Filosofia da Religião
Marx e a Religião
A crítica da religião como crítica da realidade social no pensamento de Karl Marx
The critique of the religion as critique of the social reality in Karl Marx’s thought
RESUMO:
Não há, no pensamento de Marx, uma elaboração sistemática acerca da
religião, embora haja uma crítica a ela enquanto crítica social das condições
materiais de existência, que é o fundamento dela. Para Marx, a religião,
entendida especificamente como superstição, idolatria, “ópio”, a qual conforma
o homem e embaraça a sua consciência, deve ser negada, mas não se trata pura e
simplesmente de um desprezo, de uma proibição ou perseguição à religião, nem
tampouco de uma negação em geral a ela, uma vez que ela é uma questão privada e
deve ser respeitada, mas de desvelar o véu religioso presente na sociedade e no
seu ordenamento político, no Estado, que oculta a exploração e a opressão
humana. A crítica à religião como crítica da realidade social, da qual ela nasce
e é expressão ideal, contribui, de certa forma, para a emancipação social do
homem.
PALAVRAS-CHAVE:
Crítica à religião em Marx; Crítica à religião como crítica social em Marx;
Marx e a religião
ABSTRACT:
it is not to be found in Marx’s thought a systematic elaboration concerning
religion, although there is indeed a critical appraisal of it as a result from
his social critique of material conditions of human existence which is its
foundation. In Marx’s perception, religion is understood specifically as
superstition, idolatry, “opiate”, something that pushes man to accommodation
and twists his conscience, and as such should be dismissed, this act being not,
however, a mere refusal, prohibition or persecution, or a wide negation of it,
considering that it is a private issue and as such should be respected, but as
an effort to cast off the religious veil covering society and its political
ordainment commanded by the State, and hides exploitation and oppression of
human beings. Critique of religion as an evaluation of social reality, from
which religion derives, is an ideal proposition that to a certain extension
contributes to the social emancipation of men.
KEYWORDS:
Marx’s critique of religion; Marx’s critique of religion as a social critique;
Marx and religion
Marx não desenvolveu de maneira detida e sistemática
sua crítica à religião, considerando até um problema já amplamente trabalhado
por Feuerbach2, embora tenha dado diversos destaques à relação entre a religião e o
capitalismo, tal como fê-lo, meio século depois, Max Weber, na associação do
protestantismo com o capitalismo, em sua obra Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo.3 No entanto, pode-se dizer que Marx esboçou
diferentes concepções acerca da religião, tratando dela, tal como da ética, da
filosofia, da família, da política, do direito, do Estado etc., como um produto
das ideias, das representações teóricas, da consciência utópica, como produção
espiritual de um povo, como uma forma social de consciência, pertencente à
esfera da superestrutura ideológica4 (como ideologia religiosa),
condicionada, pois, pela produção material, pela estrutura econômica, a base da
sociedade, e pelas relações sociais correspondentes. Como Marx assinala, no
Prefácio (Vorwort) a Para a Crítica da Economia Política (Zur
Kritik der politischen Ökonomie) (1859):
A totalidade das relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona em geral o processo da vida
social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.
[...] Com a transformação da base econômica altera-se, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais
transformações é necessário sempre distinguir entre a transformação material -
que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições
econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas. (MARX, 1983, p. 8-9).
Contudo, para Marx, como materialista e ateu convicto, a religião ocupa uma
posição especial na superestrutura, diferentemente das demais formas
ideológicas, a saber, a política, a social e a cultural, na medida em que ela,
não na sua dimensão privada, exercida por um indivíduo particular, que só a ele
diz respeito, mas na sua dimensão social e política enquanto expressão de
alheamento do homem de seu mundo real e de conformação social com esse mundo,
colaborando para a “perpetuação” de uma dada sociedade, deve ser suprimida
positivamente. Suprimir positivamente a religião significa, de acordo com o meu
parecer, negar a religião, não na esfera privada, enquanto prática individual,
porém, na esfera pública, a função social dela. O foco de Marx é a crítica ao
revestimento religioso, ou seja, a presença da religião, por exemplo, na
sociedade civil (como na religião, na qual há uma cisão entre a esfera terrena
e a esfera celeste, a sociedade civil, enquanto esfera do aquém, privada, profana,
está em oposição à esfera do além, do “sagrado”, do Estado), no Estado (como um
universal sagrado, eterno, uma totalidade, um guardião protetor), no capital (a
fé no capital, visto como um grande deus, o deus-capital, o verdadeiro deus, o
único deus real e vivo, o deus implacável, o deus sinistro, que faz e desfaz,
que cria e destrói, que pode ser conhecido, visto, tocado, cheirado, provado,
um deus todo-poderoso, ilimitado, eterno, internacional, universal, presente em
todos os locais, manifestado sob diferentes formas), no “milagre” das
tecnologias, na mercadoria (as transformações, as encarnações de uma mercadoria
em outras), no reino do dinheiro, do ouro (o dinheiro como objeto adorado,
venerado, como “a alma” do capitalismo, que move o universo e é mercadoria
milagrosa, a qual contém em si outras mercadorias), nos “princípios sagrados,
eternos” do trabalho (o trabalho como atividade sagrada, à qual deus compensa)
(LAFARGUE, s/d, p. 16, 18, 33, 68-69), como objetos de adoração, que, embora
profanos, laicos, se revestem de religiosidade, se apresentam de forma
religiosa, ocultando seus conteúdos.
Qual o significado, todavia, da religião em geral para Marx?
Penso que, do ponto de vista de Marx, a religião se expressa de cinco maneiras:
1. como uma expressão às avessas, como um reflexo invertido da totalidade das condições inumanas em que se encontra o homem, na sociedade capitalista e, por isso,
2. como uma contestação, uma recusa ou como um protesto indireto contra a dor, o sofrimento, o desamparo real, contra uma condição insatisfatória imposta ao homem;
3. no entanto, como um protesto impotente, como uma impotência para combater essa condição insatisfatória, como uma barreira, um obstáculo que impede ao homem a tomada de consciência de sua situação inumana, para conduzir, na prática, uma transformação da sociedade, marcada pela propriedade privada à custa da exploração do homem pelo homem;
4. como uma esperança na salvação, não neste mundo, mas no paraíso, no além, como uma ilusão de um outro mundo, de uma felicidade ilusória, de um mundo imaginário, celestial, oposto ao mundo real, de privações, de miséria, ou seja, de um mundo melhor, perfeito, como o céu, o paraíso, no qual o homem se vê livre de uma vida insuportável, de sua situação inumana, miserável, quer dizer, uma ilusão necessária para suportar as dores reais advindas do mundo do capital de exploração e desumanização, fornecendo, pois, ao homem a religião
5. como uma explicação não verdadeira, mas
fantasiosa, mistificada da realidade, levando-o à passividade, à consolação,
com a esperança da recompensa celeste, ao conformismo e à resignação, que
colabora com o status quo e legitima as condições inumanas
existentes.
A crítica à religião é, para Marx, a premissa, a condição preliminar,
“[...] o pressuposto de toda a crítica” (MARX, 1983, p. 378), pois, ao
criticarmo-la, estamos, na verdade, também criticando a realidade, da qual ela
nasce e que é o fundamento dela, a raiz social, a fonte do entontecimento
religioso. A religião não é autônoma, existente para si, mas reflexo fantástico
das potências exteriores, terrestres, que adquirem formas “supraterrestres” e
passam a dominar o homem; ela é, pois, reflexo deformado, expressão distorcida,
consciência invertida (Deus fez o homem, e não o homem quem fez Deus) de um
mundo distorcido, invertido (o Estado como fundador da sociedade civil, e não a
sociedade civil como formadora do Estado), do mundo invertido do capital, no
qual o sujeito trabalhador aparece, não como sujeito, mas como dependente do
capital, e o capital, que é dependente do trabalho, aparece como sujeito). A
religião não é a base, mas expressão do mundo estranhado; e, se o homem está
dividido na religião entre seu ser genérico, seu ser universal (Deus) e seu ser
singular, individual (o homem concreto), é porque o mesmo homem já está, no
mundo real, fragmentado, mutilado entre sua vida universal, abstrata, no
Estado, e sua vida real, individual, na sociedade civil-burguesa.
A religião é um fenômeno social, como uma imagem do mundo invertido, das
reais contradições da sociedade, por exemplo, das contradições da realidade do
capital, e não é enfrentando diretamente a religião que a desvelaremos, como
fê-lo Feuerbach, porém, é desvelando as suas raízes sociais, as contradições do
real, que revelaremos o seu segredo. Por isso, Marx critica, precisamente,
Feuerbach, porque este inverteu a ordem da crítica, tomando como tarefa
fundamental revelar o segredo da religião, sem revelar a sua base material, o
seu fundamento, que é a sociedade concreta, que engendra a religião. Para
compreender a religião, Marx não passa do “reino de Deus” para o “reino dos
homens”, não desce do céu à terra, mas parte da terra, das coisas terrestres,
reais, para compreender o céu, as coisas celestes. Marx frisa, na IV
Tese sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach) (1845-1846):
Feuerbach parte do fato do auto-estranhamento religioso, da duplicação do
mundo num mundo religioso imaginário e num mundo real. Seu trabalho consiste em
dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno. Ele não vê que, depois
de completado esse trabalho, o principal ainda resta por fazer. Mas o fato de
que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino
autônomo, só pode ser explicado pelo auto-dilaceramento e pela auto-contradição
desse fundamento terreno. Este deve, pois, ser primeiramente compreendido em
sua contradição e depois revolucionário praticamente, pela eliminação da
contradição. Assim, por exemplo, uma vez descoberto que a família terrestre é o
segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser criticada na teoria e
revolucionada na prática. (MARX, 1058, p. 534).
Precisamente, em A Ideologia Alemã (Die deutsche
Ideologie) (1845-46), Marx, e também Engels, mantém, de modo explícito, uma
postura antiespeculativa, opondo-se às ideias tomadas como abstratas,
autônomas, pelos neo-hegelianos (Feuerbach, Bauer e Stirner). Marx, e também
Engels, enfatiza que as ideias pertencem a uma época, e não uma época a uma
ideia determinada, ou seja, que não se explica a práxis a partir das ideias,
mas se explicam as formações ideológicas a partir da práxis material. Ao
contrário do pensamento sem pressuposto, eles partem de pressupostos reais e
inelimináveis, da produção material da vida, dos meios para satisfazer as
necessidades vitais (comer, beber, ter habitação, vestir-se), com os quais
“[...] a produção das idéias, das representações da consciência está [...]
imediatamente entrelaçada.” (MARX, 1958, p. 26). Portanto,
embora as ideias, as representações, sejam produzidas pelos homens, elas, e
todas as formas de ideações, como a religião, a moral, a filosofia e qualquer
outra ideologia, não são autônomas, independentes, desligadas das bases
materiais e temporais, dos fatos, desprovidas de pressupostos, incondicionadas,
auto-engendradas, mas são expressões ideais das circunstâncias reais, das
condições materiais de existência, extraídas do mundo real, isto é, têm como
raiz, como fonte primária, a produção e o intercâmbio material da vida
social-humana.
Nesse sentido, Marx acredita que Feuerbach não resolveu, por exemplo, o
problema fundamental da religião, porque ignorou a base social dela, não
percebendo que ela não é autônoma, abstrata, atemporal, mas um produto social,
que pertence a uma determinada forma social e que passa por transformações em
diferentes períodos históricos (MARX, 1959, p. 480).5 Isso Marx deixa
claro na VII Tese ad Feuerbach: “Feuerbach não vê que o
próprio ‘espírito religioso’ é um produto social e que o indivíduo abstrato,
que ele analisa, pertence na realidade a uma forma social determinada.”( MARX, 1959, p. 535). Marx
defende que o homem produz a religião6, sonha com um mundo fantasioso, projeta
sua essência num ser superior, porque ele não vê, na vida real da sociedade, as
condições para o desenvolvimento de sua humanidade. A religião é “[...] a
realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui
verdadeira efetividade.” (MARX, 1983, p. 378). Por conseguinte, para superar
positivamente a religião, o seu estranhamento, não é suficiente revelar o seu
segredo, combatê-la subjetivamente, mas é necessário transformar as condições
reais de vida que favorecem o surgimento e o desenvolvimento da religião, das
“quimeras celestes”.
Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução (Zur
Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung) (1843-44), Marx
enfatiza também que é o homem quem cria a religião e que a realidade é o
fundamento dela, e não o contrário:
Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é
o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta
sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do
mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria
geral deste mundo, o seu compêndio enciclopédico, a sua lógica em forma
popular, o seu point d’honneur (“ponto de honra”) espiritual,
o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua
fundamental razão de consolação e de justificação. Ela é a realização
fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui realidade
verdadeira. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta
contra aquele mundo, cujo aroma espiritual é a
religião. (MARX, 1983, p. 378, grifo do autor)7
Em A Questão Judaica (Zur Judenfrage) (1844), Marx
mostra que não só Feuerbach, mas também Bruno Bauer, tratam do problema da
emancipação, da autonomia e da liberdade somente a partir da crítica à
religião, ao Estado cristão. Contrário a essa posição, Marx substitui a crítica
ao Estado teológico, cristão, pela crítica ao Estado profano, político, pois a
questão da emancipação humana não é apenas uma disputa teológica, um problema
estritamente religioso, nem político-burguês, como considera Bauer, mas
principalmente humano-social. Assinala Bauer:
O Estado cristão conhece apenas privilégios. O judeu, neste Estado, possui
o privilégio de ser judeu. O Estado cristão, em razão de sua natureza, não pode
emancipar o judeu; mas o judeu, em razão de sua essência, não pode ser
emancipado. Enquanto o Estado permanecer cristão e o judeu continuar a ser
judeu, são igualmente incapazes, aquele de conferir e este de receber a
emancipação. (MARX, 1957, p. 347-348)
Bauer concentra sua atenção na emancipação política exclusivamente e, por
isso, se contenta em fazer a crítica à religião, ao Estado religioso. Para
lograr tal intento, pede ele a todos os religiosos e ao Estado a abolição da
religião, por ser um fator de segregação humana. Tanto os cristãos como os
judeus devem superar o preceito teológico, o qual Bauer considera contrário à
razão e à natureza humana. Por isso, o Estado teológico é, para ele, menos
Estado que o Estado político, profano, já que a presença da religião e de seus
critérios na esfera pública impedem a formulação de um bem comum, fundado na
comunidade de homens livres, na igualdade de direitos e no desfrute da
liberdade. Assim como o homem autêntico, racional e livre é aquele que supera o
preceito religioso, o Estado legítimo é o Estado político, laico,
antirreligioso, que está voltado unicamente para a realização da liberdade
segundo a razão.
Nesse sentido, a suplantação da religião é, para Bauer, o pressuposto da
emancipação política, dado que o judeu deixará de ser judeu, quando o Estado
não atingir mais o cumprimento de uma dada religião e abolir, por conseguinte,
todos os privilégios religiosos, incluindo a preponderância de uma igreja
privilegiada. Com efeito, Bauer almeja que o judeu abdique ao judaísmo, que o
cristão deixe o Cristianismo e que o homem em geral renuncie à religião, para
que possam se emancipar politicamente como cidadãos. Tendo em vista a
interpretação segundo a qual o Estado que pressupõe a religião não é ainda um
Estado verdadeiro, efetivo, uma associação de homens livres, mas uma associação
de crentes8, corrobora então a ideia de que a supressão da religião é condition
sine qua non para a realização da liberdade e da autonomia humanas, a
qual se efetiva no Estado político. Ao contrário dessa posição, Marx sustenta
que tal questão é unilateral, já que não é necessário que o indivíduo renuncie
à religião para lograr sua liberdade no plano político. É evidente que a
emancipação política constitui um colossal avanço, contudo, ela não é, na
verdade, a forma última da emancipação humana enquanto tal. Por isso,
frisa Marx (1957b, p. 350-351):
Devido ao fato de não formular a questão a este nível, Bauer cai em
contradições. Põe condições que não são fundadas na natureza mesma da
emancipação política. [...] Quando Bauer diz aos adversários da emancipação
judaica: “O seu erro foi somente supor que o Estado cristão era o único
verdadeiro e que não tinha de submeter-se à crítica dirigida ao judaísmo” -
vemos o equívoco de Bauer no fato de só submeter à crítica o “Estado cristão”,
e não o “Estado como tal”; de não analisar a relação entre emancipação política
e emancipação humana e, portanto, de colocar situações que só se explicam pela
confusão, devido às lacunas da crítica, entre emancipação política e
emancipação geral da humanidade.
Marx não parte, como Bauer, da relação entre emancipação política e
religião, mas entre emancipação política e emancipação humana, tampouco busca a
base da imperfeição do Estado na religião, senão no próprio Estado político. O
Estado, mediado pela política representativa moderna, democrático-burguesa, pode
desprender-se do constrangimento religioso, sem que o homem seja realmente
livre. Por exemplo, o Estado político moderno suprime, de forma
político-burguesa, ou seja, abstrato-formal, a propriedade privada, todavia,
tal supressão pressupõe, ao contrário, a existência dela no mundo real. Em
princípio, ele não admite nenhuma distinção de fortuna, de nascimento, de
posição social, de instrução ou de profissão, porque proclama a emancipação
igualitária do indivíduo perante os direitos humano-universais, a democracia
burguesa e a soberania nacional. Mas, na verdade, longe de suprimir as
sobreditas distinções, diferenças e desigualdades, o Estado político só existe
na medida em que as pressupõe. Por isso, esse Estado atinge sua universalidade
de maneira abstrata, isto é, sobre esses elementos particulares, sobre essas
diferenças sociais, configurando-se, portanto, como explicitação da vida
genérica do homem em oposição à sua vida real.
No Estado político-moderno, são declarados os direitos do homem, como a
liberdade, a propriedade, a igualdade e a segurança. Contudo, essa liberdade,
concebida como direito do homem, não se objetiva nas relações sociais, senão no
direito do indivíduo segregado, fechado em si mesmo. A objetivação prática
desse direito constitui, por isso, o direito à propriedade privada. O direito
humano à propriedade privada é, por sua vez, o direito de usufruir dos bens e
rendimentos, sem conceder devida atenção aos outros homens. Desse modo, o
direito à igualdade torna-se meramente uma subscrição dos dois anteriores
mencionados, quer dizer, a igualdade política não tem correspondência na
igualdade real-social. Por fim, o direito à segurança consiste na garantia
outorgada pela sociedade a cada um de seus membros para a preservação de sua
pessoa, de seus direitos e de sua propriedade. Assim, nenhum desses supostos
direitos do homem transcende a propriedade privada, o egoísmo individual; pelo
contrário, eles estão estritamente determinados e fundamentados nos interesses
pessoais, privados dos indivíduos da sociabilidade capitalista. (CHAGAS,
2006). Marx (1957b, p. 366) sublinha:
Esse fato torna-se ainda mais misterioso quando observamos que os
emancipadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples
meio para conservar esses pretensos direitos do homem: e que, em consequência,
o cidadão é declarado servidor do homem egoísta. A esfera em que o homem se
comporta como ser comunitário é rebaixada a uma esfera inferior, onde ele age
como ser fragmentado; e que, por fim, é o homem como burguês [...] que é
considerado como homem verdadeiro e autêntico.
Esse conflito em que o homem se vê envolto entre Estado e sociedade civil,
entre vida genérica e vida real, é similar à contradição em que o burgeois -
o qual leva uma vida retraída, privada e egoísta - se encontra com o citoyen -
que participa de uma vida coletiva imaginária, despojada da vida real e dotada
de uma universalidade ilusória. Essa oposição foi deixada intacta por Bauer,
porquanto reduziu sua polêmica em torno do antagonismo entre religião e
emancipação política. Para Marx, conquanto a emancipação política burguesa
constitua um colossal avanço, ela não é ainda, como já expresso, o télos último,
a plena emancipação humano-social. No Estado político, os indivíduos, sejam ou
não religiosos, surgem como religiosos por causa da dicotomia entre vida
individual e vida genérica, isto é, entre vida social e vida política. A
religião, como elaboração espiritual da sociedade civil, aparece então como
objetivação do estranhamento do homem em relação à sua genericidade, porque o
homem trata a vida política despojada da vida individual, como se fosse sua
verdadeira vida. Com efeito, o Estado político é a expressão máxima dessa
realidade, na qual o homem se acha corrompido, pedido de si mesmo; em síntese,
sujeito aos domínios e elementos inumanos inerentes à sociabilidade do capital.
Frisa Marx (1957b, p. 350-351):
O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do
homem em oposição a sua vida material. [...] Onde o Estado político já atingiu
seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no plano do pensamento, da
consciência, mas também no plano da realidade, uma dupla vida: uma celestial e
outra terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser
coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como particular, considera
os outros como meios, degrada-se a si próprio como meio e converter-se em
joguete de poderes estranhos.
Em O Capital (Das Kapital) (1867), Marx faz uma
analogia do fetichismo religioso com o fetichismo da mercadoria: como no
fetichismo da religião se oculta o homem com a verdade de Deus, assim também no
fetichismo da mercadoria se oculta a realidade que está por trás da própria
mercadoria, que é o trabalho, ou o produtor do trabalho; ou melhor, no
fetichismo religioso, Deus aparece autônomo, independente, e o homem apenas
como dependente e não como sujeito e verdade acerca da existência de Deus; e,
no fetichismo da mercadoria, o produto do trabalho, a mercadoria, aparece como
se fosse autônomo, independente do seu produtor, e o produtor, o trabalhador,
aparece como dependente e não sujeito do produto de seu próprio trabalho.
Acrescenta Marx (1962, p. 86-87, 94):
Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que
aqui, para eles, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por
isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do
mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si com os homens. Assim
no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo
de fetichismo, que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como
mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. Esse
caráter fetichista do mundo das mercadorias provém [...] do caráter social
peculiar do trabalho que produz mercadorias [...]. O reflexo religioso do mundo
real somente pode desaparecer, quando as circunstâncias cotidianas da vida
prática representarem para os homens relações transparentes e racionais entre
si e com a natureza.
Um texto importante de O Capital sobre o homem reificado
é, precisamente, “O Caráter Fetichista da Mercadoria e o seu Segredo” (Der
Fetischcharakter der Ware und sein Geheimnis). Investigando o fetichismo da
mercadoria, Marx observa que o caráter “místico”, “enigmático”, da mercadoria
não provém de seu valor de uso, mas da forma do valor, do valor de troca. Assim
ele descreve o fenômeno do fetichismo da mercadoria:
O mistério da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens as características sociais de seu próprio trabalho
como características objetivas dos produtos do trabalho mesmo, como qualidades
naturais sociais destas coisas, por isso, também reflete a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social de objetos, que existe
fora deles. Por meio desses quiproquós os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas sociais, sensíveis e suprassensíveis. [...] É apenas a
relação social determinada dos próprios homens, tomada aqui por eles como a
forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” “Já que os produtores
somente entram em contato social mediante a troca dos produtos de seu trabalho,
também as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só
aparecem dentro dessa troca. [...] Por isso, aos últimos [aos produtores], as
relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como o que elas são,
isto é, não como relações imediatamente sociais entre pessoas em seus próprios
trabalhos, mas, pelo contrário, como relações reificadas entre as pessoas e
relações sociais entre as coisas. (MARX, 1962, p. 86-87).
Marx enfatiza, aqui, a condição trágica do homem no mundo do capital, pois,
no processo produtivo de mercadorias, cria-se uma objetividade que anula os
próprios homens. Marx destaca a presença de uma objetividade sem o homem, ou de
um homem esvaziado, para o qual a realidade aparece como um mundo exterior;
quer dizer, o homem desconhece o mundo, a sua própria atividade, as condições
pelas quais se produz a sua própria existência, percebendo o mundo, a
existência real, como fora dele, externa e alheia a ele, e não como um produto
de seu próprio trabalho, de sua própria subjetividade, tal como o religioso que
produz Deus, mas não se vê como seu criador, porém, como criatura externa e
dominada por Deus. Marx mostra ainda que, nessas condições fetichizadas, os
homens enquanto homens são abolidos e se tornam coisas vivas (de ordem
mercadológica), enquanto os produtos de seu trabalho, as mercadorias, aparecem
como atributos de si mesmas, autonomizadas, dotadas de um poder sobrenatural,
ocultando, desse modo, a sua origem, a sua fonte, isto é, o trabalho social que
as fundamenta.
Já numa obra de juventude, os Manuscritos Econômico-Filosóficos (Ökonomisch-philosophische
Manuskripte) (1844), particularmente no capítulo sobre o “Dinheiro”, Marx
falara do fetichismo do dinheiro, comparando-o a um Deus, na sociedade
capitalista, porque a propriedade privada, a posse do dinheiro e seu fetichismo
aparecem como um Deus, como uma divindade, um ídolo, criado, cultuado e adorado
pelo próprio sistema do capital. Marx ilustra isso com passagens literárias
do Timon de Atenas, de Shakespeare:
Ouro? Amarelo, brilhante, precioso ouro? Não, deuses:
[...] Esta quantidade de ouro bastaria para transformar o preto em branco;
o feio em belo; o falso em verdadeiro; o vil em nobre; o velho em jovem; o
covarde em valente.
[...] Este escravo amarelo
Vai unir e dissolver religiões; bendizer amaldiçoados;
Fazer adorar a lepra lívida, dar lugar aos ladrões,
Dando-lhes títulos, genuflexões e elogios
[...] Prostituta comum de todo o gênero humano, que semeias a discórdia
entre a multidão de nações. [...]. (MARX, 1990, p. 563-564).
E mais adiante:
Ó tu, doce regicida; amável agente de separação
Entre o filho e o pai! Brilhante corruptor
[...] Galanteador, sempre novo, viçoso, amado e delicado,
Cujo esplendor funde a neve sagrada
Que descansa sobre o seio de Diana, tu, deus visível,
Que tornas os impossíveis fáceis,
[...] Possam conquistar o império do mundo. ((MARX, 1990, p. 564).
Em Shakespeare, fica clara a identificação do dinheiro com uma divindade
visível, como ser onipotente, poder absoluto, força divina, que pode
verdadeiramente criar tudo, tornar todos os desejos humanos, todos os seus
sonhos, uma realidade efetiva. O dinheiro, “o bezerro de ouro” moderno, em
virtude de suas propriedades, de poder comprar tudo, de se apropriar de tudo,
de ser universal e onipotente, “o sedutor” que prostitui e inverte as
qualidades humanas e se converte na sociedade do capital num ser onipotente,
num Deus mundano, todo poderoso, honrado e adorado.
A religião é também, como expresso, ilusão9, compensação ideal, funcionando como um
remédio, um meio de evasão, de refúgio, o ópio espiritual (geiste Opium)
do povo oprimido, sofrido, como uma espécie de má “aguardente espiritual”, a
qual serve para ocultar e justificar uma determinada realidade (a realidade
capitalista), como uma espécie de nevoeiro, de véu sobre a irracionalidade da
realidade (da produção burguesa), entontecendo, adormecendo, apaziguando a
consciência do homem, amparando-o, aliviando-o, consolando-o de sua miséria no
mundo real, para que ele suporte e esqueça a dureza de sua realidade
degradante, levando-o, pois, ao “gozo celeste”, ao conformismo e à resignação,
conforme assevera Marx (1957a, p. 378):
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da
miséria real e, de outro, o protesto contra a miséria real. A
religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o
espírito de uma situação carente de espírito. Ela é o ópio do povo. (Grifo do
autor).
Marx acredita que, para libertar o homem da religião, de suas ilusões
religiosas, é necessário primeiro libertá-lo do tipo de vida que o leva a
ansiar pela religião, ou seja, é preciso mudar o mundo em que o homem precisa
de ilusões. Livrando-se das “flores imaginárias”, pode-se colher as “flores
vivas”. Nesse sentido, é fundamental não combater o efeito, mas a causa da
religião, que é a estrutura social, política e econômica da sociedade
capitalista.
Enfatiza Marx (1957a, p. 379):
Assim, a tarefa da história, depois que o mundo do além
da verdade se desvaneceu, consiste em estabelecer a verdade
deste mundo. É primeira tarefa da filosofia, que está a serviço
da história, desmascarar o auto-estranhamento humano em suas formas não
santificadas, depois que ela foi desmascarada na forma sagrada. Com isto, a
crítica do céu se converte na crítica da terra, a crítica da religião
na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica
da política. (Grifo do autor).
Afirma Marx (1957a, p. 385) ainda:
A crítica da religião leva à doutrina de que o homem é o ser
supremo para o homem e, consequentemente, ao imperativo
categórico de derrubar todas as relações, nas quais o homem é um ser
humilhado, escravizado, abandonado e desprezível.(Grifo do autor).
Portanto, a religião - o mundo fantástico dos deuses - existe, porque
existe um mundo irracional e injusto ao homem. Ela não é fruto de uma revelação
sobrenatural, não é produto da ignorância, nem da invenção de impostores, de
profetas, teólogos ou líderes, nem de uma conspiração clerical, mas produto do
homem oprimido, explorado, o qual busca alívio, abrandamento, consolo na
religião, no seu universo imaginário, acerca de suas dores e seus sofrimentos.
Assim, a religião e suas ilusões não desaparecerão, enquanto não se eliminarem
as condições que as criam; e sem a superação dessas condições, a felicidade
será alcançada só no outro mundo, e o paraíso será sempre um paraíso celeste, e
não “um paraíso real”, na terra, num futuro histórico.
Não se trata aqui de uma posição dogmática e inflexível de Marx a favor de
uma luta decidida contra toda religião, ou de uma defesa da abolição do
sentimento religioso pela força, pela violência, ou da pretensão de
transformar, por “ordem superior”, por decreto, os crentes em ateus, como
queriam, de forma sectária, os blanquistas, os anarquistas, durante a Comuna de
Paris, e alguns bolchevistas, durante a República Socialista Soviética, de
sorte a estabelecer uma sociedade ateia. Não há no pensamento de Marx o ateísmo
como um artigo de fé obrigatório, menos ainda “um policiamento espiritual”,
como a defesa do desdém, da injúria, do preconceito, da intolerância, da
proibição ou perseguição à religião em geral. Na verdade, há o entendimento de
que a religião deve ser uma questão privada10 em relação ao Estado, ao espaço
público e a cada indivíduo, o qual deve ser livre para crer ou não, pois deve
haver liberdade de consciência e de crença para todos, bem como tolerância e
respeito, que devem ser universais, às pessoas que são crentes.11 A ênfase que se
deu aqui foi, por um lado, uma crítica a uma dada forma de sociedade e ao seu
ordenamento político, o Estado, que se apresentam, embora laicos, de forma
religiosa, ocultando suas verdadeiras funções de exploração e opressão, e, por outro
lado, uma “negação específica” da religião, a saber, a negação da religião,
quando ela é utilizada em prejuízo ao ser humano; a negação dela enquanto
obscurantismo, como superstição, idolatria, misticismo, como narcótico que
mantém o indivíduo paralisado, acomodado no seu lugar, a serviço do
capitalismo, o qual o explora e obstaculariza a sua consciência e, por isso, a
crítica e a desmistificação da religião como crítica da realidade da qual ela
nasce, contribuindo, em certa medida, para a emancipação social do homem.12
Nesse sentido, é mister afirmar, enfim, que nem toda religião é, ou foi,
estranhamento, ocultamento das contradições do real e a serviço da exploração e
da dominação; quer dizer, nem toda religião é, de uma vez para sempre, o “ópio
do povo”, pois cada religião ocupa um lugar e uma função específica dentro de
seu contexto sociopolítico-econômico. Por exemplo, o Cristianismo primitivo,
cujos membros não eram chefes nem profetas, mas os banidos socialmente, os
subjugados e dispersos por Roma, os privados de direitos, os pobres, os
escravos, os perseguidos, os oprimidos e não tinham privilégios, nem
propriedades, pregavam um Evangelho da libertação da servidão e da miséria, da
supressão dos privilégios, das diferenças de riqueza, da fraternidade e da
igualdade. Tal Cristianismo nascente queria, partindo da igualdade dos homens
perante Deus, restabelecer a igualdade civil, a igualdade entre os membros da
comunidade social-política. Portanto, o Cristianismo primitivo, “o humilde
Cristianismo dos primeiros séculos”, despojado de propriedade privada,
oferecia, pelo menos em nível ideal, fundamentos para pôr em questão as
instituições e ideias que são comuns às formas de sociedade baseadas sobre os
antagonismos de classe.
Engels, porém, em Der deutsche Bauernkrieg (A Guerra
dos Camponeses Alemães) (1850), chama a atenção, é claro, para os limites
dessas “antecipações comunistas” do Cristianismo primitivo: “Os ataques contra
a propriedade privada, a reivindicação da comunidade dos bens, deviam
desagregar-se numa organização grosseira da caridade; a vaga igualdade cristã
podia, no máximo, conduzir à igualdade civil perante a lei [...]. A
antecipação, pela fantasia, do comunismo era, na realidade, uma antecipação das
relações burguesas modernas.” (ENGELS, 1960a, p. 346). Mais
adiante, na mesma obra, Engels ressalta que essas ideias foram expressas mais
nitidamente só no século XVI, pelo teólogo e agitador político Thomas Münzer:
É só com Münzer que essas ressonâncias comunistas se tornam a expressão de
aspiração de uma efetiva facção da sociedade. Só com ele é que são formuladas
com uma certa determinidade e, depois dele, encontramo-las em todos os grandes
levantamentos populares, até que se fundem, pouco a pouco, com o movimento
operário moderno. (ENGELS, 1960a, p. 346- 347).
A teologia de Münzer expressa, na opinião de Engels, o desejo do regresso
do Cristianismo à sua origem, por isso suas ideias são antecipações, em germe,
das condições para a emancipação do homem, porque Münzer defende que, assim
como não há céu no além, não existe também inferno nem condenação eterna e que
é tarefa dos crentes realizar “o céu” na terra, o “reino eterno de Deus” no
reino temporal dos homens.13 Todavia, o “reino de Deus” para ele é,
precisamente, uma sociedade em que não houvesse diferenças de classe, nem
propriedade privada, nem poder de Estado estranho, oposto aos membros da
sociedade, isto é, um mundo social novo, uma nova forma de organização social
em que todos os trabalhos e todos os bens fossem comuns e onde reinassem a
liberdade e a igualdade mais plena entre os homens.
Cf Marx (1957, p. 378), na qual Marx
afirma: “Para a Alemanha, a crítica da religião está, no
essencial, terminada.”
- 3
Acerca disso, cf. Löwy (2006, p. 281-296). Já Walter Benjamin vê, de acordo com o meu parecer,
diferentemente de Max Weber, o capitalismo não só condicionado pela religião,
mas também como um fenômeno essencialmente religioso. Walter Benjamin aponta
quatro traços que podem ser identificados na estrutura religiosa do
capitalismo: 1) primeiro, o culto, ou seja, o capitalismo como uma religião
cultual, pois ele se expressa nos ornamentos das células bancárias; no
capitalismo, as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto,
com os ornamentos do papel-moeda, com a adoração às coisas, ao dinheiro etc.;
2) segundo, a duração permanente do culto; o capitalismo é a celebração sem
trégua de um culto constante à ostentação; 3) terceiro, a culpabilidade; o
capitalismo como uma condição sem saída que tem que ser aguentado pelo homem
até o fim, levando-o ao estado de esfacelamento, de desespero, de angústia; e
4) quarto, o ocultamento; nessa religião capitalista, Deus é ocultado, para ser
invocada a culpa como destino do homem, culpa essa que é martelada
constantemente em sua consciência. Sobre isso, cf. Benjamin (2013, p.21-51).
- 4
Sobre a religião como superestrutura em
Marx, cf. Hecktheuer (1993, p.
70-106).
- 5
“Será necessária grande perspicácia para
compreender que as ideias, as concepções e os conceitos dos homens, numa
palavra, a sua consciência, mudam com as alterações introduzidas nas suas
condições de vida, nas suas relações sociais, na sua existência social?” “Que
demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se transforma
com a produção material?”
- 6
Na obra Zur Kritik der
hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. Op. cit., p. 378, Marx
enfatiza: “O fundamento da crítica irreligiosa é: foi o homem quem fez a
religião; a religião não fez o homem.” Cf. também o Prefácio da Doktordissertation (Tese
de Doutorado), Differenz der demokritischen und epikureischen
Naturphilosophie (Diferença entre as Filosofias da Natureza em Demócrito e
Epicuro) (1841). In: MARX.; ENGELS, 1968, p. 262), no qual
Marx, fazendo alusão à tragédia Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo,
salienta: “A profissão de fé de Prometeu: ‘Eu odeio todos os deuses; eles são
meus subordinados e deles sofro um tratamento iníquo’, é a sua própria
profissão de fé, a sua própria máxima contra todos os deuses do Céu e da Terra,
que não reconhecem como divindade suprema a autoconsciência humana.” Esse
antropomorfismo da religião pode ser ilustrado com uma frase de Epicuro, citada
aqui por Marx: “Ímpio não é aquele que acaba com os deuses da multidão, mas
aquele que atribui aos deuses as representações da multidão.”
- 7
Cf. também a VI Tese ad
Feuerbach, p. 534, na qual Marx deixa clara sua distinção em relação a
Feuerbach: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a
essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua
efetividade, é o conjunto das relações sociais.”
- 8
Sobre a religião como fundamento, base,
do Estado, cf. também Marx (1957a, p. 94,
101): “[...] um Estado
‘cristão’, que tem por fim, em vez de uma associação livre de homens morais,
uma associação de crentes, em vez da realização da liberdade, a realização do
dogma. Todos os nossos Estados europeus têm o cristianismo como base”.
Precisamente, o “Estado verdadeiramente religioso é o Estado teocrático; o
soberano de tais Estados deve ou, como no judaísmo, ser o Deus da religião, o
Jeová, ou então, como no Tibete, ser o representante de Deus, o Dalai Lama.”
- 9
Em Totem e Tabu (Totem
und Tabu) (1913), O Futuro de uma Ilusão (Die Zukunft
einer Illusion) (1927) e Moisés e o Monoteísmo (Der
Mann Moses und Die Monotheistiche Religion) (1939), Freud interpreta também
a religião como ilusão, como ilusão consoladora face à dureza da vida, como “um
sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade.”
- 10
Em O Socialismo e a Religião (1984
[1905] p. 292-293), Lênin argumenta, de forma semelhante, “[...] que a religião
seja completa e incondicionalmente declarada um assunto privado.” “A religião
deve ser declarada um assunto privado [...]. Exigimos que a religião seja um
assunto privado em relação ao Estado [...] O Estado não deve ter nada que ver
com a religião, as sociedades religiosas não devem estar ligadas ao poder de
Estado.” Também em Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à
Religião (1984, p. 371), Lênin defende que “[...] a religião é um
assunto privado.”
- 11
Na obra O Socialismo e a
Religião (1905), op. cit., v. 1, p. 292, Lênin sustenta que as pessoas
não devem ser perseguidas pela sua crença ou descrença, pois “[c]ada um deve
ser absolutamente livre de professar qualquer religião que queira ou de não
aceitar nenhuma religião, isto é, de ser ateu [...]”.
- 12
Sobre isso cf. Zur Kritik der
hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung (MARX, 1957a p. 379), na qual Marx enfatiza: “A crítica da
religião desiludiu o homem, para que ele pense, aja, construa a sua efetividade
como um homem sem ilusões, um homem que chegou à idade da razão, para que
gravite em volta de si mesmo, isto é, do seu sol efetivo. A religião não passa
do sol ilusório que gravita em volta do homem enquanto o homem não gravita em
volta de si mesmo.”
- 13
Uma exposição interessante sobre o
confronto entre esses dois mundos inconciliáveis, o plano humano (das trevas) e
o plano divino (da luz), entre a cidade terrena e a cidade celeste, entre a
ordem temporal (a história) e a ordem eterna (a eternidade), se vê na análise
de Giorgio Agamben acerca do juízo processual do prefeito romano da província
da Judeia, o pagão Pôncio Pilatos, que é do mundo dos homens, contra Jesus,
cujo reino não é daqui, “não é deste mundo”: “No processo que se passa diante
de Pilatos, [...] dois julgamentos e dois reinos parecem confrontar-se: o
humano e o divino, o temporal e o eterno. Com sua habitual vivacidade, Spengler
expressou essa contraposição: ‘Quando Jesus é levado diante de Pilatos, dois
mundos estão imediata e inconciliavelmente frente a frente: o dos fatos e o das
verdades, e com tão assustadora clareza como nunca noutro lugar na história do
mundo.’” “E é o mundo dos fatos que deve julgar o da verdade, o reino temporal
que deve pronunciar um julgamento sobre o Reino eterno.” Mais adiante, diz
Jesus: “O meu reino não é deste mundo [...]. Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus servos teriam combatido por mim, a fim de que eu não fosse entregue aos
judeus. Ora, meu reino não é daqui”. Pilatos pergunta a Jesus: “De onde és?” (AGAMBEN 2014, p. 34, 37, 38, 42, 44).
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