Gaza, Outubro, 2023
Leibniz e o problema do mal
Numa
importante e abrangente obra de filosofia do século XVIII, lê-se o seguinte:
Quer Deus impedir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Quer e pode? De onde vem então o mal?
(Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, x, § 25)
O
problema do mal é a tensão entre a suposta existência de uma pessoa divina
sumamente boa, omnisciente, omnipotente e criadora, por um lado, e a existência
de mal supostamente gratuito. Aparentemente, há males gratuitos, como doenças
terríveis, e parece razoável pensar que uma pessoa divina sumamente boa não
quer que esses males existam; mas se ela é omnisciente, sabe que existem, e se
é omnipotente, parece que conseguiria eliminá-los, se o quisesse, ou
conseguiria ter criado o Universo de maneira a que não existissem. Parece,
pois, que ou não existe uma divindade teísta, ou os males não são gratuitos. Um
mal é gratuito quando não serve qualquer finalidade suficientemente boa que o
compense.
A
tensão entre a suposta existência de uma divindade teísta e o mal aparentemente
gratuito dá origem a duas reacções bastante diferentes:
Modus tollens agnóstico
Se
existe uma divindade teísta, não há males gratuitos.
Há males gratuitos.
Logo, não existe uma divindade teísta.
Modus ponens teísta
Se
existe uma divindade teísta, não há males gratuitos.
Existe uma divindade teísta.
Logo, não há males gratuitos.
Os
dois raciocínios são válidos, e a primeira premissa é igual. Por isso, tudo
depende da plausibilidade da segunda premissa. Os agnósticos consideram que a
existência da divindade teísta é apenas uma hipótese entre outras, e que é
muitíssimo mais evidente que há males gratuitos. Por isso, concluem que não
existe tal divindade. Talvez até exista alguma divindade, mas não a teísta: ou
não é omnisciente e por isso não sabe que o mal gratuito existe, ou não é
sumamente boa e por isso não quer eliminá-lo, ou não é omnipotente e por isso
não consegue acabar com ele.
Em
contraste, os teístas consideram evidente que Deus existe, ou pelo menos que a
sua existência está muitíssimo bem comprovada, pelo que concluem que não há
realmente males gratuitos — ainda que assim o pareça superficialmente.
Na
versão agnóstica do problema do mal considera-se que os males gratuitos são
indícios, provas ou razões adequadas para concluir que não existe uma divindade
teísta. Diz-se por isso que este é o problema probatório do mal: trata-se de invocar os males
aparentemente gratuitos para tentar provar (talvez indutivamente) que não
existe, ou é improvável que exista, uma divindade teísta.
A
versão agnóstica do problema do mal só surgiu mais recentemente; durante muito
tempo, porque os filósofos eram teístas e não duvidavam seriamente da
existência de Deus, era o problema lógico do mal que os preocupava. Este
problema é a dificuldade de explicar como a existência da divindade teísta é
logicamente compatível com a existência de males aparentemente gratuitos.
Quando
duas ou mais proposições são logicamente incompatíveis, pelo menos uma delas é
falsa. Ora, as seguintes cinco proposições parecem incompatíveis:
1.
1. Existe uma pessoa divina que é omnisciente.
2. Essa pessoa é omnipotente.
3. E é também sumamente boa.
4. Além disso, criou o Universo.
5. Existem males gratuitos.
Os
pensadores religiosos não-teístas rejeitam uma ou mais das proposições 1, 2, 3
ou 4. Os teístas, ao invés, mantêm essas proposições e rejeitam a 5: defendem
que não há afinal males gratuitos, ainda que assim o pareça.
E
é precisamente assim que Leibniz encara o problema do mal.
Leibniz
introduziu o termo “teodiceia” a partir das raízes gregas teo, “Deus”,
e dikê, “justiça”. Uma teodiceia é uma tentativa de mostrar
que a justiça divina é compatível com o mal. Ora, Leibniz considera que da
concepção teísta de Deus se conclui correctamente que esta é uma divindade
absolutamente perfeita: é maximamente grandioso, como Anselmo também pensava.
Mas Leibniz tem plena consciência de que nem sempre há uma grandiosidade
máxima, ou absoluta, tal como não existe um número par que seja o maior de
todos. Contudo, ele pensa que a divindade teísta tem nesse grau máximo todas as
características que não é contraditório considerar que têm um máximo.
A
ideia de Leibniz é que não há um número par que seja o maior de todos porque a
consideração dessa hipótese rapidamente conduz a uma contradição. Imagine-se
que n é
por definição esse tal número par maior de todos. Mas n +
2 é outro número par, certamente, e ainda maior que n. Logo, n é e não
é o maior de todos. Chegámos a uma contradição, e isso significa que a hipótese
inicial era falsa — não existe o número par maior de todos.
Contudo,
Leibniz pensa que noutros casos, como no conhecimento, não se chega a esta
contradição. Ele pensa que a hipótese de um conhecimento maior que o qual
nenhum outro pode ser pensado não conduz a uma contradição — e por isso existe
esse conhecimento máximo. E essa é precisamente uma das características da
divindade teísta — é omnisciente, em absoluto, no sentido de ter o conhecimento
mais perfeito ou completo de todos. Eis as palavras do próprio Leibniz:
A
noção de Deus mais comummente aceite e a mais significativa que temos
expressa-se muitíssimo bem nestes termos: que Deus é um ser absolutamente
perfeito; mas as consequências disto não foram suficientemente bem pensadas.
Para ir um pouco mais longe é de notar que há várias perfeições completamente
diferentes na natureza, que Deus as tem todas em conjunto, e que cada uma lhe
pertence no mais alto grau. É também necessário entender o que é uma perfeição.
Eis um indicador fidedigno: uma forma ou natureza que não possa ser tomada no
seu mais elevado grau não é uma perfeição — por exemplo, a natureza do número
ou da figura. Pois o maior de todos os números (ou melhor, o número total de
todos os números), tal como a maior das figuras, implica uma contradição, ao
passo que o maior conhecimento, e omnipotência, não envolvem qualquer
impossibilidade. Logo, o poder e o conhecimento são perfeições, e na medida em
que pertencem a Deus, são ilimitadas. (Leibniz, Discurso de Metafísica, §1)
Assim,
Leibniz considera que a divindade teísta tem no máximo grau todas as
características que é logicamente possível ter nesse grau. Não tem no máximo
grau a característica de ter a maior dimensão, porque é contraditório pensar
que uma entidade seja a maior de todas as possíveis — há sempre outra entidade
possível ainda maior. Porém, Deus tem o poder, o conhecimento e a bondade no
maior grau porque, pensa Leibniz, não é contraditório imaginar tal coisa.
Precisamente
porque Deus é perfeito, pensa Leibniz, o Universo que criou é o melhor de todos
os possíveis. É isso que significa a sua conhecida expressão “O melhor de todos
os mundos possíveis”. Leibniz pensa que o Universo que Deus criou é o melhor
que poderia ser criado precisamente porque Deus é perfeito: é omnipotente, e
por isso pôde criar o melhor Universo; é omnisciente, e por isso sabia como
criá-lo; e é sumamente bom, e por isso queria criar o melhor Universo. E,
portanto, criou-o.
Como
explicar, porém, a existência de males aparentemente gratuitos?
Leibniz
considera que os males que nos parecem gratuitos não o são de facto. São
características indissociáveis de bens que Deus promove. Do mesmo modo que Deus
não pode fazer o maior número par — porque isso é logicamente impossível —
também não pode criar um universo maximamente perfeito sem criar ao mesmo tempo
coisas que, aos nossos olhos, nos parecem males gratuitos, apesar de não o
serem de facto. Leibniz usa duas analogias para explicar o que tem em mente.
Considere-se
qualquer quadrado com dois centímetros de lado. O quadrado é matematicamente
perfeito, no sentido em que cada lado é rigorosamente igual aos outros três,
assim como os seus ângulos; e a área do quadrado exprime-se também de uma
maneira matematicamente perfeita: 2 cm × 2 cm = 4 cm2. Porém, não há maneira de
criar este quadrado sem ao mesmo tempo criar a imperfeição da hipotenusa dos
dois triângulos em que o quadrado se divide. A linha diagonal que une os
vértices opostos do quadrado é incomensurável relativamente à dimensão dos
lados do rectângulo. É isto que se sabe pelo teorema de Pitágoras: o quadrado
da diagonal é igual à soma do quadrado dos dois lados. Mas isto significa que a
diagonal não tem qualquer medida perfeita. O quadrado da diagonal tem 22 +
22 = 8 cm, o que significa que a diagonal em si é igual à raiz quadrada de
oito: 2,82842712475… Ou seja, não há qualquer número perfeito que seja a medida
da diagonal. Assim, ao criar a figura perfeita do quadrado, Deus cria também o
que parece uma imperfeição gratuita. Mas não é gratuita; é uma condição da
existência do próprio quadrado. Eis as palavras de Leibniz:
Não
é verdadeiro que se a ordem das coisas, ou a sabedoria divina, exigiu que Deus
fizesse quadrados perfeitos, então Deus, tendo resolvido fazê-lo, não poderia
deixar de fazer linhas incomensuráveis, apesar de terem a imperfeição de não
poderem ser expressas de maneira exacta? Pois um quadrado não pode deixar de
ter uma diagonal, que é a distância dos seus ângulos opostos. (Leibniz,
“Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”, pp. 116–117)
A
segunda analogia de Leibniz é a ideia de que quando os seres humanos vêem
apenas uma parte insignificante da realidade, ficam com a ilusão de estar a ver
males gratuitos; na verdade, são componentes fundamentais de bens mais
grandiosos que Deus criou. O mesmo acontece se um ser humano estiver perante
uma pintura maravilhosa, mas que mede tantos quilómetros que os seres humanos
só são capazes de ver as partes que têm sombras e outros aspectos que não
parecem belos — mas que fazem parte de uma totalidade de beleza superlativa.
Eis as suas palavras:
Acredito
que Deus criou coisas em perfeição última, apesar de não nos parecer isso ao
considerar partes do Universo. É um pouco como o que acontece na música e na
pintura, pois as sombras e dissonâncias melhoram verdadeiramente as outras
partes, e o autor sábio de tais obras obtém destas imperfeições particulares um
benefício tão grandioso para a perfeição total do seu trabalho que é muito
melhor dar-lhes espaço do que tentar passar sem elas. Assim, temos de acreditar
que Deus não teria permitido o pecado nem teria criado coisas que sabe que irão
pecar, se não tivesse obtido delas um bem incomparavelmente maior que o mal que
daí resulta. (Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”,
pp. 115)
Em
suma, Leibniz considera que não há afinal qualquer mal gratuito. Os muitos
males que parecem fazer parte do Universo são afinal constituintes de bens
muitíssimo mais importantes. Leibniz admite, pois, que existem males, mas nega
que sejam gratuitos — e é por isso que são compatíveis com a bondade,
omnipotência e omnisciência de uma pessoa divina que criou o Universo e tudo o
que ele contém. Contudo, o conhecimento imperfeito dos seres humanos não lhes
permite ver a totalidade do Universo, e por isso não vêem os bens associados
aos males a que assistem; e é por isso que lhes parece erradamente que são
gratuitos.
Terá
Leibniz razão?
A
primeira dificuldade da posição de Leibniz é que a sua resposta ao problema
lógico do mal limita-se a explicar genericamente, mas não em particular, como
os males são compatíveis com a divindade teísta. Considere-se um caso
particular de sofrimento: uma criança de cinco anos, com uma doença grave e
incurável, morre, depois de dois anos de sofrimento intenso. Não só sofreu ela,
como sofreram os pais e familiares da criança, assim como os seus amigos; além
disso, foram gastos recursos imensos que poderiam ter sido usados para fazer
coisas criativas, como pintar quadros, praticar desportos ou escrever sonatas.
Leibniz não nos diz em pormenor qual é o bem maior do qual todo este sofrimento
é uma componente fundamental. Claro que podemos imaginar alguns desses bens: o
estoicismo da própria criança, a abnegação dos pais e familiares, o
profissionalismo e empatia profunda de médicos e enfermeiros. Contudo, é pura e
simplesmente falso que, do nosso ponto de vista, estes bens superem o mal
daquele sofrimento — basta pensar que nenhum progenitor que não seja perverso
provocaria aquela doença no seu filho só porque daí resultam alguns bens.
Esta
dificuldade, porém, tem uma resposta óbvia da parte de Leibniz. Claro que não
sabemos em pormenor quais são os bens maiores que fazem parte dos males que nos
parecem gratuitos, diria ele; não o sabemos porque somos limitados. Porém, dado
que se prova facilmente que a divindade teísta é logicamente incompatível com
males gratuitos, levar a sério a existência dessa divindade obriga a levar a
sério a ideia de que não há realmente males gratuitos. Esta ideia tem de ser
levada a sério, por mais que isso nos pareça estranho e por mais que sejamos
incapazes de explicar em pormenor que bens são esses que são constituídos por
males aparentemente gratuitos. Tem de ser levada a sério porque não há outra
maneira de tornar a divindade teísta compatível com o mal.
A
primeira dificuldade recebe uma resposta óbvia, e perfeitamente razoável, mas
acaba por levantar uma dificuldade muitíssimo mais importante e aparentemente
fatal.
Muito
humildemente, Leibniz considera que somos demasiado limitados para saber em
pormenor quais são os bens que superam e tornam necessários os males evidentes.
Porém, se somos limitados para saber isso, também somos limitados para saber se
Deus existe ou não. É incoerente, ou pelo menos arbitrário, aceitar que não há
a possibilidade de erro quando consideramos que sabemos que Deus existe, mas
que somos demasiado limitados para saber quais são os bens que dão sentido aos
males e os anulam. Ou somos demasiado limitados nos dois casos, ou em nenhum,
porque é tão difícil saber se Deus existe, como difícil é saber quais são os
bens que superam e anulam os males evidentes, caso Deus exista.
Em
suma, a resposta de Leibniz ao problema do mal parece epistemicamente
incoerente, ou pelo menos arbitrária.
A
resposta de Leibniz ao problema do mal está longe de ser satisfatória. Mostrar
a compatibilidade lógica entre a existência de males aparentemente gratuitos e
a existência da divindade teísta é um exercício frívolo porque com suficiente
imaginação consegue-se defender que quaisquer duas coisas aparentemente
incompatíveis são afinal perfeitamente compatíveis. Quem quiser continuar a
insistir que a Terra está imóvel no centro do Universo, consegue continuar a
insistir que as observações e medições aparentemente incompatíveis com essa
hipótese são afinal perfeitamente compatíveis. É preciso ter a boa vontade de
considerar as duas hipóteses de maneira imparcial, para determinar então qual é
a mais razoável face ao que sabemos ou temos boas razões para pensar que
sabemos. E foi isso precisamente que Leibniz não fez.
por Desidério Murcho
(O sublinhado é nosso)
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