David Hume:
textos acerca de .....
"Não há razão alguma para se estudar filosofia — afirma Hume — salvo a de que, para certos temperamentos, é esta uma maneira agradável de passar o tempo. «Em todos os incidentes da vida, deveríamos, não obstante, conservar o nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos dá muito trabalho pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filósofos, deveríamos sê-lo baseados unicamente nestes princípios céticos, e pela inclinação que sentimos no sentido de dedicar-nos a isso.» Se ele abandonasse a especulação, «sinto que eu sairia perdendo quanto ao prazer; e nisto está a origem de minha filosofia».
A filosofia de Hume, verdadeira ou
falsa, é a falência da racionalidade do século XVIII. Como Locke, começa com a
intenção de ser sensorial e empírico, sem confiar em nada, mas procurando toda
o conhecimento que lhe fosse possível obter por experiência e observação. Mas,
possuidor de um intelecto melhor que o de Locke, um poder mais agudo de análise
e uma menor capacidade em aceitar inconsistências cómodas, chega à desastrosa
conclusão de que experiência e a observação nada ensinam. A crença racional não
existe: «Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só
porque nos custa muito trabalho pensar de outra maneira.» Não podemos deixar de
crer, mas nenhuma crença pode basear-se na razão. Tampouco uma linha de conduta
pode ser mais razoável que outra, já que todas elas são, igualmente, baseadas
em convicções irracionais. (…)
Era inevitável que tal refutação da
racionalidade fosse seguida de uma grande erupção de fé irracional. A disputa
entre Hume e Rousseau é simbólica: Rousseau era louco, mas influente; Hume era
são, mas não tinha adeptos. Os empiristas britânicos rejeitaram-lhe o ceticismo
sem refutá-lo; Rousseau e seus adeptos concordavam com Hume em que nenhuma
crença se baseia na razão, mas consideravam o coração superior à razão
permitindo que este os levasse a convicções muito diferentes das que Hume
conservava na prática. Os filósofos alemães, de Kant a Hegel, não assimilaram
os argumentos de Hume. Digo-o deliberadamente, apesar da crença que muitos
filósofos partilham com Kant, de que a sua Crítica da Razão Pura era
uma resposta a Hume. Na verdade, estes filósofos — pelo menos Kant e Hegel —
representam um tipo de racionalismo “pré-humeano” e podem ser refutados com
argumentos “humeanos”. Os filósofos que não podem ser refutados desta maneira
são aqueles que não pretendem ser racionais, tais como Rousseau, Schopenhauer e
Nietzsche. O desenvolvimento do irracional durante o século XIX e o que passou
para o século XX é uma consequência natural da destruição, por Hume, do
empirismo.
É importante, por conseguinte,
descobrir se há alguma resposta a Hume dentro de uma filosofia que é total ou
principalmente empírica. Se não, não há diferença intelectual alguma entre a
sanidade e a loucura. O lunático que se julga um ovo escaldado será condenado
unicamente por estar em minoria, ou antes — já que não devemos ter como certa a
democracia — por o governo não concordar com ele. Este é um ponto de vista
desesperado, e devemos esperar que haja algum meio de nos livrarmos dele".
"Se procurarmos a origem da ideia de
causa, diz Hume, descobriremos que ela não pode ser uma qualidade particular
inerente aos objetos; porque objetos dos mais variados tipos podem ser causas e
efeitos. O que temos de procurar são relações entre objetos. De facto,
descobrimos que as causas e os efeitos têm de ser contíguos entre si, e que as
causas têm de ser anteriores aos seus efeitos. Mas isto não é suficiente;
achamos ainda que tem de haver uma conexão necessária entre causa e efeito,
embora a natureza desta conexão seja difícil de estabelecer. Hume nega
que tenha de haver uma causa para a existência de tudo aquilo que começa a
existir. Sendo todas as ideias distintas separáveis umas das
outras, e sendo as ideias de causa e efeito evidentemente distintas, é fácil
concebermos um objeto como não existente neste momento, e existente no momento
seguinte, sem lhe juntarmos a ideia distinta de uma causa ou de um princípio
produtivo. É evidente que «causa» e «efeito» são termos
correlativos, como o são «marido» e «mulher», e que todo o efeito tem de ter
uma causa, da mesma maneira que todo o marido tem de ter uma mulher. Mas isto
não prova que todos os acontecimentos tenham de ter uma causa, da mesma maneira
que, do facto de todos os maridos terem de ter uma mulher, não se segue que
todos os homens tenham de ter uma mulher. Tanto quanto sabemos, pode haver
acontecimentos sem causas, tal como existem homens que não têm mulher. Se
não há qualquer absurdo em conceber que algo venha à existência ou seja sujeito
a alterações sem uma causa, não há, a fortiori, qualquer absurdo em
conceber que um acontecimento ocorra sem um tipo particular de causa. Sendo
logicamente concebível que muitos efeitos diferentes resultem de uma causa
particular, só a experiência pode levar-nos a esperar o efeito real. Mas com
base em quê? O que acontece, afirma Hume, é que observamos que indivíduos
pertencentes a uma espécie são constantemente acompanhados por indivíduos
pertencentes a outra. «A contiguidade e a sucessão não são suficientes para nos
levarem a declarar que quaisquer dois objetos são causa e efeito, a não ser que
observemos que estas duas relações são preservadas em diversos exemplos». Mas
de que forma nos faz isto progredir? Se a relação causal não pode ser detetada
num só exemplo, como pode ela ser detetada em diversos exemplos, se todos os
exemplos semelhantes são independentes uns dos outros e não se influenciam uns
aos outros? A resposta de Hume é que a observação da semelhança produz
uma nova impressão na mente. Tendo nós observado que um número suficiente de
casos de B se seguem a A, sentimos uma determinação da mente em passar de A
para B. É aqui que descobrimos a origem da ideia de conexão necessária. A
necessidade «mais não é do que uma impressão interna da mente, ou uma
determinação para levarmos os nossos pensamentos de um objeto para outro». A
impressão da qual deriva a ideia de conexão necessária é a expectativa do
efeito quando a causa se apresenta, expectativa essa que constitui uma
impressão produzida pela conjunção habitual de ambos. Por muito paradoxal
que possa parecer, não é a nossa inferência que depende da conexão necessária
entre causa e efeito, mas é a conexão necessária que depende da inferência que
retiramos de uma para a outra. Hume oferece-nos, não uma, mas duas definições
de causalidade. A primeira é a seguinte: uma causa é «um objeto precedente e
contíguo a outro, sendo todos os objetos semelhantes ao primeiro colocados numa
relação de semelhança e contiguidade com os objetos que se assemelham ao
segundo». Nesta definição, nada se diz acerca da conexão necessária, e não é
feita qualquer referência à atividade da mente. Assim sendo, é-nos apresentada
uma segunda definição, mais filosófica que a primeira. Uma causa é «um objeto
precedente e contíguo a outro, e de tal maneira unido a ele na imaginação que a
ideia de um determina a mente a formar a ideia do outro, e a impressão de um
outro.”
Anthony Kenny, História Concisa da
Filosofia Ocidental,
REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho,
Sociedade Portuguesa de Filosofia
"Quando por conseguinte temos alguma suspeita de que um termo filosófico é
empregue sem nenhum significado ou ideia (como é muito frequente), basta-nos
perguntar sobre a impressão de que a ideia supostamente deriva. E se for
impossível encontrar alguma, isto servirá para confirmar a nossa suspeita. Ao
clarificar assim as ideias, podemos razoavelmente esperar que possam ser
removidos todos os conflitos que possam surgir sobre a sua natureza e realidade.
As consequências destas linhas são estonteantes.
Consideremos a ideia de um eu durável, algo de substancial que persiste por
detrás das muitas mudanças que experimentamos ao vivermos a vida. Suponho, por
exemplo, que esta manhã sou essencialmente o mesmo eu que era quando me fui
deitar a noite passada. Não só isso, acho também que sou o mesmo eu que era na
juventude que desaproveitei. Acho que serei o mesmo eu enquanto viver. Sem
dúvida, algumas coisas mudaram: cresci, ganhei algumas cicatrizes, o meu cabelo
está a tornar-se um pouco grisalho. Contudo, parece haver algo de essencial, o
meu verdadeiro eu, que persiste em todas estas alterações acidentais.
Se concordarmos com o princípio de Hume sobre a relação entre ideias e
impressões, e se estivermos convencidos de que o seu método de remover ideias
fictícias é o caminho certo, temos apenas que perguntar: «De que impressão é a
minha ideia derivada?» Ao olhar para dentro de mim, afirma Hume, não encontro
nada, excepto uma série de impressões fugazes – ódio, amor, calor, dor,
imagens, sons, cheiros e coisas do género –, mas nada permanente, nada que
persista em todas as alterações. Em suma, nenhuma impressão corresponde à nossa
ideia de eu. A ideia presente na palavra «eu» pode juntar-se a «unicórnio»: «eu»
é uma palavra que expressa uma ideia ilusória, uma ficção da imaginação.
Mas as coisas tornam-se muito piores. A abordagem que Hume faz da natureza do
entendimento humano começa com uma distinção entre dois tipos de «objectos da
razão humana»: relações de ideias e matérias de facto. As relações de ideias
podem ser descobertas apenas pela razão. Podemos saber que os solteiros são
homens não casados ou que duas vezes cinco é metade de vinte pensando apenas
sobre as relações entre as ideias em causa. As matérias de facto, porém, podem
apenas ser descobertas pela experiência. Podemos meditar o tempo que quisermos
sobre a proposição de que o sol está a brilhar, mas só saberemos se ela é
verdadeira olhando pela janela. Há outra diferença entre estes dois tipos de
proposição. O contrário de uma matéria de facto é possível, mas se negarmos uma
relação entre ideias verdadeira, incorremos numa contradição. O sol pode não
ser brilhante, mas não se pode estar mais longe da verdade do que quando
alegamos que os solteiros são casados".
(London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires
(rev. científica Logosferas).
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