domingo, 5 de janeiro de 2020

Ciência e senso comum

Aula by Vasco Gargalo


Ciência e senso comum

1. Será a ciência apenas “senso comum organizado”?
Ninguém duvida seriamente de que muitas das ciências particulares existentes se desenvolveram a partir das necessidades práticas da vida quotidiana: a geometria a partir de problemas de medição dos campos, a mecânica a partir de problemas suscitados pelas artes arquitectónicas e militares, a biologia a partir de problemas da saúde humana e da criação de animais, a química a partir de problemas suscitados pelas indústrias de tintas e de metais, a economia a partir de problemas de gestão doméstica e de organização política, e assim por diante. É certo que existiram outros estímulos para o desenvolvimento das ciências para além daqueles que surgiram dos problemas das artes práticas. No entanto, estes últimos tiveram, e ainda continuam a ter, um papel importante na história da investigação científica. Nestas circunstâncias, os comentadores da natureza da ciência que ficaram impressionados pela continuidade histórica entre as convicções do senso comum e as conclusões científicas, têm proposto por vezes que se diferencie ambas através da fórmula que nos diz que as ciências são simplesmente senso comum “organizado” ou “classificado”.
Não há dúvida de que as ciências são corpos organizados de conhecimento, e de que em todas elas uma classificação dos seus materiais em tipos ou géneros importantes (como a classificação dos seres vivos em espécies na biologia) é uma tarefa indispensável. Mesmo assim é claro que a fórmula proposta não exprime adequadamente as diferenças características entre a ciência e o senso comum. Os apontamentos de um conferencista sobre as suas viagens em África podem estar muito bem organizados para o objectivo de comunicar informação de uma maneira interessante e eficiente, sem que isso converta essa informação naquilo a que historicamente se tem chamado ciência. Um catálogo de um bibliotecário apresenta uma boa classificação de livros, mas ninguém que respeite um pouco o sentido histórico da palavra dirá que o catálogo é uma ciência. A dificuldade óbvia é a de que a fórmula proposta não especifica que tipo de classificação é característica das ciências.

2. Explicações científicas

Vamos então virar-nos para esta questão. Uma característica notável de muita da informação que adquirimos ao longo da experiência comum é a de que, embora essa informação possa ser suficientemente precisa dentro de certos limites, ela raramente é acompanhada por qualquer explicação que nos diga por que se deram os factos alegados. Deste modo, as sociedades que descobriram os usos da roda habitualmente não sabiam nada sobre forças de fricção, nem sobre as razões que fazem com que os bens colocados em veículos com rodas sejam transportados com mais facilidade do que os bens arrastados pelo chão. Muitas pessoas aprenderam que era aconselhável adubar os seus campos agrícolas, mas poucas se preocuparam com as razões para agir assim. As propriedades medicinais de plantas como a dedaleira foram reconhecidas há séculos, embora habitualmente não se tenha oferecido qualquer explicação das suas virtudes benéficas. Para além disso, quando o “senso comum” tenta dar explicações para os seus factos — como quando se explica o valor da dedaleira como estimulante cardíaco através da semelhança entre a forma da flor e a do coração humano — as explicações carecem frequentemente de testes sobre a sua relevância para os factos.
É o desejo de explicações que sejam ao mesmo tempo sistemáticas e controláveis através de dados factuais que gera a ciência, e é a organização e classificação do conhecimento segundo princípios explicativos que é o objectivo próprio das ciências. Mais especificamente, as ciências procuram descobrir e formular em termos gerais as condições sob as quais ocorrem acontecimentos de vários géneros, sendo as proposições sobre essas condições determinantes as explicações desses acontecimentos. Podem descobrir-se relações regulares que abrangem vastos domínios de factos, de tal forma que com a ajuda de um pequeno número de princípios explicativos pode mostrar-se que um número indefinidamente grande de proposições sobre esses factos constituem um corpo de conhecimento logicamente unificado. Esta unificação assume por vezes a forma de um sistema dedutivo, como acontece na geometria demonstrativa e na ciência da mecânica. Deste modo, através de poucos princípios, como os que foram formulados por Newton, consegue-se mostrar que proposições sobre o movimento da Lua, o comportamento das marés, os percursos de projécteis e a subida de líquidos em tubos estreitos estão intimamente relacionadas, e que todas essas proposições podem ser rigorosamente deduzidas a partir desses princípios em conjunção com várias informações sobre factos.
Explicar, estabelecer alguma relação de dependência entre proposições que superficialmente não estão relacionadas, apresentar sistematicamente conexões entre fragmentos de informação aparentemente heterogéneos, são características próprias da investigação científica.

3. A indeterminação do senso comum

Muitas crenças quotidianas sobreviveram a séculos de experiência, o que contrasta com o período de vida relativamente curto a que estão frequentemente destinadas as conclusões avançadas em vários ramos da ciência moderna. Uma das razões deste facto merece atenção. Consideremos um exemplo de uma crença do senso comum, como a de que a água solidifica quando é suficientemente arrefecida.
Se pudermos considerar este exemplo como típico, podemos dizer que a linguagem em que o senso comum está formulado e é transmitido pode exibir dois tipos importantes de indeterminação. Em primeiro lugar, os termos da linguagem comum podem ser bastante vagos, no sentido em que a classe das coisas designadas por um termo não está clara e rigorosamente demarcada da classe das coisas que ele não designa. Em segundo lugar, os termos da linguagem comum podem carecer de um grau de especificidade relevante. Por esse motivo, as relações de dependência entre acontecimentos não estão formuladas de uma maneira determinada com precisão nas proposições que contêm esses termos.
Devido a estas características da linguagem comum, o controlo experimental das crenças do senso comum é frequentemente difícil, já que não pode traçar-se facilmente a distinção entre os dados da observação que as confirmam e os que as refutam. Deste modo, a crença de que “em geral” a água solidifica quando é suficientemente arrefecida pode corresponder às necessidades das pessoas cujo interesse pelo fenómeno do arrefecimento está circunscrito ao seu interesse em atingir os objectivos habituais da sua vida quotidiana, apesar de a linguagem utilizada na codificação desta crença ser vaga e carecer de especificidade. Essas pessoas podem por isso não ver qualquer razão para modificar a sua crença, mesmo que reconheçam que a água do oceano não congela, embora a sua temperatura seja sensivelmente a mesma do que a água de um poço quando começa a solidificar, ou que alguns líquidos têm de ser arrefecidos a um grau maior do que outros para mudarem para o estado sólido. Se forem pressionadas para justificar a sua crença perante estes factos, essas pessoas podem talvez excluir arbitrariamente os oceanos da classe de coisas a que dão o nome de água, ou, como alternativa, podem exprimir uma confiança renovada na sua crença, defendendo que seja qual for o grau de arrefecimento que possa ser necessário, os líquidos classificados como água acabam por solidificar quando são arrefecidos.

4. A refutabilidade e instabilidade da ciência

Na sua procura de explicações sistemáticas, as ciências devem reduzir a indeterminação indicada da linguagem comum ao remodelá-la. A química física, por exemplo, não se satisfaz com a generalização, formulada de uma maneira vaga, segundo a qual a água solidifica quando é suficientemente arrefecida, já que o objectivo desta disciplina é o de explicar, entre outras coisas, por que a água e o leite que bebemos congelam a certas temperaturas, embora a essas temperaturas não aconteça o mesmo com a água do oceano. Para atingir este objectivo, a química física deve então introduzir distinções claras entre vários tipos de água e entre várias quantidades de arrefecimento. Várias técnicas reduzem a vagueza e aumentam a especificidade das expressões linguísticas. Para muitos propósitos, contar e medir são as técnicas mais eficientes, e talvez sejam também as mais conhecidas. Os poetas podem cantar a infinidade de estrelas que permanecem no céu visível, mas o astrónomo quer especificar o seu número exacto. O artesão que trabalha com metais pode ficar satisfeito por saber que o ferro é mais duro do que o chumbo, mas o físico que quer explicar este facto tem de ter uma medida precisa da diferença em dureza. Uma consequência óbvia, mas importante, da precisão assim introduzida é a de que as proposições se tornam susceptíveis de ser testadas pela experiência de uma maneira mais crítica e cuidada. As crenças pré-científicas são frequentemente insusceptíveis de ser sujeitas a testes experimentais definidos, simplesmente porque essas crenças são compatíveis de uma maneira vaga com uma classe indeterminada de factos que não são analisados. As proposições científicas, como têm de estar de acordo com dados da observação bem especificados, enfrentam riscos maiores de ser refutadas por esses dados.
A maior determinação da linguagem científica ajuda a esclarecer o facto de muitas crenças do senso comum terem uma estabilidade, que se prolonga frequentemente por muitos séculos, que poucas teorias científicas possuem. É mais difícil construir uma teoria que, depois de confrontos repetidos com os resultados de observações experimentais rigorosas, permanece inabalada, quando os critérios para o acordo que se deve obter entre esses dados experimentais e as previsões derivadas da teoria são exigentes do que quando esses critérios são vagos e não se exige que os dados experimentais admissíveis sejam estabelecidos por procedimentos cuidadosamente controlados. Na verdade, as ciências mais avançadas especificam quase sempre o grau com que as previsões derivadas de uma teoria se podem desviar dos resultados das experiências sem invalidar a teoria. Os limites desses desvios permissíveis geralmente são bastante reduzidos, de tal modo que certas discrepâncias entre a teoria e a experiência que seriam vistas pelo senso comum como insignificantes são frequentemente consideradas fatais para a adequação da teoria.
Por outro lado, embora a maior determinação das proposições científicas as exponha a riscos de se descobrir que estão erradas maiores do que aqueles que enfrentam as crenças do senso comum (enunciadas com menos precisão), as primeiras têm uma vantagem importante sobre as segundas. Elas têm uma capacidade maior para ser incorporadas em sistemas de explicação amplos e claramente articulados. Quando esses sistemas são adequadamente confirmados por dados experimentais, revelam muitas vezes relações de dependência surpreendentes entre muitos tipos de factos experimentalmente identificáveis, mas diferentes.

5. Conclusões

Nas diferenças entre a ciência moderna e o senso comum já mencionadas, está implícita a diferença importante que deriva de uma estratégia deliberada da ciência que a leva a expor as suas propostas cognitivas ao confronto repetido com dados observacionais criticamente comprovativos, procurados sob condições cuidadosamente controladas. Isto não significa, no entanto, que as crenças do senso comum sejam invariavelmente erradas, ou que não tenham quaisquer fundamentos em factos empiricamente verificáveis. Significa que, por uma questão de princípio estabelecido, as crenças do senso comum não são sujeitas a testes sistemáticos realizados à luz de dados obtidos para determinar se essas crenças são fidedignas e qual é o alcance da sua validade. Significa também que os dados admitidos como relevantes na ciência devem ser obtidos através de procedimentos instituídos com o objectivo de eliminar fontes de erro conhecidas. Deste modo, a procura de explicações na ciência não conseguiste simplesmente em tentar obter “primeiros princípios” que sejam plausíveis à primeira vista e que possam vagamente dar conta dos “factos” da experiência habitual. Pelo contrário, essa procura consiste em tentar obter hipóteses explicativas que sejam genuinamente testáveis, porque se exige que elas tenham consequências lógicas suficientemente precisas para não serem compatíveis com quase todos os estados de coisas concebíveis. As hipóteses procuradas devem assim estar sujeitas à possibilidade de rejeição, que dependerá dos resultados dos procedimentos críticos, inerentes à pesquisa científica, destinados a determinar quais são os verdadeiros factos do mundo.
Ernest Nagel
The Structure of Science (Nova Iorque, Harcourt, Brace & World, 1961).
Tradução de Pedro Galvão
In Critica



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