Cabaça & Arte |
Liberdade da vontade
A concepção de nós mesmos como agentes livres é fundamental para
toda a nossa autoconcepção.
Por outro lado, sentimo-nos inclinados a dizer que, uma vez que
a natureza consiste em partículas e nas suas relações recíprocas e, dado que
tudo se pode explicar em termos dessas partículas e das suas relações, não há
simplesmente espaço para a liberdade da vontade. O indeterminismo ao nível das
partículas da física não é efectivamente, um apoio para qualquer doutrina da
liberdade da vontade; porque, em primeiro lugar, a indeterminação estatística
ao nível das partículas não mostra qualquer indeterminação ao nível dos
objectos que nos afectam. Em segundo lugar: do facto de as partículas serem
determinadas apenas estatisticamente não se segue que a mente humana possa
forçar as partículas estatisticamente determinadas a desviarem-se do seu
caminho.
Como muitos filósofos salientaram, se existe um facto da
experiência com que todos somos familiarizados, é o facto simples de que as
nossas próprias escolhas, decisões, raciocínios e cogitações diferem do nosso
comportamento. Embora tenhamos feito uma coisa, temos a certeza de sabermos
perfeitamente bem que poderíamos ter feito alguma coisa mais. Sabemos que
poderíamos ter feito alguma coisa mais, porque escolhemos algo em virtude de
determinadas razões. Mas tínhamos consciência de que havia também razões para
escolher outra coisa e, na verdade, podíamos ter exigido por essas razões e
escolhido essa coisa. Constitui um facto empírico evidente que o nosso
comportamento não é previsível da mesma maneira que é predizível o
comportamento dos objectos rolando por um plano inclinado. E a razão por que
não é predizível dessa maneira é porque, muitas vezes, poderíamos ter agido de
um modo diferente de como agimos efectivamente. A liberdade humana é
precisamente um facto de experiência. Se desejarmos alguma prova empírica de tal
facto, podemos sem mais aludir à possibilidade que sempre nos cabe de
falsificarmos quaisquer predições que alguém possa ter feito acerca do nosso
comportamento.
Estamos perante um enigma filosófico característico. Por um
lado, um conjunto de argumentos muito poderosos força-nos à conclusão de que a
vontade livre não existe no Universo. Por outro, uma série de argumentos
poderosos baseados em factos da nossa própria experiência inclina-nos para a
conclusão de que deve haver alguma liberdade da vontade, porque aí todos a
experimentamos em todo o tempo.
Mas a vontade livre e o determinismo são perfeitamente
compatíveis entre si. Naturalmente, tudo no Mundo é determinado mas, apesar de
tudo, algumas acções humanas são livres. Dizer que são livres não é negar que
sejam determinadas; é afirmar que não são constrangidas. Não somos forçados a
fazê-las: assim, por exemplo, se um homem é forçado a fazer alguma coisa porque
lhe apontam uma arma, ou se sofrem de alguma compulsão psicológica, então, a
sua conduta é genuinamente não livre. Mas se, por outro lado, ele age
livremente, se age, como dizemos, por sua livre vontade, então, o seu
comportamento é livre. Claro está, é também completamente determinado, uma vez
que cada aspecto do seu comportamento é determinado pelas forças físicas que
operam sobre as partículas que compõem o seu corpo, tal como operam sobre todos
os corpos do universo.
Ora bem, porque esta concepção afirma a compatibilidade da
vontade livre e do determinismo recebe habitualmente o nome de “compatibilismo”.
Penso que é inadequada como solução para o problema e eis porquê. O problema em
torno da liberdade da vontade não se põe a propósito da existência ou não
existência de razões psicológicas internas que nos levam a fazer coisas, ou
também de existência de causas físicas externas e de compulsões internas.
Será sempre verdadeiro afirmar de outra pessoa que ela poderia
ter agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as outras condições?
Afirmei que temos uma convicção da nossa vontade livre simplesmente
baseada nos factos da experiência humana. Mas, até que ponto são fidedignas
essas experiências?
A tese do determinismo psicológico é que as causas psicológicas
prévias determinam todo o nosso comportamento da maneira como determinam o
comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta
concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente
compulsivo. Mas, as provas disponíveis sugerem que uma tal tese é falsa. Na
realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados intencionais – as
nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. – e, nesse sentido, os
nossos estados mentais funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito
não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente esses estados mentais e,
apesar de tudo, não termos feito o que fazemos. Tanto quanto às causas
psicológicas diz respeito, poderíamos ter agido de outra maneira.
Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos
justamente a dizer, mais uma vez, que sim, todo o comportamento é determinado,
mas o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por processos
racionais de pensamento? Não teremos nós o resultado de que tudo o que fazemos
estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de
termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer
sentido filosoficamente interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso
comportamento, isto é apenas uma questão de adoptar uma terminologia
tradicional. Assim como continuamos a falar de “pôr do Sol”, embora saibamos
que o Sol literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de “agir
por livre vontade”, embora não exista tal fenómeno.
Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele
parecer consistente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos,
tanto quanto conhecemos algo acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo
fosse verdadeiro, então, o Mundo actuaria na mesmíssima maneira como actua, e a
única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu
funcionamento seriam falsas. E, por seu turno, esta crença liga-se com crenças
acerca da responsabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas
se o libertarismo, que é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que
teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais das nossas crenças acerca
do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece que deveríamos postular a
existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de
interferir com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira
deveríamos conter alguma entidade que fosse capaz de desviar as moléculas das
suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas
decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como
funciona o Mundo.
A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o
indeterminismo da física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado,
somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade.
Por que é que não há espaço para a liberdade da vontade na
concepção científica contemporânea? Na física, os nossos mecanismos
explanatórios básicos funcionam de baixo para cima. E a relação da mente com o
cérebro é um exemplo de uma tal relação. As características mentais são
causadas por e realizadas em fenómenos neurofisiológicos. Mas deparamos com a
causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a causação de cima para
baixo, durante uma passagem de tempo. Assim, por exemplo, suponhamos que eu
quero causar a libertação de acetilcolina neurotransmissora nas placas
terminais do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a
simples decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o
acontecimento mental, a intenção de levantar o meu braço causa o acontecimento
físico, a libertação da acetilcolina – um caso de causação de cima para baixo.
Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os acontecimentos
mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Enquanto aceitarmos
esta concepção do modo como a natureza opera, então não parece haver qualquer
espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta concepção, a mente pode
apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é,
então, tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas
nos microníveis básicos da física.
Mas se a liberdade é uma ilusão, por que é que é uma ilusão que,
aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a
propósito da concepção da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada
à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes.
Não podemos abandonar a convicção de liberdade, porque esta
convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E
usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Este sentido
de liberdade não é apenas uma característica de deliberação, mas é parte de
qualquer acção, seja premeditada ou espontânea.
SEARLE, John, Mente, Cérebro e
Ciência, 2000.
Lisboa: Edições 70, pp.105-121
Cabaça & Arte |
Lola
Sem comentários:
Enviar um comentário