Descartes
de Deus ao Mundo
Como sai o cogito do
solipsismo?
Sei que penso, e existo; mas, por
vezes, duvido e engano-me; logo, não sou perfeito. No entanto, tenho a ideia de
perfeição; caso contrário, como poderia pensar que não sou perfeito?
Mas de onde me chegou a ideia de
perfeição?
Ou a ideia de perfeição foi criada
por mim, ou a recebi do mundo exterior, ou me chegou de outro sítio qualquer.
Mas a ideia de perfeição não pode ter sido criada por mim; isto porque não sou
perfeito, e o imperfeito não pode criar o perfeito. Pela mesma razão, não a
recebi do mundo exterior, uma vez que no mundo exterior nada parece haver mais
perfeito do que eu mesmo. Logo, a ideia de perfeição só pode ter sido posta em
mim por um ser absolutamente perfeito: Deus, para tudo dizer numa palavra (Ver
Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p.
29).
Mas poderemos estar seguros de que Deus
existe?
Descartes pensa que sim. Isto
porque, diz, um ser absolutamente perfeito é um ser que tem todas as
perfeições; se não tiver todas as perfeições, então não será absolutamente
perfeito. Ora, a existência é uma perfeição; isto porque de uma coisa que não
existe dificilmente se pode dizer que é perfeita. Mais perfeita do que a casa
dos meus sonhos é a casa dos meus sonhos tornada realidade. Logo, se Deus é um
ser absolutamente perfeito, então necessariamente existe. E Deus é um ser
absolutamente perfeito. Logo, Deus existe necessariamente.
[R]econheço que é impossível que ele me engane alguma vez,
porque em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder
enganar pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou poder, querer
enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por
isso, não pertence a Deus. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 166.)
O que nos garante
Deus?
Mas o que garante que aquilo que
conhecemos com clareza e distinção é verdade? A resposta de Descartes é Deus.
Como Deus é perfeito, isto é, não é enganador, podemos confiar nas faculdades
racionais com que Ele nos dotou e na verdade daquilo que conhecemos por
intermédio dessas faculdades quando corretamente aplicadas. Deus é, assim, a
garantia de que aquilo que conhecemos clara e distintamente é verdade, porque é
a garantia da nossa razão:
[A]quilo
mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras
as coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque Deus é
ou existe. (Discurso do Método, p. 59.)
Para mostrar que as proposições da
Matemática, apesar da sua evidência, não são indubitáveis, a dúvida metódica, e
em particular o argumento do Deus enganador, pôs em questão a fiabilidade da
nossa razão: podemos ter sido criados por um Deus enganador, com uma razão tal
que nos enganemos mesmo acerca das verdades mais simples e evidentes. O facto
de Deus não ser enganador mostra que esta hipótese é falsa e, portanto, que
podemos confiar na nossa razão desde que a usemos corretamente, isto é, desde
que só façamos juízos sobre aquilo que conhecemos com clareza e distinção.
Assim, embora a primeira verdade indubitável a que chegamos seja o cogito, a
crença em Deus é a crença mais básica e fundamental, porque é Deus a garantia
última da nossa existência e do nosso conhecimento.
Em resumo, Deus garante a fiabilidade
das nossas faculdades racionais, quando bem utilizadas, e não há, razões para
duvidarmos das verdades simples e evidentes da Aritmética e da Geometria. Mas,
podemos dizer o mesmo das outras crenças, em particular da nossa crença na
existência do mundo físico, que a dúvida também pôs em suspenso?
Será que existe algo mais, para além de
Deus?
Se Deus existe e é perfeito,
então não pode querer que eu esteja enganado acerca da existência do mundo ou
das leis da natureza que Ele mesmo criou; isto porque, se o fizesse, não seria
bom, e a bondade é uma perfeição; logo, o mundo existe, e eu posso conhecê-lo.
“Na
verdade, diz Descartes, aquilo mesmo que há pouco adoptei como regra, isto é,
que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e
distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de que
nos vem tudo o que em nós existe. Donde se segue que as nossas ideias ou
noções, coisas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na
medida em que são claras e distintas” (Descartes, Discurso do
Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 32).
Assim, Deus parece ser o
fundamento de que Descartes carecia para alicerçar convenientemente o
conhecimento sem erro que procurava. Descartes parece ter finalmente encontrado
o seu rochedo, no meio de um mar de dúvidas. Mas terá ele resolvido o problema?
O fundacionalismo cartesiano tem
sido objecto de muitas críticas.
Artur Polónio, in Critica
(adaptado)
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