O que é a moralidade?
1. O problema da definição
A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da
natureza da moralidade e do que esta requer de nós — ou, nas palavras de
Sócrates, de “como devemos viver”, e porquê. Seria útil se pudéssemos começar
com uma definição simples e incontroversa de moralidade, mas isso é impossível.
Há muitas teorias rivais, cada uma expondo uma concepção diferente do que
significa viver moralmente, e qualquer definição que vá além da formulação
simples de Sócrates é susceptível de ofender uma ou outra dessas teorias.
Isto deve colocar-nos de sobreaviso, mas
não temos de ficar paralisados. Neste capítulo, vou descrever a “concepção
mínima” de moralidade. Como o nome sugere, a concepção mínima é um núcleo que
qualquer teoria moral deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos
começar por examinar algumas controvérsias morais recentes, todas relacionadas
com crianças deficientes. As características da concepção mínima emergirão da
nossa consideração destes exemplos.
+
2. Primeiro exemplo: a
bebé Teresa
Teresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como “Bebé Teresa”, é uma
criança com anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia é uma das
mais graves deformidades congénitas. Os bebés anencéfalos são por vezes
referidos como “bebés sem cérebro”, e isto dá basicamente ideia do problema,
mas não é uma imagem inteiramente correcta. Partes importantes do encéfalo —
cérebro e cerebelo — estão em falta, bem como o topo do crânio. Estes bebés
têm, no entanto, o tronco cerebral e por isso as funções autónomas como a
respiração e os batimentos cardíacos são possíveis. Nos EUA, a maior parte dos
casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e abortados. Dos que não
são abortados, metade nascem mortos. Cerca de trezentos por ano nascem vivos e,
em geral, morrem em poucos dias.
A história da bebé Teresa nada teria de
notável, não fosse o pedido invulgar feito pelos pais. Sabendo que a bebé não
poderia viver por muito tempo e, mesmo que pudesse sobreviver, nunca teria uma
vida consciente, os pais da bebé Teresa ofereceram os seus órgãos para
transplante. Pensaram que os seus rins, fígado, coração, pulmões e olhos
deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. Os médicos acharam uma
boa ideia. Pelo menos duas mil crianças por ano necessitam de transplantes e
nunca há órgãos suficientes disponíveis. Mas os órgãos não foram retirados,
porque na Florida a lei não permite a remoção de órgãos até o dador estar
morto. Quando, nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado tarde para
as outras crianças — os órgãos não podiam ser transplantados por se terem
deteriorado excessivamente.
As histórias dos jornais sobre a bebé
Teresa suscitaram uma onda de debates públicos. Teria sido correcto remover os
órgãos da criança, causando-lhe dessa forma morte imediata, para ajudar outras
crianças? Vários “eticistas” profissionais — pessoas empregadas por
universidades, hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste em
pensar nestas coisas — foram solicitados pela imprensa para comentar o tema. Surpreendentemente,
poucos concordaram com os pais e os médicos. Apelaram, ao invés, a princípios
filosóficos consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. “Parece
simplesmente demasiado horrível usar pessoas como meios para os objectivos de
outras pessoas”, afirmou um destes peritos. Outro explicou: “É imoral matar
para salvar. É imoral matar a pessoa A para salvar a
pessoa B”. Um terceiro acrescentou: “O que os pais estão realmente
a pedir é: matem este bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados
por outra pessoa. Bom, isso é de facto uma proposta horrenda”.
Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Estes eticistas pensavam que sim, enquanto os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos apenas interessados no que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão. Teriam os pais razão ou não, de facto, ao oferecer os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podem ser concedidos a cada uma das partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais, ou para justificar a ideia de que o pedido estava errado?
O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se na
ideia de que, uma vez que Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe
serviam. As outras crianças, no entanto, poderiam beneficiar deles. Assim, o
raciocínio parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem
fazer mal a outra pessoa, devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as
outras crianças sem prejudicar a bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os
órgãos.
Será isto correcto? Nem todos os
argumentos são sólidos; por isso, não queremos apenas saber que argumentos
podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição, mas também se esses
argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as suas premissas são
verdadeiras e se a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso, poderíamos
interrogar-nos sobre a proposição de que Teresa não seria prejudicada. Afinal
de contas, ela morreria; isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece
claro que, nestas circunstâncias trágicas, os pais tinham razão — estar viva
não lhe servia de nada. Estar vivo só é um benefício quando permite a alguém
realizar actividades e ter pensamentos, sentimentos, e relações com outras
pessoas — por outras palavras, se permite a alguém ter uma vida. Na
ausência destas coisas a mera existência biológica não tem valor algum. Por
isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso nada
lhe traria de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas
beneficiariam em mantê-la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar
disso.)
O argumento do benefício fornece, pois,
uma poderosa razão para o transplante dos órgãos. Quais são os argumentos do
lado contrário?
O argumento de que não devemos usar pessoas como meios. Os eticistas que
se opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na
ideia de que é errado usar pessoas como meios para os fins de outras
pessoas. Retirar os órgãos de Teresa teria sido usá-la em benefício de
outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo.
Será este argumento sólido? A ideia de
que não devemos “usar” pessoas é obviamente apelativa, mas trata-se de uma
noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? “Usar pessoas”
implica geralmente violar a sua autonomia — a sua capacidade para decidirem por
si mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e
valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação,
impostura, ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém, quando na
verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a
alguém para conseguir um empréstimo; ou posso tentar convencer alguém que gostará
de assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até
lá. Em todos estes casos, estou a manipular alguém de modo a obter algo para
mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a
fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado “usar
pessoas”; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não
envolveria engano, impostura ou coerção. Será que estaríamos a “usá-la” num
outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro, usar os seus órgãos
em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um
transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Esse
facto tornaria o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo “contra” os seus
desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma violação da sua
autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz
de tomar por si quaisquer decisões.
Quando as pessoas são incapazes de tomar
decisões por si, e outros têm de o fazer em seu lugar, pode-se adoptar duas
linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: o que
serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé
Teresa, parece não haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já
vimos, seja qual for a nossa decisão, os seus interesses não serão afectados.
Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.
A segunda linha de orientação faz apelo
às preferências da própria pessoa. Poderíamos perguntar: se pudesse
dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é
frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências
mas são incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou
um testamento). Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre
coisa alguma e nunca terá. Não podemos, por isso, obter dela qualquer
orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão é que ficamos na
contingência de fazer o que consideramos melhor.
O argumento de que matar é errado. Os eticistas recorreram igualmente
ao princípio de que é errado matar uma pessoa para salvar outra.
Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para salvar outros, afirmaram; por
isso, retirar os órgãos seria errado.
Será este argumento sólido? A proibição
de matar é certamente uma das regras morais mais importantes. No entanto,
poucas pessoas pensam que matar é sempre errado — a maioria das pessoas pensam
que algumas excepções são por vezes justificadas. Assim, a questão é saber se
retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à
regra. Há muitas razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela
morrerá de qualquer maneira, independentemente do que fizermos, ao passo que
retirar-lhe os órgãos permitiria pelo menos fazer algum bem a outros bebés.
Qualquer pessoa que aceite isto tomará como falsa a primeira premissa do
argumento. Em geral, é errado matar uma pessoa para salvar outra, mas isso nem
sempre é assim.
Mas há outra possibilidade. Talvez a
melhor maneira de entender toda a situação fosse encarar desde logo a bebé
Teresa como morta. Se isto parece insensato, recorde-se que a “morte cerebral”
é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas legalmente
mortas. Quando o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez,
houve resistências baseadas na ideia de que uma pessoa pode estar cerebralmente
morta, apesar de muitas coisas continuarem a funcionar no seu interior — com
assistência mecânica, o coração pode continuar a bater, pode-se continuar a
respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por fim aceite e as
pessoas acostumaram-se a encará-la como “verdadeira” morte. Isto foi sensato,
pois quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperanças de vida
consciente.
As anencefalias não satisfazem os
requisitos técnicos da morte cerebral tal como é actualmente definida; mas
talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir. Afinal de contas,
os anencéfalos também não têm perspectivas de vida consciente, pela razão
profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definição de morte cerebral
fosse reformulada para incluir os anencéfalos, acabaríamos por nos acostumar à
ideia de que estes infelizes bebés são nados-mortos e deixaríamos, por isso, de
encarar a extracção dos seus órgãos como uma forma de os matar. O argumento
baseado na ideia de que matar é errado seria então contestável.
Parece pois, no todo, que o argumento a
favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é mais forte do que estes
argumentos contra o transplante.
3. Segundo exemplo:
Jodie e Mary
Em Agosto de 2000 uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta, descobriu que
estava grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo
não estavam equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela
e o marido foram para o hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para
fazer aí o parto das bebés. As crianças, conhecidas como Mary e Jodie, estavam
ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais encontravam-se fundidas, e
partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte, fornecia
sangue à irmã.
Ninguém sabe quantos pares de gémeos
siameses nascem por ano. São raros, embora o nascimento recente de três pares
no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número está a crescer. (“Os
Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde mas os registos são muito
pobres”, afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas, mas
sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variante de gémeos
idênticos. Quando o conjunto de células (o “pré-embrião”) se divide, três a
oito dias após a fertilização, surgem os gémeos idênticos; quando a divisão se
atrasa mais alguns dias, pode ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.
Alguns pares de gémeos siameses não têm
problemas. Chegam à idade adulta e por vezes casam e têm os seus próprios
filhos. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para Mary e Jodie. Os
médicos afirmaram que sem intervenção morreriam dentro de seis meses. A única
esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria Jodie, mas Mary
morreria de imediato.
Os pais, católicos devotos, não
permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso anteciparia a morte de
Mary. “Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso”, afirmaram os pais. “Se
é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam, assim seja”. O hospital,
convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma
das crianças, solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o
desejo dos pais. Os tribunais concederam permissão e a 6 de Novembro a operação
foi realizada. Tal como se esperava, Jodie sobreviveu e Mary morreu.
Ao meditar neste caso devemos separar a
questão de quem deveria tomar a decisão da questão de qual
deve ser a decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia caber
aos pais, caso em que nos oporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em
aberto a questão independente de saber qual seria para os pais (ou qualquer
outra pessoa) a escolha mais sensata. Vamos concentrar-nos nesta última
questão: nas circunstâncias descritas, seria correcto ou errado separar as
gémeas?
O argumento de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. O argumento
óbvio a favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um
bebé ou deixar ambos morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Este
argumento é tão atraente que muitas pessoas concluirão, sem mais, que isto
resolve o problema. No auge da controvérsia sobre o caso, quando os jornais
estavam cheios de histórias acerca de Jodie e Mary, o Ladies Home
Journal encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos
pensavam. A sondagem mostrou que 78 % aprovavam a operação. As pessoas estavam
obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos bebés quanto
possível. No entanto, os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento
ainda mais forte do lado contrário.
O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas filhas e
pensavam que seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra.
Naturalmente, não eram os únicos a defender esta perspectiva. A ideia de que
toda a vida humana tem valor, independentemente da idade, raça, classe social
ou deficiência, está no centro da tradição moral ocidental. É especialmente
enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a proibição de matar
seres humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o assassinato visa
servir um propósito meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary é um ser humano
inocente, não podendo por isso ser morta.
Será este um argumento sólido? Por uma
razão surpreendente, os juízes que avaliaram o caso em tribunal pensaram que
não. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso. O juiz Robert
Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. Ela seria
simplesmente separada da irmã e depois “morreria, não por ser intencionalmente
morta, mas porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida”. Por outras
palavras, a causa da sua morte não seria a operação mas a sua própria
debilidade. Os médicos parecem ter favorecido também esta perspectiva. Quando a
operação foi finalmente realizada, executaram todos os procedimentos para
tentar manter Mary viva — “concedendo-lhe todas as possibilidades” — mesmo
sabendo da inutilidade do esforço.
O argumento do juiz pode parecer um
pouco sofístico. Poderíamos pensar, seguramente, que pouco importa dizer que a
morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade do seu corpo. De
qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte acontecerá mais cedo do que
se não tivesse sido separada da irmã.
Há, no entanto, uma objecção mais
natural ao argumento da santidade da vida, que não depende de um argumento tão
forçado. Podemos responder que não é sempre errado matar seres
humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser correcto. Em particular
se a) o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a
morrer em breve, independentemente do que façamos; b) o ser humano
inocente não quer continuar a viver, talvez por estar tão pouco desenvolvido
mentalmente que não pode de todo ter desejos; e c) se matar o ser
humano inocente permitir salvar as vidas de outros, que podem desenvolver-se e
ter vidas boas e plenas — nestas circunstâncias pouco frequentes, pode
justificar-se matar um inocente. É claro que muitos moralistas, sobretudo os
pensadores religiosos, não se deixarão convencer. No entanto, esta é uma linha
de pensamento que muitas pessoas podem achar persuasiva.
4. Terceiro exemplo:
Tracy Latimer
Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi
morta pelo pai em 1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria
de Saskatchewan, no Canadá. Numa manhã de Domingo, enquanto a mulher e os
filhos estavam na missa, Robert Latimer pôs Tracy na cabina da sua carrinha de
caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do escape. Na altura da morte, Tracy
pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha “um nível mental idêntico ao
de um bebé de três meses”. A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por
encontrar Tracy morta ao chegar a casa e acrescentou que “não tinha coragem”
para o fazer por si.
O senhor Latimer foi julgado por
homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza.
O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao
juiz para ignorar a sentença obrigatória de 25 anos de prisão. O juiz concordou
e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão
domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a
sentença e ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está
ainda detido, cumprindo uma pena de 25 anos.
Questões legais à parte, será que o
senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já
vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de
Tracy tinha valor moral, não tendo ele, por isso, o direito de matá-la. Em sua
defesa pode-se responder que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela
não tinha quaisquer perspectivas de uma “vida” em qualquer sentido além do
puramente biológico. A sua existência estava reduzida a nada mais do que
sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um acto de misericórdia.
Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido
de forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos seus
críticos.
O argumento com base no mal de discriminar os deficientes. Quando Robert
Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes
encararam o facto como um insulto. O presidente da “Voz de Saskatoon de Pessoas
com Deficiências”, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: “Ninguém tem o
direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a
grande questão”. Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e isso é
inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos
direitos como qualquer outra pessoa.
Que podemos dizer disto? A discriminação
contra qualquer grupo de pessoas é, naturalmente, um assunto sério. É
inaceitável, porque implica tratar algumas pessoas de forma diferente de outras,
quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. Exemplos
correntes envolvem coisas como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se
que se recusa um trabalho a uma pessoa cega, simplesmente porque o patrão não
gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de
recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é
ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma
diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos
diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância
de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é
simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias
nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. Por
exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser
empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar
facilmente por que motivo isto não é desejável, a “discriminação” não é
arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente.
Devemos pensar na morte de Tracy Latimer
como um caso de discriminação de deficientes? O senhor Latimer argumentou que a
paralisia cerebral de Tracy não era a questão. “As pessoas andam a dizer que
isto é uma questão relacionada com deficiências”, afirmou, “mas estão
enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão
de mutilação e tortura.” Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma
importante e delicada intervenção cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia
ainda mais cirurgias planeadas. “Tendo em conta a combinação de um tubo para
alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as chagas
causadas pela permanência na cama”, afirmou o pai, “como podem as pessoas dizer
que ela era uma menina feliz?” No julgamento, três dos médicos de Tracy deram o
seu testemunho sobre a dificuldade de lhe controlar as dores. O senhor Latimer
negou, por isso, que ela tenha sido morta devido à paralisia cerebral; foi
morta devido à dor, e por não haver esperança para ela.
O argumento da derrapagem. Isto conduz naturalmente a outro
argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert
Latimer, Tracy Walters, directora da Associação Canadense de Centros para uma
Vida Independente, afirmou-se “agradavelmente surpreendida” pela decisão.
“Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas
para decidirem quem vive e quem morre”, afirmou.
Outros defensores dos deficientes
fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns,
podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é
perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa,
iremos dar a uma “derrapagem” inevitável, e no final toda a vida terá perdido o
seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não
merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos
velhos, doentes e outros membros “inúteis” da sociedade? Neste contexto,
refere-se frequentemente os nazis, que queriam “purificar a raça”, e a
implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os
perigosos primeiros passos.
Tem-se usado “argumentos da derrapagem”
do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a
fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem,
foram criticados devido ao que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos
envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar.
Por vezes, é possível verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram
infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Em 1978, quando nasceu Louise Brown, a
primeira “bebé proveta”, houve uma série de previsões medonhas sobre o que o
futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas
nada de mau aconteceu, e a FIV tornou-se um procedimento de rotina usado para
ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no
entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro
lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer caso se
aceitasse a morte piedosa em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um
tipo frustrante de impasse: os desacordos quanto aos méritos da argumentação
podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores — as
pessoas inclinadas a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões
são irrealistas, enquanto as pessoas predispostas a condená-lo insistem na
sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este
tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma
coisa, mas não temos qualquer bom argumento contra ela, podemos sempre fazer
uma previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a
previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser
utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos
deste tipo devem ser abordados com cuidado.
5. Razão e
imparcialidade
O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar, podemos tomar nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízos morais têm de se apoiar em boas razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo.
Raciocínio moral. Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer, bem como
muitos outros que serão discutidos neste livro, podem despertar sentimentos
fortes. Estes sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem,
pois, ser objecto de admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta
da verdade: quando temos sentimentos fortes relativamente a uma questão, é
tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a
verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em consideração os
argumentos do lado contrário. Infelizmente, não podemos confiar nos nossos
sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos sentimentos podem ser
irracionais: podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou
condicionamento cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas
diziam-lhes, por exemplo, que os membros de outras raças eram inferiores e que
a escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas.) Além disso, os
sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no
caso de Tracy Latimer, o sentimento forte de algumas pessoas é que o seu pai
devia ter sido condenado a uma pena longa, enquanto outras têm o sentimento
igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado. Estes sentimentos não
podem, no entanto, estar ambos correctos.
Assim, se queremos descobrir a verdade,
temos de tentar deixar que os nossos sentimentos sejam guiados tanto quanto
possível pelos argumentos que se podem fornecer a favor de cada uma das
perspectivas opostas. A moralidade é, antes de mais e acima de tudo, uma
questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção
moralmente correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.
Este não é um aspecto de somenos
importância sobre uma pequena gama de perspectivas morais; é um requisito
lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa, independentemente do
seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. A ideia
fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se que se afirma que
alguém devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado).
Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que
razão seria errado fazê-lo), e se não se puder dar qualquer boa razão, pode-se
rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.
Neste aspecto, os juízos morais são
diferentes das expressões de gosto pessoal. Se alguém afirma “Eu gosto de
café”, não necessita ter uma razão para tal — está meramente a declarar um
facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma “defesa racional” do facto de
gostar ou não de café é algo que não existe, não havendo por isso discussão
possível do caso. Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de
forma precisa, o que diz tem de ser verdade. Além do mais, não há nisso
qualquer implicação de que as outras pessoas tenham de ter o mesmo gosto; se
todas as outras pessoas do mundo detestarem café, isso não importa. Por outro
lado, se alguém afirma que algo é moralmente errado, precisa de ter razões para
tal, e se as suas razões forem sólidas, as outras pessoas têm de reconhecer a
sua força. Pela mesma lógica, se não tiver boas razões para o que diz, está
simplesmente a produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção.
Naturalmente, nem todas as razões
passíveis de serem apresentadas são boas. Há bons e maus argumentos, e muita da
perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns de outros. Mas
como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para avaliar
argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes.
A primeira coisa a fazer é entender com
clareza os factos. É frequente isto não ser tão fácil como parece. Uma fonte de
problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em estabelecer os
“factos” — as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os
especialistas concordam entre si. Outro problema é o preconceito humano. É
frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar
os nossos preconceitos. Quem reprova a acção de Robert Latimer, por exemplo,
quererá acreditar nas previsões do argumento da derrapagem; quem o compreende,
não vai querer acreditar nessas previsões. É fácil imaginar outros exemplos do
mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram
com frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras, mesmo quando
não têm grandes provas disso; e as pessoas que não gostam de homossexuais
afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de
pedófilos, apesar das provas em contrário. Mas os factos existem
independentemente dos nossos desejos, e o pensamento moral responsável começa
quando tentamos ver as coisas como elas são.
Depois de os factos terem sido
estabelecidos tão bem quanto possível, os princípios morais entram em jogo. Nos
nossos três exemplos, estavam envolvidos um conjunto de princípios: que não
devemos “usar” as pessoas; que não devemos matar uma pessoa para salvar outra;
que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções; que
toda a vida é sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos
argumentos morais consiste na aplicação de princípios aos factos de casos
particulares, e por isso o que importa saber é se os princípios são sólidos e
se estão a ser aplicados de forma inteligente.
Seria bom que houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus. Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem fracassar de diversas maneiras, como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os bebés deficientes; e devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de erro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for. O pensamento moral não é excepção.
O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias
morais importantes incluem a ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste
em considerar os interesses de cada indivíduo como igualmente importantes; do ponto
de vista moral, não há pessoas privilegiadas. Portanto, cada um de nós tem de
reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso. Ao mesmo
tempo, a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os
membros de determinados grupos como de certa forma inferiores,
como os negros e os judeus foram por vezes tratados, entre outros.
O requisito de imparcialidade está
intimamente ligado à ideia de que os juízos morais têm de se apoiar em boas
razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo, que defende
ser correcto que os melhores empregos sejam reservados para as pessoas brancas.
Essa pessoa sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais
empresas e os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os
negros ficam restringidos a tarefas sobretudo subalternas; apoia ainda as
disposições sociais por meio das quais esta situação se perpetua. Podemos agora
perguntar pelas razões para isto; podemos perguntar por que motivo se pensa que
isto está correcto. Haverá alguma coisa nos brancos que os torne mais adequados
para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles inerentemente
mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais consigo
mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais
cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece ser “não”; e
se não houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira diferente, a
discriminação é inaceitavelmente arbitrária.
Assim, o requisito de imparcialidade não
é mais do que uma condenação da arbitrariedade no tratamento das pessoas. É uma
regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente de outra quando
não há uma boa razão para fazê-lo. Mas se isto explica o que está errado no
racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é
racista tratar as pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de
cinema estava a fazer um filme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma
razão muito boa para não recrutar Tom Cruise para o papel de protagonista. É
claro que a escolha deste actor não faria sentido. Por haver uma boa razão para
isso, a “discriminação” do realizador não seria arbitrária, não sendo por isso
vulnerável a críticas.
6. A concepção mínima
de moralidade
A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade
é, pelo menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão — isto é,
para fazer aquilo a favor do qual existem melhores razões — dando
simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo que será
afectado por aquilo que fazemos.
Isto oferece, entre outras coisas, uma
imagem do que significa ser um agente moral consciente. O agente moral
consciente é alguém preocupado imparcialmente com os interesses de todos os que
são afectados por aquilo que ele, ou ela, fazem; alguém que cuidadosamente
filtra os factos e examina as suas implicações; que aceita princípios de
conduta somente depois de os examinar, para ter a certeza de que são sólidos;
que está disposto a “dar ouvidos à razão”, mesmo quando isso significa ter de
rever convicções prévias; alguém que, por fim, está disposto a agir com base
nos resultados da sua deliberação.
É claro que, como seria de esperar, nem
todas as teorias éticas aceitam este “mínimo”. Como teremos oportunidade de
ver, este retrato do agente moral tem sido posto em causa de várias maneiras.
No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se com sérias
dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por isso a maior
parte das teorias da moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção
mínima. Não discordam sobre o mínimo, mas sobre como poderemos alargá-lo, ou
talvez modificá-lo, de maneira a chegar a uma concepção moral inteiramente
satisfatória.
James Rachels
Elementos de Filosofia Moral (Lisboa:
Gradiva, 2004), Cap. 1.
LOLA
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