Descartes e o Racionalismo
Descartes: itinerário filosófico
- Razão
- Método
- Dúvida
- Cogito
- Deus
- Mundo (extensão)
Quem é René Descartes?
- René Descartes (1596-1650) foi um filósofo e matemático francês.
- Criador do pensamento cartesiano, sistema filosófico que deu origem à Filosofia Moderna.
- É autor da obra “O Discurso sobre o Método”, um tratado filosófico e matemático publicado na França em 1637.
- Entre os anos de 1607
e 1615, estudou no colégio jesuíta de La Fléche.
Estudou Direito na
Universidade de Poitiers, concluindo o curso em 1616, mas nunca exerceu o Direito.
- Decepcionado com o
ensino, afirmou que a filosofia escolástica não conduz a nenhuma
verdade indiscutível. Só a matemática demonstra aquilo que afirma.
Em 1618, iniciou os
estudos da matemática com o cientista holandês Isaac Beeckman.
Com 22 anos começou a
formular sua geometria analítica e seu método de raciocinar corretamente.
Rompeu com a filosofia
de Aristóteles, adotada nas academias e, em 1619, propõe uma ciência unitária e
universal, lançando as bases do método científico moderno.
Descartes alistou-se
no exército do príncipe Maurício de Nassau. Entre 1629 e 1649 viveu na Holanda,
servindo ao exército em várias viagens.
Realizou diversos
trabalhos na área da filosofia, ciências e matemática. Relacionou a álgebra com
a geometria, fato que fez surgir a geometria analítica e o sistema de
coordenadas, conhecido hoje como Plano Cartesiano.
Em “O Tratado do
Mundo”, uma obra de física, Descartes aborda a tese do heliocentrismo.
Porém, em 1633 abandona o plano de publicá-la, devido à condenação de Galileu
pela Inquisição.
Em 1649, foi para
Estocolmo, Suécia, como professor a convite da rainha Cristina. No dia 11 de
fevereiro de 1650, René Descartes falece, acometido por uma pneumonia.
Que balanço fez Descartes da sua educação no colégio de La Fléche?
Descartes, Discurso do Método, I Parte,
Qual o objectivo de Descartes?
"Descartes pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e mostrar que existe conhecimento. Para o fazer, ele vai defender duas teses fundamentais.
- Encontrar um fundamento para as ciências e o conhecimento em geral - fundacionalismo.
- Procurar uma crença que fosse indubitável e básica (aquela que se auto justifica, que não necessita de uma outra justificação exterior que a justifique)
- Desafiar os cépticos mostrando que é possível conhecer.
-
Procurar uma crença que fosse indubitável, básica e auto evidente (aquela que
se auto justifica, que não necessita de uma outra justificação exterior que a
justifique) e da qual tudo o que se derivar possa ser verdade indubitável.
- O conhecimento existe, porque é possível evitar a regressão infinita, uma vez que há crenças que, por serem autoevidentes não precisam que outras crenças as justifiquem, e podem justificar as crenças que precisam de justificação.
- A estratégia de Descartes vai, portanto, consistir em colocar na base do seu sistema verdades absolutamente indubitáveis e, a partir delas, deduzir todas as outras verdades, de modo a garantir que sejam também indubitáveis.
1- Descartes e a razão
"O bom senso é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída: de facto, cada um pensa estar tão bem provido dele, que até mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar em todas as outras coisas não têm de forma nenhuma o costume de desejarem [ter] mais do que o que têm. E nisto, não é verosímil que todos se enganem; mas antes, isso testemunha que o poder de bem julgar, e de distinguir o verdadeiro do falso que é aquilo a que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; da mesma forma que a diversidade das nossas opiniões não provém do facto de uns serem mais razoáveis do que outros, mas unicamente do facto de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas, e de não considerarmos as mesmas coisas."
Descartes, Discurso do Método, I Parte, ed. cit., p. 11
Descartes, sendo um racionalista, privilegia a razão como fonte do
conhecimento. Vejamos, então, o que entende Descartes por esta faculdade de
conhecer!
- O que é?
- Que caracteristicas tem a dúvida? “É universal e igual em todos os Homens”
- Então porque pensamos de modo diferente? ”unicamente do facto de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas, e de não considerarmos as mesmas coisas."
2 - Descartes e o Método.
«Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber.
Aqui, há duas observações a fazer: não tomar absolutamente nada de falso por verdadeiro, e chegar ao conhecimento de tudo. Com efeito, se ignorarmos algo de quanto podemos saber é apenas porque ou nunca divisamos uma via que nos conduzisse a tal conhecimento, ou porque caímos no erro oposto. Mas se o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções para chegar ao conhecimento de tudo, parece-me que nada mais se exige para ele ser completo, já que nenhuma ciência se pode adquirir a não ser pela intuição intelectual ou pela dedução, como antes ficou dito.»
René Descartes, Regras para a Direção do Espírito,
Lisboa, Edições 70, p. 8.
- Como conduzir bem a Razão? Através de um método.
- O que é o método?
- Qual o objectivo do método?
· Conduzir bem a razão e procurar a verdade nas ciências.
· Usar a razão em todo o conhecimento.
· Conceber clara e distintamente tudo.
· Aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra.
- Quais as regras do método?
Ø Evidência: Só aceitar como verdadeiro aquilo que se apresentar ao espírito evidentemente, ou seja, com clareza e distinção.
Ø Análise: Dividir cada dificuldade em parcelas mais pequenas para melhor as resolver.
Ø Síntese: Conduzir o pensamento do mais simples e mais fácil de conhecer até ao mais complexo.
Ø Enumeração: Fazer enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir
-Qual a inspiração do método?
O método é de inspiração matemática (Lógica, Geometria e Álgebra).
- As duas operações da razão: Intuição e Dedução.
Como é possível, segundo Descartes, chegar ao conhecimento?
Admitem-se apenas dois, a saber, a intuição e a dedução.
A intuição é captar de forma pura, atenta, aquilo que se apresenta ao espirito de forma clara e distinta e do qual nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos
A dedução é aquilo que se conclui necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza.
(…) Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência (…) todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e passíveis de erros.”
O que pretende Descartes com o seu método?
"Assim, o meu desígnio não é
ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão,
mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha. Os
que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a
quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não
propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma
fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrarão
talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele
será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão gratos por
minha franqueza".
"Mas, o que me contentava mais
nesse método era o fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo minha
razão, se não perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse; além disso,
sentia, ao praticá-lo, que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber
mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o tendo submetido a
qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo tão utilmente às
dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra. Não
que, para tanto, ousasse empreender primeiramente o exame de todas as que
se me apresentassem, pois isso mesmo seria contrário à ordem que ele prescreve.
Porém, tendo notado que os seus princípios deviam ser todos tomados à
Filosofia, na qual não encontrava ainda quaisquer que fossem certos, pensei que
seria mister, antes de tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, sendo isso a
coisa mais importante do mundo, e onde a precipitação e a prevenção eram mais
de recear, não devia empreender sua realização antes de atingir uma idade bem
mais madura do que a dos vinte e três anos que eu então contava e antes de ter
despendido muito tempo em preparar-me para isso, tanto desenraizando de meu
espírito todas as más opiniões que nele acolhera até essa época como acumulando
muitas experiências, para servirem em seguida de matéria aos meus raciocínios,
e exercitando-me sempre no método que me prescrevera, a fim de me firmar nele
cada vez mais".
"Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da Filosofia, a Lógica, e, entre as Matemáticas, a Análise dos geômetras e a Álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à Lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito à Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos.
Descartes,
Discurso do Método
As regras do Método.
O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las
O terceiro, o de conduzir por
ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos
mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros
E o último, o de fazer em
toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a
certeza de nada omitir.
Discurso do Método
Intuição e
Dedução (as duas operações da razão).
“Vamos aqui passar em
revista todos os actos do nosso entendimento que nos permitem chegar ao
conhecimento das coisas, sem nenhum receio de engano; admitem-se apenas dois, a saber, a intuição e a dedução.
Por intuição entendo, não a convicção
flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo enganador de uma imaginação de
composições inadequadas, mas o conceito da mente pura e atenta tão fácil e
distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos; ou
então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e atenta, sem dúvida
possível, que nasce apenas da luz da razão e que, por ser mais simples, é ainda
mais certo do que a dedução (…).
Assim, cada qual pode
ver pela intuição intelectual que existe, que pensa, que um triângulo é
delimitado apenas por três linhas, que a esfera o é apenas por uma superfície,
e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas que a maioria
observa, porque não se dignam aplicar a mente a coisas tão fáceis.
Poderá agora
perguntar-se porque é que à intuição juntámos
um outro modo de conhecimento, que se realiza por dedução, por
ela entendemos o que se conclui necessariamente de outras coisas
conhecidas com certeza. Foi imperioso proceder assim, porque a maior parte
das coisas são conhecidas com certeza, embora não sejam em si evidentes,
contanto que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já conhecidos (…).
Distinguimos portanto,
aqui, a intuição intelectual da dedução pelo facto de que, nesta, se concebe
uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso, na dedução
não é necessário, como para a intuição, uma evidência actual, mas é antes à
memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza.
Os primeiros
princípios conhecem-se somente por intuição e, pelo contrário, as conclusões
distantes só podem ser conhecidas por dedução.
(…) Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência
(…) todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e passíveis de erros.”
René Descartes, Regras
para a direcção do espírito,
trad. de João Gama,
Lisboa, 1989,
Edições 70, pp. 20-22.
“Pelo que se pode dizer que estas
proposições, que se concluem imediatamente a partir dos primeiros princípios, são conhecidas, de um ponto de vista
diferente, ora por intuição, ora por dedução, mas que os primeiros
princípios se conhecem somente por intuição, e, pelo contrário, as conclusões
distantes só o podem ser por dedução.
Eis as duas vias mais
seguras para chegar à ciência; do lado do espírito não se devem
admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e passíveis
de erro."
3 - Descartes e a Dúvida Metódica.
Como a filosofia e as ciências de então se encontravam
repletas de incertezas , era importante distinguir ideias correctas das
incorrectas, eliminar erros, clarificar confusões e obscuridades e tentar
encontrar o fundamento das
ciências e do conhecimento em geral.
Daí Descartes
sentir necessidade em assumir uma atitude de dúvida. “rejeitar como falso tudo
aquilo que pudesse suscitar a menor dúvida, para ver se depois disso algo
restaria nas minhas opiniões que fosse absolutamente indubitável”.
Assim, porque os nossos sentidos por vezes nos enganam, decidi supor que nos enganam sempre. E porque há pessoas que se enganam ao raciocinar, até nos aspectos mais simples da geometria, fazendo raciocínios incorrectos, rejeitei como falsas todas as razões que até então me tinham parecido aceitáveis, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outra pessoa. Por fim, considerando que os pensamentos que temos quando estamos acordados podem ocorrer também quando dormimos, não sendo neste caso verdadeiros, resolvi supor que tudo o que até então tinha acolhido no meu pensamento não era mais verdadeiro do que as ilusões dos meus sonhos.
Descartes, Discurso do Método
- O que é a dúvida?
É uma atitude que Descartes toma colocando em causa
todas as crenças até encontrar uma que fosse indubitável e que resistisse a
qualquer dúvida.
(...)
- Que razões levam
Descartes a duvidar?
- Os sentidos enganam;
- Há homens que se enganam a raciocinar até nos problemas mais simples da geometria;
- Muitos vezes não conseguimos distinguir o sonho da vigília (estar acordado);
- A hipótese da existência de um Génio Maligno/Deus enganador que teria como função enganar-nos.
- Características da
dúvida.
Metódica: serve de método para chegar à verdade.
Voluntária: não imposta
Teórica: ao serviço do conhecimento e da procura da verdade e não da vida prática.
Hiperbólica: excessiva ou exagerada, atinge tudo mesmo o que é improvável. (daí a hipótese do Génio Maligno).
Provisória: e não sistemática como a dos cépticos.
PRIMEIRA MEDITAÇÃO
Das coisas que se podem pôr em dúvida
Notei, há alguns anos já, que, tendo
recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sendo
tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha
de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e começar, de
novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e
duradouro nas ciências.
(…) Então, hoje, eu que oportunamente libertei o espírito de todos os cuidados
e me procurei um ócio seguro num retiro solitário, vou dedicar-me, por fim, com
seriedade e livremente, a destruir em geral as minhas opiniões.
Para isso não será necessário mostrar
que todas são falsas, o que possivelmente eu nunca iria conseguir. Mas porque a
razão me persuade que não devo menos cuidadosamente coibir-me de dar o meu
assentimento às coisas que não são plenamente certas e indubitáveis do que às
abertamente falsas, para rejeitá-las todas basta que se me depare em uma delas
qualquer razão de dúvida. Para isso, não tenho de percorrê-las cada uma em
particular, trabalho que seria sem fim: porque uma vez minados os fundamentos,
cai por si tudo o que está sobre eles edificado, atacarei imediatamente aqueles
princípios em que se apoiava tudo o que anteriormente acreditei.
Sem dúvida, tudo aquilo que até ao presente admiti como maximamente verdadeiro foi
dos sentidos ou por meio dos sentidos que o recebi. Porém, descobri que eles
por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar naqueles que, mesmo uma
só vez, nos enganaram.
Mas ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes sobre coisas
pequenas e afastadas, há todavia muitas outras de que não podemos
duvidar, embora as recebamos por eles: como, por exemplo, que estou aqui,
sentado junto à lareira, vestido com um roupão de Inverno, que toco este papel
com as mãos, e outros factos semelhantes. E ainda, qual a razão por que se
poderia negar que estas próprias mãos e todo este meu corpo são meus? (…)
Ora muito bem, como se eu não fosse um
homem que costuma dormir de noite e consentir em sonhos as mesmas coisas, ou
também, algumas vezes, outras menos verosímeis, que aqueles alienados quando
estão despertos! Com efeito, quantas
vezes me acontece que, durante o repouso noturno, me deixo persuadir de coisas
tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira,
quando todavia estou estendido na cama e despido! Mas agora, observo
este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a
dormir, voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a: o que acontece
quando se dorme não parece tão distinto. Como se não me recordasse de já ter
sido enganado em sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflicto mais
atentamente, vejo com clareza que vigília
e sonho nunca se podem distinguir por sinais seguros, o que me espanta (…).
(…) a Aritmética, a Geometria e outras
ciências desta natureza, que só tratam de coisas extremamente simples e gerais
e não se preocupam em saber se elas existem ou não na natureza real, contêm
algo de certo e indubitável. Porque, quer eu esteja acordado quer durma, dois e
três somados são sempre cinco e o quadrado nunca tem mais do que quatro lados e
parece impossível que verdades tão evidentes possam incorrer na suspeita de
falsidade.
Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe
um Deus que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas quem me
garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu, nem
corpos extensos, nem figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo
isto me parecesse existir tal como agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas
vezes naquilo que pensam saber com absoluta perfeição, também eu me podia
enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um
quadrado, ou em algo de mais fácil ainda, se é possível imaginá-lo. (...)
Vejo-me constrangido a reconhecer que não existe nada, naquilo que outrora
reputei como verdadeiro, de que não seja lícito duvidar. (...)
Vou supor, por
consequência, não o Deus sumamente bom, mas um certo génio maligno, ao mesmo
tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me
enganar (...)
René Descartes,
Meditações sobre a Filosofia primeira
“Quantas vezes me acontece
que, durante o repouso noturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como
que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou
estendido na cama e despido! Mas, agora, observo este papel seguramente com os
olhos abertos, esta cabeça que movo não está a dormir, voluntária e
conscientemente estendo esta mão e sinto-a: o que acontece quando se dorme não
parece tão distinto. Como se não me recordasse já de ter sido enganado por
pensamentos semelhantes!”
R. Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, 1985, p. 108.
4- Descartes e o Cogito
Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo,era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava".
- Qual a importância do cogito?
- Com esta verdade indubitável, Descartes derrotou os cépticos.
- O Cogito é uma verdade auto justificada
- É uma verdade da razão e não dos sentidos
· DESCARTES PROCURA NESSA CERTEZA O CRITÉRIO DE VERDADE – O QUE O FAZ TER A CERTEZA DE QUE O COGITO É UMA VERDADE.
- Como chegou
Descartes ao cogito?
Por intuição. É uma ideia que se apresenta ao espírito clara e distintamente.
- Porque é que o
cogito é uma ideia clara e distinta?
Porque é uma evidência - é verdade tudo aquilo que o espirito capta com clareza e distinção.·
AS IDEIAS CLARAS E DISTINTAS SÃO INTELECTUAIS, SÃO PERCEBIDAS POR INTUIÇÃO.
5 - Descartes e Deus.
- O que sabe neste momento Descartes?
Descartes sabe, neste momento, que existe como ser pensante. Ele encontra-se num solipsismo (solidão).
"Tendo refletido sobre aquilo que eu duvidava, e que, por consequência, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e conheci, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita. No concernente aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas fora de mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não advertindo neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia crer que, se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os tinha do nada, isto é, que estavam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia acontecer o mesmo com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu; pois tirá-la do nada era manifestamente impossível; e, visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, isto é, para explicar-me numa palavra, que fosse Deus A isso acrescentei que, dado que conhecia algumas perfeições que não possuía, eu não era o único ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido tudo o que possuía"
Descartes, Discurso do Método
- Haverá outras realidades para além do cogito?
Sim. Existe Deus pois se Descartes duvida é porque é um ser imperfeito (ter a certeza é mais perfeição do que duvidar); Se Descartes é imperfeito é porque tem em si a noção de PERFEIÇÃO que não foi criada por ele (tê-la-ía criada para si), mas por um ser perfeito que éDEUS.
Conseguirá Descartes sair do solipsismo?
Sabe que existe (o cogito) e que Deus existe. O solipsismo não tem, portanto, razão de ser, uma vez que o cogito não é tudo o que existe. Este conhecimento, no entanto, não permite ainda recuperar as crenças que a dúvida metódica pôs em suspenso — as verdades da Matemática e a crença no mundo exterior —, mas permite definitivamente afirmar que a hipótese de um Deus enganador não tem razão de ser. Descartes está finalmente em condições de afastar o mais poderoso dos argumentos que constituem a dúvida metódica.
- De onde vem a ideia
de ser perfeito?
" (...) e conheci, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita"
Da Razão pois é uma ideia clara e distintaque se capta por evidencia.
- Que características
possui Deus e que faltam a Descartes?
Perfeiçâo e Conhecimento (e outras....).
- Qual o papel de Deus na Filosofia de Descartes?
"Aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque Deus é ou existe".
Descartes, Discurso do Método.
Como afasta Descartes a existência de um Génio Maligno?
"Reconheço que é impossível que ele me engane alguma vez, porque em
toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar
pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou poder, querer enganar
atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso,
não pertence a Deus.
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira
Deus não é enganador,
porque enganar é uma imperfeição e Deus é perfeito. Não podemos, contudo,
concluir daqui imediatamente que as nossas crenças fundamentais acerca do mundo
são verdadeiras, uma vez que, tanto quanto sabemos, o nosso próprio espírito
pode ser a sua causa. No entanto, a estratégia de Descartes para provar a
verdade destas crenças vai passar por explorar as consequências de Deus como
ser perfeito e, por isso, não como um ser enganador.
6 - Descartes e as Ideias.
- De onde vem a ideia
de Deus? "
- Que tipos de Ideias
defende Descartes?
A ideia de Deus é
aquilo a que Descartes chama uma ideia
inata, e, como todas as ideias inatas, foi colocada em nós por Deus,
pelo que é como a marca do criador na sua obra. As ideias inatas são ideias com
as quais já nascemos e que a mente descobre por si própria, não tendo,
portanto, origem na experiência, como são o caso, além da ideia de Deus, do
cogito, das verdades autoevidentes da Aritmética e da Geometria e, de uma
maneira geral, de muitas ideias que conhecemos por intuição e que são claras e
distintas. Além das ideias inatas, existem também as ideias adventícias, que têm origem nas sensações,
como as ideias de casa, árvore, etc., e as ideias
factícias, ou forjadas, que são as que a nossa imaginação cria a partir
das ideias adventícias.
TIPOS DE IDEIAS | ||
Inatas | Colocadas por Deus em nós e com as quais já nascemos. Ideias constituídas da própria razão. Estas ideias são claras e distintas. | Deus, cogito, substância, corpo ou matéria, triângulo. |
Adventícias | As que têm origem nos nossos sentidos. Têm origem na experiência sensível | Sol, Lua, árvore, barco, copo, cão. |
Factícias | As que têm origem na imaginação. São fabricadas pela imaginação com base nas ideias adventícias. | Centauro, quimera, ciclope, dragão, sereia. |
7 - Descartes: As provas da existência de Deus.
- Quais as provas da
existência de Deus?
- 1ª Prova: à priori, pela simples consideração de ideia de ser perfeito. A prova consiste em mostrar que, porque existe em nós a simples ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta que esse ser necessariamente tem que existir.
- 2ª Prova: à posteriori, pela causalidade das ideias. Descartes conclui que Deus existe pelo facto de a sua ideia existir em nós. A prova consiste agora em mostrar que, porque possuímos a ideia de Deus como ser perfeitíssimo, somos levados a concluir que esse ser efetivamente existe como causa da nossa ideia da sua perfeição. De facto, como poderíamos nós ter a ideia de perfeição, se somos seres imperfeitos? Como poderia o menos perfeito ser causa do mais perfeito? Deste modo, conclui, já que nenhum homem possui tais perfeições, deve existir algum ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de perfeição. Esse ser é Deus.
- 3ª Prova: à posteriori, baseada na contingência do espirito. Descartes demonstra agora a existência de Deus a partir do facto de que não nos podemos conservar a nós próprios. Se não podemos garantir a nossa existência, mas apesar disso existimos, é porque alguém nos pode garantir essa existência.
- Como distinguir as provas/argumentos acerca da existência de Deus?
1ª Prova a priori pela simples
consideração da ideia de ser perfeito
“Dado que, no nosso
conceito de Deus, está contida a existência, é correctamente que se conclui que
Deus existe.
Considerando,
portanto, entre as diversas ideias que uma é a do ente sumamente inteligente,
sumamente potente e sumamente perfeito, a qual é, de longe, a principal de
todas, reconhecemos nela a existência, não apenas como possível e contingente,
como acontece nas ideias de todas as outras coisas que percepcionamos
distintamente, mas como totalmente necessária e eterna. E, da mesma forma que,
por exemplo, percebemos que na ideia de triângulo está necessariamente contido
que os seus três ângulos iguais são iguais a dois ângulos rectos, assim, pela
simples percepção de que a existência necessária e eterna está contida na ideia
do ser sumamente perfeito, devemos concluir sem ambiguidade que o ente
sumamente perfeito existe.”
Descartes, Princípios
da Filosofia, I Parte, p. 61-62.
2ª
Prova a posteriori pela causalidade das ideias
“Assim, dado que temos em
nós a ideia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar a causa por
que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos
certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido posta em nós por um ser
em que exista efectivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um
Deus realmente existente. Com efeito, pela luz natural é evidente não só que do
nada nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito pelo que é
menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode haver em
nós a ideia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja em nós,
seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas
perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas
perfeições cuja ideia possuímos, disso concluímos correctamente que elas
existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a
saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem.”
Descartes, Princípios
da Filosofia, I Parte, p. 64.
3ª Prova a
posteriori baseada na contingência do espírito
“Se tivesse poder para me
conservar a mim mesmo, tanto mais poder teria para me dar as perfeições que me
faltam; pois elas são apenas atributos da substância, e eu sou substância. Mas
não tenho poder para dar a mim mesmo estas perfeições; se o tivesse, já as
possuiria. Por conseguinte, não tenho poder para me conservar a mim mesmo.
Assim, não posso existir, a não ser que seja conservado
enquanto existo, seja por mim próprio, se tivesse poder para tal,
seja por outro que o possui. Ora, eu
existo, e contudo não possuo poder para me conservar a mim próprio, como já foi
provado. Logo, sou conservado por outro.
Além disso,
aquele pelo qual sou conservado possui formal e eminentemente tudo aquilo que
em mim existe. Mas em mim existe a percepção de muitas perfeições que me
faltam, ao mesmo tempo que tenho a percepção da ideia de Deus. Logo, também
nele, que me conserva, existe percepção das mesmas perfeições.
Assim, ele
próprio não pode ter percepção de algumas perfeições que lhe faltem, ou que não
possua formal ou eminentemente. Como, porém, tem o poder para me conservar,
como foi dito, muito mais poder terá para as dar a si mesmo, se lhe faltassem.
Tem pois a percepção de todas aquelas que me faltam e que concebo poderem só
existir em Deus, como foi provado. Portanto, possui-as formal e eminentemente,
e assim é Deus.”
Descartes, Oeuvres,
VII, pp. 166-169.
8 - Descartes e o Mundo.
Mas, dado que tentei explicar as principais num tratado que certas
considerações me impedem de publicar não poderia dá-las melhor
a conhecer do que dizendo aqui, sumariamente, o que ele contém. Eu
pretendia, antes de escrevê-lo, incluir nele tudo o que julgava saber
quanto à natureza das coisas materiais. Mas, tal como os
pintores que, não podendo representar igualmente bem num quadro plano todas as
diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais, que colocam à
luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto se possa vê-las
ao olhar aquela; assim, temendo não poder pôr em meu discurso tudo o que tinha
no pensamento, tentei apenas expor bem
amplamente o que concebia da luz; depois, no seu ensejo, acrescentar alguma
coisa a sobre o sol e as estrelas fixas, porque a luz procede quase toda deles;
sobre os céus, porque a transmitem; sobre os planetas, os cometas e a terra,
porque a refletem; e, em particular, sobre todos os corpos que há sobre a
Terra, porque são ou coloridos, ou transparentes, ou brilhantes; e, enfim,
sobre o homem, porque é o seu espectador.
Descartes, Discurso do Método
"Se bem que
estejamos persuadidos de que há corpos que estão realmente no mundo, contudo,
como tínhamos duvidado até aqui, (...) é necessário que encontremos
razões que nos permitam ter sobre isto um conhecimento certo. Em primeiro
lugar, experimentamos em nós próprios que tudo o que sentimos em nós vem de
qualquer coisa distinta do nosso pensamento. (...) É verdade que poderíamos
indagar se seria Deus ou qualquer outro ser diferente; mas porque os nossos
sentidos nos excitam apercebemo-nos clara e distintamente de uma matéria
extensa em comprimento, largura e profundidade cujas partes tem figuras e
movimentos diversos, donde procedem os sentimentos que temos das cores, dos
odores, da dor, etc. , se fosse Deus a apresentar imediatamente por si próprio
a ideia dessa matéria extensa, ou pelo menos, permitisse que fosse causada em
nós por qualquer coisa que não tivesse extensão, figura e movimento, não
poderíamos encontrar razões que nos impedissem de crer que ele tinha
prazer em nos enganar. Porque concebemos essa matéria como uma coisa diferente
de Deus e do nosso pensamento, parece-nos que a ideia que temos dela se forma
em nós em contacto com os corpos de fora, aos quais é inteiramente semelhante.
Ora, como Deus não nos engana, porque isso repugna à sua natureza (...), temos
de concluir que há uma certa substância extensa (...) que existe presentemente
no mundo com todas as propriedades que sabemos manifestamente
pertencer-lhe. E esta substância extensa é o que chamamos propriamente
corpo, ou a substância das coisas materiais."
Descartes, Princípios de Filosofia
9 - Descartes e as substâncias.
1. O pensamento ou res cogitans
- O cogito é a primeira verdade que resiste a duvida
- É a certeza da existência só como pensamento
- É uma substancia pensante, ou seja, um pensamento, razão, alma ou cogito, não tem corpo pois ainda não encontrou Deus que lhe garanta o corpo
- A res cogitans tem como essência, pensar.
2.Deus ou res divina
- Deus é uma substancia infinita, eterna, imutável, independente, omnisciente e omnipotente.
- Deus é a única substancia que subsiste por si mesma - todas as outras substancias dependem de quem as criou e mantém
- Deus garante o conhecimento humano
- Deus é perfeito bom e verdadeiro, autor de verdades metafisicas matemáticas e morais
3. A extensão ou res extensa
- Existirá algo para além do cogito e de Deus?
- Descartes nota que tem uma ideia que se lhe apresenta como evidente - a ideia de extensão.
- Existirá alguma realidade que lhe corresponda fora do pensamento?
- Deus que garante as evidencias, nós, que possuímos a ideia de extensão, a essa ideia terá de corresponder a própria extensão.
- Qualquer corpo consiste numa substancia extensa.
10 - Descartes e as críticas.
1. Critica ao Argumento Ontológico
A mais famosa é, sem dúvida, o chamado Círculo Cartesiano. As outras objeções são de David Hume.
2. O Círculo
Cartesiano
Esta objeção foi formulada pela primeira vez por Antoine Arnauld
(1612–1694), um teólogo e filósofo francês, contemporâneo de Descartes, nas
objeções que escreveu às Meditações sobre a Filosofia Primeira:
Resta-me apenas uma
dificuldade, que é a de saber como o autor se pode defender de cometer um
círculo, quando diz que estamos certos de que as coisas que concebemos
claramente e distintamente são verdadeiras apenas porque Deus é ou existe.
Porque não podemos
estar certos de que Deus existe a não ser porque nós concebemos isso muito
claramente e muito distintamente; portanto, antes de estarmos certos da
existência de Deus, devemos estar certos de que as coisas que concebemos
claramente e distintamente são todas verdadeiras.
(Antoine Arnauld, “Quatrièmes objections”
in René Descartes, Descartes: Oeuvres et lettres, Paris: Gallimard, 1992,
p. 435 (trad. Álvaro Nunes).)
A objeção de Arnauld pode ser expressa em poucas palavras: Descartes afirma
que Deus é a garantia da verdade do que conhecemos com clareza e distinção, mas
ao mesmo tempo usa a clareza e distinção para provar a existência de Deus (uma
vez que as premissas da sua prova da existência de Deus são por ele
consideradas claras e distintas). Descartes, deste modo, raciocina em círculo
e, portanto, comete uma falácia da petição de princípio.
Se esta objeção for correta, como muitos pensam, o seu
efeito para a filosofia de Descartes é devastador. Ao contrário do que afirma,
Descartes não provou a existência de Deus nem a verdade do que percebemos clara
e distintamente e, portanto, não tem nenhum fundamento absolutamente certo para
o conhecimento. O seu projeto cai pela base.
Deus é a garantia da verdade do que
conhecemos com clareza e distinção, mas ao mesmo tempo, Descartes usa a clareza
e distinção para provar a existência de Deus.
3. A dúvida metódica é
impossível
O projeto filosófico de Descartes começa pela dúvida.
No entanto, para que a dúvida seja eficaz, o seu alcance deve ser universal e
estender-se tanto às nossas crenças como às nossas faculdades racionais.
Hume apresenta duas objeções a este projeto:
Em primeiro lugar, diz ele, este ceticismo extremo é impossível. Agir
de acordo com os requisitos da dúvida metódica está para além daquilo que os
seres humanos são capazes. A dúvida
metódica é, portanto, pura e simplesmente impraticável.
Em segundo lugar, mesmo que a dúvida fosse praticável, não seria
possível ir para além dela sem usar as faculdades racionais que a dúvida põe em
questão. Isto é, se a dúvida fosse praticável, seria inultrapassável, uma vez que qualquer tentativa
de a superar implicaria o uso das próprias faculdades a que a dúvida se
aplica.
Hume conclui daqui
que o projeto de Descartes não é de todo exequível.
4. Não temos provas da
existência do eu
A crença na existência do cogito ou «eu penso» é fundamental ao projeto de
Descartes. É pela análise do eu, enquanto puro pensamento, que Descartes prova
a existência de Deus e recupera como verdades das quais está absolutamente
certo — e não como meras crenças — tudo o que a dúvida metódica pôs em questão.
Ele pensa ter provado sem margem para dúvidas, como condição de possibilidade
da própria dúvida, que o eu existe.
Hume está também aqui em completo desacordo com Descartes. Hume pensa que não temos, nem podemos ter,
nenhuma ideia de eu.
Segundo ele, todas as nossas
ideias têm origem em impressões.
Contudo, não temos nenhuma
impressão que possa estar no origem da ideia de eu. Tudo o que
encontramos quando olhamos para nós próprios é uma sucessão de perceções
particulares, de calor de frio, de prazer e dor e nunca uma perceção do eu.
Para Hume, portanto, o eu, tal como o entendemos, não existe. De facto, ele
pensa que, de acordo com a experiência, tudo o que podemos dizer é que a mente,
ou eu, é uma espécie de feixe ou coleção de perceções.
Se Hume tiver razão, o cogito é
apenas uma ficção e, portanto, não pode ter o papel absolutamente essencial que
Descartes lhe atribui na sua filosofia.
5. Não é possível
provar a existência do mundo
O último passo da filosofia de Descartes consistiu em
provar a existência do mundo exterior e ele julga tê-lo feito ao
argumentar que as ideias cuja causa atribuímos a objetos físicos têm, de facto,
essa causa.
No entanto, Hume nega que seja
possível provar a existência do mundo exterior.
Ele aceita, como Descartes, a
distinção entre a realidade e as nossas perceções, isto é, entre o objeto
físico e a sua representação mental, mas defende que só temos experiência
direta das representações na nossa mente, não dos objetos físicos, suas
supostas causas, e, que, portanto, não é possível ter experiência da relação
causal entre as nossas representações mentais e os objetos que supostamente
elas copiam e representam.
Deste modo, não temos qualquer
razão para afirmar que os objetos físicos são a causa das nossas perceções e,
portanto, que existem objetos físicos. Mesmo que admitamos a
possibilidade da dúvida metódica e a existência do cogito, se não for possível
provar a existência do mundo físico, a
filosofia e a ciência de Descartes estão condenadas ao fracasso.
Se aceitarmos estas críticas, o projeto de Descartes está em sérias
dificuldades. Um dos interesses da filosofia de Descartes está no facto de
constituir uma tentativa de construir uma teoria do conhecimento com base no
pressuposto de que uma crença tem de poder ser justificada de forma indubitável
para ser conhecimento. O seu fracasso é também o fracasso desta conceção de
conhecimento. Mas, não sendo possível ter conhecimento, não será possível
termos crenças racionalmente justificadas, isto é, crenças verdadeiras
racionalmente justificadas, embora não de forma indubitável? Os filósofos
empiristas britânicos tendem a pensar que sim. John Locke (1632–1704), por
exemplo, restringe aquilo que podemos conhecer a número muito limitado de
crenças — a nossa existência, a existência de Deus e alguns princípios
fundamentais da ética, mas pensa que é possível com base na experiência
justificar as nossas crenças de forma provável. Terá Locke razão?
Álvaro Nunes
(adaptado)
(O sublinhado é nosso)
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