vilamoura no Algarve, Portinho da Arrábida em Setúbal ou Praia do Castelo na Costa da Caparica – e num determinado momento - normalmente no Verão, de manhã ou de tarde.

Ficaríamos muito surpreendidos se João dissesse que foi a uma praia em momento algum e que não ficasse em lado nenhum.

 

Uma acção é um acontecimento mas nem todos os acontecimentos são acções. 

Todas as acções são acontecimentos, ou seja, são coisas que acontecem num dado momento e num certo lugar.

Assim, ir à praia é um acontecimento porque vamos a uma praia num determinado local e em dado momento – normalmente no Verão, de manhã ou de tarde. Mas nem tudo o que acontece é uma acção, ou seja, se todas as acções são acontecimentos nem todos os acontecimentos são acções. Um furacão é um acontecimento, mas não é uma acção.

Uma acção é algo que envolve um agente mas nem tudo o que envolve um agente é uma acção.

O que distingue a proposição João foi à praia da proposição João sofreu um ataque cardíaco? A primeira proposição fala-nos de algo que alguém fez. A segunda de algo que simplesmente aconteceu a alguém. Uma acção é um acontecimento que envolve um agente (o sujeito de uma acção).

Uma acção é algo que um agente faz acontecer mas nem tudo o que fazemos é uma acção. Uma acção é algo que acontece por iniciativa do sujeito nela envolvido.

Ir à praia é algo que João faz acontecer, mesmo que não o deseje (é de má vontade que obedece á ordem do pai para se juntar à família).

Sofrer um ataque cardíaco é algo que acontece no organismo do João, mas não resulta de vontade sua.

No primeiro caso, não diremos que João foi à praia por vontade do pai. Foi algo que ele fez. Seja qual for o motivo, por gosto ou por obrigação, ir à praia foi algo que ele fez.

Uma acção é algo que intencionalmente fazemos com que aconteça.

Imaginemos que, inadvertidamente, escorrego numa casca de banana e acabo por entornar uma garrafa de Coca-Cola em cima do livro de um colega que estudava comigo no bar da escola. Sujar o livro do colega foi algo que eu fiz. Mas será isto uma acção? Não, porque não tive intenção de sujar o livro do meu colega, não o fiz de propósito. Estamos perante algo que eu fiz sem querer e assim sendo o livro foi estragado pelo que me aconteceu e não propriamente por mim.

Então….

Uma acção é um acontecimento desencadeado pela vontade e intenção de um agente. Não é um simples acontecimento, não é simplesmente algo que um agente faz, é algo que um agente faz acontecer intencional ou propositadamente.

 

Será que tudo o que o Homem faz poderá ser considerado acção Humana?

 S. Tomás de Aquino (séc. XIII) afirma de que nem tudo o que fazemos ou realizamos constitui uma acção propriamente dita e, por isso, fez a distinção entre actos do homem (tudo o que fazemos enquanto seres da natureza) e acções humanas (tudo o que fazemos enquanto seres racionais e dotados de uma vontade livre.

Os actos (acções) humanos (...) só merecem esse título porque são voluntários e a vontade é um apetite racional específico do homem.

S. Tomás de Aquino, Somme Théologique, Les Actes Humains. Éd. de la Revue des Jeunes

 

Que características tem a acção Humana?

  • Conscientes, isto é, realizadas com conhecimento de causa,  de consequência e de finalidade;
  • Voluntárias, isto é, realizadas livremente, porque escolhemos realizá-las desta forma, conscientes de que poderíamos ter escolhido outras ou mesmo até não as realizar. Implicam a autonomia do querer;
  • Intencionais, porque têm um propósito ou intenção, isto é, orientando-se para determinado fim;
  • Racionais, porque dependem da capacidade de ponderação e avaliação racional do agente por forma a poder escolher modificá-las ou realizá-las;
  • implicam a responsabilidade de quem as pratica, porque  o seu autor ou sua causa é capaz de responder por elas.
  • Reajustáveis pois o agente pode, em qualquer momento, decidir não fazer essa acção e optar por uma outra.

 

Qual a estrutura da Acção Humana?

A Filosofia da Acção Humana reflecte  a forma como a acção se desenrola e o significado que lhe atribuímos. 

Para a descrever, utilizamos alguns conceitos fundamentais referentes aos elementos e momentos que a constituem.

 

 Rede Conceptual da Acção (4 elementos de uma acção)

 

 

Todos os termos da rede (conceptual) convergem aqui: acção, intenção, motivação e, por fim, agente (...). Importa (...) compreender a palavra agente em função de toda a rede.

Paul Ricceur, O Discurso da Acção, Edições 70

 

 

A rede conceptual da acção é o conjunto de conceitos que, usados nas frases que descrevem e explicam acções, nos permitem compreender e explicar as acções. Os conceitos mais importantes a este respeito são conceitos como motivo, intenção, deliberação, decisão  e finalidade.

 

1. O AGENTE - QUEM?

 

agente é aquele que concretiza ou põe em prática a acção.

Expressões como Fui eu que fiz..., Fui eu que disse..., revelam a inevitável afirmação de um sujeito real que ao agir se mostra como autor daquilo que faz (poder do agente - decidiu fazer aquilo, mas podia ter feito outra coisa, ou até nada fazer).

Toda e qualquer acção depende de um agente e, por isso, alguns autores falam de causalidade do agente, querendo com isso designar que sem ele a acção não existiria. Mas a relação agente-acção não é tão simples nem pode ser reduzida a uma leitura do tipo causa-efeito. No seu interior, encontramos, entre  outros, conceitos que merecem uma análise cuidada a saber: os de motivo, intenção e finalidade.

Significa, então, que se quisermos fazer uma correcta análise da acção devemos ter em conta a figura do agente como sujeito da acção, dotado de vontade, racionalidade, motivações, projectos e intenções.

 

2. O MOTIVO - PORQUÊ? 

motivo é aquilo que leva à realização da acção. O motivo dá resposta à pergunta: por que é que fiz/fizeste isso? 

Quase sempre,  o motivo identifica a razão que explica a acção e que a legitima (aproximando-se dos conceitos de intenção e finalidade). Outras vezes, ele parece tomar o sentido de causa da acção, isto é, ele surge como uma espécie de elemento justificativo, não de ordem racional, mas sobretudo de ordem emocional ou psicológica (como o medo, o desejo, ou outra emoção). É difícil definir o conceito de motivo, porque ele deriva da própria complexidade humana do agente.

A acção humana é reflexo dessa complexidade, e o motivo que a antecede é resultado de um jogo entre elementos racionais e elementos a-racionais. Quando temos de decidir ou escolher fazer isto ou aquilo, seguir este ou aquele caminho, pesam na tomada de decisão elementos e natureza racionais, mas também elementos emocionais, psicológicos ou até inconscientes.

 

3. A INTENÇÃO - O QUÊ? 

O conceito de intenção está intimamente ligado ao de motivo, de tal forma que uma acção só é realizada intencionalmente quando é realizada por algum motivo. Paul Ricceur explica-nos que, apesar da sua proximidade, motivo e intenção distinguem-se claramente porque respondem a perguntas diferentes: a intenção responde à questão: o que quer aquele que age?; enquanto que o motivo responde à questão por que é que o faz? 

Assim, por exemplo, se decido doar dinheiro a uma instituição de caridade, a minha intenção será, com toda a certeza, ajudar aqueles que precisam, mas o motivo que está por detrás da minha acção pode ser o dever de ajudar o próximo,, o facto de ter sido ajudado no passado ou a pena que sinto pelos mais necessitados.

 

4. A FINALIDADE - PARA QUÊ?

Se ajudar aqueles que precisam era a intenção da acção que apresentámos como exemplo, podemos agora perguntar para que quer o agente fazê-lo. 

A resposta a esta questão é-nos dada pela finalidade da acção.

 

Toda e qualquer acção do ser humano tem em vista atingir determinado fim e, na maioria das vezes, a finalidade da acção prende-se com o motivo da mesma. Perguntar porquê (motivo) ou para quê (finalidade) parece ser quase a mesma coisa. O dever de ajudar o próximo, que indicámos como motivo, pode tornar-se o fim ou objectivo da acção. É como se o fim estivesse já projectado no motivo, ou o motivo o antecipasse. Contudo, é possível distinguir motivo de finalidade.

 

 Exemplifiquemos: 

 

O Ambrósio, um profundo admirador de Kant,  porque entende que é seu dever ajudar o OUTRO, pretende doar a sua fortuna  a uma instituição de ajuda a crianças, para se sentir bem com a sua consciência ou para ser reconhecido como filantropo.


  (aquele que contribui generosamente para melhorar a situação dos homens).

 

 

Neste caso, o motivo que é apresentado não explica na totalidade a acção desenvolvida; a finalidade permite que a compreendamos a fundo: cumpro o meu dever de ajudar o próximo porque se não o fizer não me sentirei bem comigo mesmo ou não serei reconhecido socialmente. Às vezes torna-se muito difícil reconhecer se na intenção predominam os motivos ou os fins, se na acção pesam mais uns ou outros.

 

 

 Análise clássica do Acto Voluntário (os 4 momentos de uma acção)

 

Fase (...) do acto voluntário anterior à decisão na qual a vontade, em íntima (...) união com a inteligência, concebe as diferentes alternativas em relação ao objecto apresentado e as razões a favor ou contra e depois as discute e pondera.

M. Morais, "Deliberação", in Logos 1, Ed. Verbo

 

1. CONCEPÇÃO OU PLANEAMENTO

A concepção é o primeiro momento do acto voluntário, fase que antecede a deliberação e onde se estabelece conscientemente a meta a atingir e se pensam os meios para a alcançar. É o momento em que se vai delinear o plano de acção.

 

2. DELIBERAÇÃO OU PONDERAÇÃO

A maior parte das vezes, antes de decidir fazer isto ou aquilo, seguir este ou aquele caminho, pensamos, reflectimos, ponderamos, pesamos os prós e os contras, representamos as vantagens e desvantagens das nossas futuras escolhas. Este momento de reflexão, que denominamos de deliberação, só é possível porque o ser humano é capaz de projectar o futuro e de reflectir acerca de diferentes possibilidades do seu agir e porque, a par dessas diferentes alternativas, existe a necessidade de concretizar algo que está por concretizar e que, por isso mesmo, parece incerto. A deliberação comporta sempre a existência de múltiplas escolhas e a avaliação racional das diferentes alternativas.

 

3. DECISÃO OU DETERMINAÇÃO

0 momento da decisão será o momento da escolha, da eleição de uma entre várias possibilidades, do reconhecimento do caminho que se vai seguir.

Significa que escolhemos determinado projecto em detrimento de outros.

A decisão é o momento que se segue à deliberação, imediatamente e anterior à execução propriamente dita da acção. Delibero, decido e só depois executo.

Há, no entanto, quem coloque a questão de saber se em muitas das situações vividas no dia-a-dia não estará a decisão antes da deliberação, isto é, será que primeiro reflectimos e depois decidimos ou, pelo contrário, primeiro decidimos e só depois procuramos as razões que justifiquem a nossa decisão?

É importante, ainda, referir que, apesar da deliberação conter uma componente racional, no processo decisório intervêm muitas vezes elementos a-racionais.

Uma decisão é racional se resultar de um processo de deliberação cuidadoso em que foram ponderadas razões técnicas ou prudenciais, mas mesmo assim não poderemos estar seguros de que é a correcta.

 

4.  EXECUÇÃO OU POR EM PRÁTICA

O pôr em prática a decisão tomada. É o momento da passagem da intenção ao acto, de realizar o projectado no momento de concepção e ponderado no momento da deliberação. Depois de executada, o agente fica sujeito a todas as consequências que derivem da acção.

Convém referir que a decisão só se torna eficaz se os meios escolhidos para a realização da mesma estiveram ao alcance do agente. Denominamos meios os procedimentos ou instrumentos que utilizamos para realizarmos aquilo que projectámos mediante a escolha. Quando os meios são insuficientes ou inadequados, a acção fica comprometida, pelo menos quanto ao seu resultado, isto é, quanto ao que decorra da combinação entre o que a vontade quer e as possibilidades circunstanciais ou contextuais em que se encontra o agente.

 

Síntese:

O que é uma acção humana?

Temos, antes de mais de distinguir alguns aspectos:

·   O que fazemos do que nos acontece (actividade e passividade)

Ex: eu abanei uma árvore e caiu-me uma maça na cabeça

·   O que fazemos consciente e inconscientemente

Ex: consciente – andar a pé / inconsciente – dormir, sonhar.

· O que fazemos voluntaria do que fazemos involuntariamente

Ex: voluntariamente – beber água / involuntariamente – transpirar

·   Reconhecer a diferença entre intenções, desejos, crenças, e fins

Intenções – curso de acção que alguém pretende seguir, como um objectivo

Desejo – acções intencionais realizadas por uma pessoa que acredita alcançar um fim.

·  Diferenciar os conceitos de motivo, razão e projecto.

Ex: Vou comprar uma casa maior, para ter mais espaço porque sempre vivi numa casa pequena.

Projecto – comprar casa.

Razão – ter mais espaço.

Motivo – sempre vivi numa casa pequena.

·   Deliberação e decisão

É um processo de reflexão das hipóteses de acção e os motivos que nos levam a actuar desta ou daquela maneira ou mesmo a não actuar. Analisa também as consequências das diferentes acções a tomar. A seguir a esta deliberação é determinada a acção a realizar, tendo em conta o que nos é mais conveniente.

·    Agente: liberdade e responsável

Agente é o que pratica uma acção de forma voluntária, consciente, e deliberou sobre todas as hipóteses.

Liberdade. Ele teve liberdade de escolher fazer ou não fazer porque não foi constrangido.

Responsável. Já que fez a acção de livre vontade terá de ser responsável e arcar com as consequências posteriores.




UM EXEMPLO:

Um exemplo de acção….

Vou à farmácia comprar uma embalagem de aspirinas porque me dói bastante a cabeça. A dor de cabeça é algo que me acontece mas ir à farmácia comprar o medicamento é algo que eu faço acontecer porque quero tratar a dor de cabeça. Vou à farmácia com esse propósito e por esse motivo.

 

Ir à farmácia comprar um medicamento para tratar uma dor de cabeça. 

 

Agente

Eu que decido ir à farmácia

 

Deliberação

Antecede habitualmente a decisão e consiste em ponderar diferentes possibilidades de acção 

Ex: Devo ir à farmácia ou não? Será que não há alguém que possa ir por mim? A aspirina não irá fazer – me mal ao estômago? Se calhar isto passa sem tomar medicamentos, dormindo um pouco.

 

Decisão

Momento em que se escolhe uma das alternativas ou possibilidades de acção, preferindo uma delas. 

EX: Vou à farmácia. Esta dor de cabeça tem de ser tratada com medicamento e não vou poder dormir.

 

Intenção

Trata – se do que pretendo com a acção. Neste caso a intenção é tratar uma dor de cabeça. Quando perguntamos "0 que quer fazer aquele que age?", referimo-nos à intenção, ao que o agente pretende ser ou fazer.

 A intenção é o propósito ou o objectivo da acção. Alguém escorrega e deixa cair a comida do tabuleiro em cima dos livros de um colega, danificando – os. Quem fez isto pode alegar que não tinha a intenção – que não era seu propósito ou objectivo – causar esses estragos. Se não há intenção então não há ação, não há agente.

 

Motivo

O porquê ou a razão de ser da acção."Por que razão quero ir à farmácia comprar um medicamento para tratar uma dor de cabeça?» A resposta apresentar-nos-á o motivo dessa decisão, tomando-a compreensível. O motivo pode ser acabar com o desconforto físico e 

Finalidade

Poder trabalhar em melhores condições.

 

E agora....uma Tarefa:

 

Uma mulher residente em Macau que suspeitava da infidelidade do marido suicidou-se vestida de vermelho. Não foi por desgosto que ela fez o que fez, nem se tratou de um acto desesperado e impensado. Tratou-se, sim, de uma estratégia para garantir que o seu fantasma virá agora perseguir o marido e transformar-lhe a vida num inferno.

 

In Jornal Público

 

1. Considera que a protagonista do texto, ou seja, a mulher vítima da infidelidade do marido, realizou uma acção humana?

 

 

2. Intenção, motivo e agente são três dos conceitos que de um modo fundamental caracterizam a acção humana. Defina-os.



LOLA

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